3 A ordem e a unidade do sistema jurídico
É assente de dúvida na teoria jurídica moderna que o chamado jusnaturalismo contribuiu sobremaneira para a conceituação de sistema e, do gênero, à espécie sistema jurídico. O pensamento sistemático sustenta, filosoficamente, o próprio ideal clássico de ciência, adquirido a partir dos séculos XVII e XVIII, de forma que a teoria jurídica européia, à época uma teoria de mera leitura e interpretação de textos “passa a receber um caráter lógico-demonstrativo de um sistema fechado, cuja estrutura dominou e até hoje domina os códigos e os compêndios jurídicos”, como assevera Helmut Coing (in FERRAZ JUNIOR, 2010, p. 43).
Neste mesmo sentido, a fim de demonstrar cientificamente a relação entre o conceito de sistema e a direito natural, prossegue o Professor Tercio Sampaio Ferraz Junior (2010, p.43), ao aduzir:
Numa teoria que devia legitimar-se perante a razão por meio da exatidão lógica da concatenação de suas proposições, o direito conquista uma dignidade metodológica especial. A redução das proposições a relações lógicas é pressuposto óbvio da formulação de leis naturais, universalmente válidas, a que se agrega o postulado antropológico que vê no homem não um cidadão da cidade de Deus, ou, como no século XIX, do mundo histórico, mas um ser natural, um elemento de um mundo concebido segundo leis naturais.
Deriva-se desta visão do homem como um ser natural, vivendo em um mundo regido por leis naturais (este tal “postulado antropológico” mencionado pelo Professor Tercio) a importância da conformação do ideal de sistema aos caracteres da ordenação e da unidade. É a preocupação em fortalecer a defesa do homem do próprio homem que impõe, pela via inicial do direito natural, a necessidade de estabelecimento de um sistema lógico, ordenado e unitário do Direito. A saída do homem do estado de natureza e o seu conseguinte desenvolvimento social, cultural, econômico e político no sentido de se estabelecer um estado de ordem, estado da lei, fosse ele decorrente da necessidade de se superar o pecaminoso estado de natureza no entendimento hobbesiano, fosse ele necessário para o pleno gozo dos direitos individuais mesmo depois de instituído o governo civil, conforme pensamento lockeano, o fato é que o estado almejado pelo homem exigia um sistema jurídico uno e ordenado, base do próprio Estado de Direito.
A convivência de normas jurídicas aparentemente contrapostas no bojo do sistema estruturado pelos princípios gerais de direito, sem se olvidar das lacunas no próprio sistema jurídico, bem assim os conceitos dos institutos jurídicos mutuamente relacionados, carece da sistematização e da ordenação do sistema jurídico, de modo a permitir o estabelecimento da melhor decisão jurídica possível ao caso concreto, a partir da imersão da controvérsia no meio difuso do próprio sistema. Distante da visão estanque e sectária, milita-se pela visão sistêmica, imprescindível para a compreensão adequada da parte em relação ao todo, em especial no caso do sistema jurídico.
Falando da ordenação do sistema, Claus-Wilhelm Canaris (2008, p. 12) ministra que “pretende-se, com ela – quando se recorra a uma formulação muito geral, para evitar qualquer restrição precipitada – exprimir um estado de coisas intrínseco racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade.”. Já no que se refere à unidade do sistema, Canaris menciona que “este factor modifica o que resulta já da ordenação, por não permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais.” (2008, p. 13). Conclui-se, portanto, que a relevância da ordenação e da unidade do sistema jurídico não reside na análise preliminar e descritiva do próprio sistema, mas sim na realização da própria hermenêutica jurídica, quando da obtenção dos valores que permeiam o próprio sistema.
Esta análise racional para a extração dos valores do próprio sistema, na medida de sua ordenação e unidade, é também importante fundamento da chamada teoria da constituição, quando do estudo aprofundado da hermenêutica constitucional, conforme bem assevera o Ministro Gilmar Ferreira Mendes (2007, p 4), que aduz:
Como, por outro lado, toda pré-compreensão possui algo de irracional porque, entre outros fatores que a determinam, ela se funda em pré-juízos, pré-suposições ou pré-conceitos – idéias-crenças ou evidências não refletidas, no sentido em que Ortega y Gasset as distinguia das idéias propriamente ditas, porque só estas resultam da nossa atividade intelectual -, em razão disso torna-se necessário racionalizar, de alguma forma, a pré-compreensão, o que se obterá pela reflexão crítica levada a cabo pela teoria da Constituição. Por isso, também constitui tarefa importante da teoria constitucional submeter a pré-compreensão da Constituição ao tribunal da razão, em ordem a distinguirmos ou pelo menos tentarmos distinguir os pré-juízos legítimos dos ilegítimos, os falsos dos verdadeiros e, assim, alcançarmos uma compreensão da Lei Fundamental, se não verdadeira, pelo menos constitucionalmente adequada.
Vê-se, pois, que a reflexão sistemática do ordenamento jurídico milita em favor da aplicação do direito, inclusive estribando a própria teoria da constituição e não permanece inerte na concepção meramente acadêmica do Direito, no exato entendimento também externado por Mario G. Losano (2010, p. 320), ao asseverar que:
O sistema não é, portanto, apenas um guia ao conhecimento do direito (nisso consiste, exatamente seu “descrever”, que é sua tarefa clássica), mas é também um guia para o agir na aplicação do direito: nisso consiste seu “realizar” o valor próprio do sistema, aplicando-o ao caso concreto.
Logo, torna-se compreensível que a ordem e a unidade no sistema jurídico favorecem a previsibilidade e a estabilidade das relações jurídicas, configurando-se a própria segurança jurídica, vez que esta última decorre do próprio pré-estabelecimento deste verdadeiro guia para o agir na aplicação do direito, conforme ministra Losano, não se objetivando, com isso, que o sistema jurídico tenha o caractere da completude. Justamente neste ponto impõe-se, para ceifar qualquer dúvida acerca da importância da ordenação e da unidade do sistema normativo, o superior entendimento de Miguel Reale (1968, p. 79), que ministra:
A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser interpretada com abstração dos fatos e valores que condicionaram o seu advento, nem dos fatores e valores supervenientes, assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que torna superados os esquemas lógicos tradicionais de compreensão do direito (elasticidade normativa e semântica jurídica). (grifo nosso)
Reflete-se a importância destas conceituações no objeto do presente trabalho porque a busca pelo adequado enquadramento da natureza jurídica do vínculo de emprego dos trabalhadores envolvidos na prestação dos serviços de correspondentes de instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil depende, intrinsecamente, desta análise crítica realizada a partir do entendimento de que o sistema normativo brasileiro possui ordenação e unidade, do que se deflui que a verificação dos valores de fundo necessários para a hermenêutica jurídica exige esta visão global, impedindo ao intérprete a adoção de perspectiva sectária e restrita a uma determinada porção, limitada, pois, do ordenamento.
O normativo do Banco Central do Brasil aqui abordado é relevante e também norma integrante do sistema jurídico, quando se for averiguar as condições pelas quais a contratação de correspondente pode ser realizada e, neste sentido, os serviços cuja prestação é facultada aos contratados e seus empregados, tudo a permitir a correta limitação das tarefas efetivamente desempenhadas pelos trabalhadores, sem se descurar do princípio da primazia da realidade. Não se está aduzindo que o normativo tenha regência na seara do Direito do Trabalho, a ponto de definir a natureza jurídica do vínculo. É norma secundária em relação à própria área de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, não reformando, claro, normas trabalhistas que, naturalmente, possuem caráter cogente.
Entretanto, o que não se pode admitir é a apreciação descolada da própria realidade fática na qual se insere o empregado, afastando-se sumariamente o normativo aplicável e, pelo simples fato de haver na estrutura do instituto de correspondente uma instituição financeira ou demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, decidir-se pelo enquadramento de todos os empregados na categoria profissional dos bancários.
Retomando o entendimento de Canaris (2008, p. 23), temos que “o papel do conceito de sistema é, no entanto, como se volta a frisar, o de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica.” Ora, esta falada adequação valorativa depende deste pensar ordenado e unitário, longe de sectarismo e corporativismo, na busca pela melhor decisão possível ao caso concreto, ainda que a norma verificada não seja de regência da área em apreço.
O Banco Central do Brasil, claro, não editou norma que regulamente a natureza jurídica do vínculo empregatício entre os colaboradores e o correspondente, ou entre os colaboradores e a própria instituição financeira. Mas a norma existe e erradia seus efeitos jurídicos in totum, vez que está inclusa regularmente no sistema normativo, que é uno.
4 Aspectos gerais sobre a natureza jurídica do vínculo de emprego
A vontade decorrente do próprio exercício da liberdade dos contratantes sempre foi aspecto cuja relevância é controvertida na conceituação da natureza jurídica do contrato individual de trabalho. Na área cível, a autonomia da vontade é elemento determinante quando do nascimento do vínculo jurídico, o que na seara trabalhista foi objeto de profundo debate. Disso decorreu o desenvolvimento das antagônicas teses contratualistas e acontratualistas, sendo certo que desta última desdobravam-se as vertentes da teoria da relação de trabalho e da teoria institucionalista.
Não há dúvida de que as duas teorias assentadas no seio da tese acontratualista tiveram sua importância histórica para a discussão da natureza jurídica do contrato de trabalho, em especial quanto ao aspecto da prestação material dos serviços, elemento que se situa no centro da teoria da relação de trabalho. A verificação concreta da prestação dos serviços em favor do empregador seria, então, o elemento determinante para a conceituação da natureza jurídica do contrato individual de trabalho, independentemente da vontade das partes, apresentando-se a relação de trabalho como mera situação jurídica de caráter objetivo.
Na América Latina, o doutrinador Mario de La Cueva foi o bastião desta linha de entendimento, em que pese ter o notável jurista atribuído relativa importância também à teoria contratualista na formação inicial do vínculo de emprego. É que alguns fatos ocorridos antes do início da prestação efetiva dos serviços possuem relevância jurídica, estabelecendo obrigações de parte a parte, do que se deve concluir que, mesmo não havendo ativação no posto de trabalho, já deveria existir algum liame a justificar determinada responsabilização. De qualquer forma, este processo dialético permitiu o posicionamento da doutrina a partir de uma visão global da situação jurídica do empregado face ao empregador, mesclando na análise crítica a vertente contratual com a não contratual, na abordagem da realidade fática, conforme bem asseveram Orlando Gomes e Elson Gottschalk (1979, p. 206):
A distinção entre relação e contrato, embora forneça razoável explicação da aplicação dos ‘efeitos comuns’ e dos ‘efeitos específicos’ do contrato, não é substancial. Significa, em verdade, uma exageração da diferença entre aspectos de uma só e mesma realidade. O contrato é, com efeito, o aspecto subjetivo de um fato que se objetiva na relação. Ora, o problema consiste justamente em saber se esse aspecto subjetivo pode ser eliminado, e não em se acentuar que difere do aspecto objetivo. Se os efeitos específicos, típicos do contrato de trabalho, derivassem exclusivamente do fato da prestação de serviço, o contrato seria uma superfetação. Tal não ocorre, todavia, visto como as obrigações específicas nascem no momento da execução como uma derivação do momento contratual. Por conseguinte, o simples acordo de vontades produz, por si só, os efeitos jurídicos, obrigando os contraentes.
Percebe-se, portanto, que a relevância está menos na determinação simplista de qual teoria é preponderante, e mais na compreensão sistemática de ambas, cada qual fornecendo elementos preciosos para o estudo da relação jurídica de emprego. Nesta linha de entendimento, é inquestionável a contribuição da teoria da relação de trabalho, comumente chamada de teoria do contrato-realidade, para o desenvolvimento do princípio da primazia da realidade no Direito do Trabalho, ampliando-se a verificação concreta da situação jurídica para além dos limites do contrato escrito, afastando-se, com razão, da rigidez formal advinda da teoria contratualista de notóriaorigem civilista que, hoje, inclusive nas relações civis, tem sofrido reais limitações pela função social do contrato e pelos princípios de probidade e da boa-fé objetiva.
Vê-se a existência desta visão híbrida, e que por isso mesmo trouxe efetiva imperfeição de conceito resultando em verdadeira redundância, na própria cabeça do artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - CLT), que aduz:
Art. 442. Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego.
Não se pode negligenciar, feito o destaque da importância da vertente do contrato-realidade, que a natureza jurídica do vínculo de emprego é mesmo contratual, com as limitações impostas à autonomia da vontade pela própria evolução ideológica da visão, inicialmente liberal, para um foco social e relativamente intervencionista do Estado, especialmente quando se tratarda proteção de garantias mínimas aos trabalhadores. As limitações impostas pela própria ordenação do sistema jurídico à liberdade das partes na celebração do contrato, que se reflete na declaração da vontade, não é de modo algum impedimento para a adoção, feitas as ressalvas devidas, da teoria contratualista, como magistralmente ministra A. F. Cesarino Jr. (1970, p. 31):
Com efeito, para o conceito de contrato, o elemento essencial reside de fato na liberdade do consentimento para a constituição da relação e não na liberdade do consentimento para a determinação do conteúdo da relação; de resto, o conteúdo de toda relação contratual é sempre mais ou menos limitado por normas imperativas e, além dos já vistos, se poderiam citar muitos contratos, por exemplo, o de seguro, em que a autonomia individual sofre limitações muitas vezes superiores às sofridas no contrato individual de trabalho.
Afigura-se, pois, indubitável que a análise do correto enquadramento do vínculo de emprego mantido pelos empregados envolvidos na prestação de serviços objeto de contrato de correspondente impõe a conformação da estrutura contratual básica mantida entre as sociedades empresárias exploradoras dos serviços de correspondente com seus próprios empregados (aspecto contratual) pela análise da realidade fática, na ótica da teoria do contrato-realidade. É a conjugação do aspecto contratual com a realidade fática na qual se inserem estes trabalhadores (aspecto da primazia da realidade) que permitirá a melhor decisão possível, sem se olvidar das disposições regulamentares que regem, imperativamente, os contratos de correspondentes. Trata-se de uma abordagem, a partir do princípio da primazia da realidade, direcionada à proteção dos empregados envolvidos sem se descurar dos limites impostos pelo próprio sistema normativo, sempre na busca da extração de diretriz axiológica insculpida na norma, conforme milita o Ministro Maurício Godinho Delgado (2009, p. 193):
O princípio da primazia da realidade sobre a forma constitui-se em poderoso instrumento para a pesquisa e encontro da verdade real em uma situação de litígio trabalhista. Não deve, contudo, ser brandido unilateralmente pelo operador jurídico. Desde que a forma não seja da essência do ato (ilustrativamente, documento escrito para a quitação ou instrumento escrito para contrato temporário), o intérprete e aplicador do Direito deve investigar e aferir se a substância da regra protetiva trabalhista foi atendida na prática concreta efetivada entre as partes, ainda que não seguida estritamente a conduta especificada pela legislação. (grifo do autor)
A atividade decorrente da própria visão de sistema jurídico no sentido de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica, nas palavras de Canaris já citado inicialmente, exige esta abordagem ampla da natureza jurídica do vínculo de emprego, sempre agregando ao liame contratual o aspecto fático, precisamente a partir de uma análise criteriosa das tarefas desempenhadas comumente pelos trabalhadores envolvidos, investigando e aferindo se a substância da regra protetiva trabalhista foi atendida na prática concreta efetivada entre as partes (DELGADO, 2009, p. 193).
Aliás, a busca pela verdade real, corolário do próprio princípio da primazia da realidade, é pilar estrutural de todo o Direito do Trabalho, conforme menciona o Professor Doutor Nelson Nazar (2007, p. 102) ao afirmar que “o direito do trabalho está fincado na regra da busca da chamada verdade real. Devem ser envidados todos os esforços para que apareça a verdadeira situação existente, derrubando-se a falsa máscara às vezes montada.”
Se, por um lado, é freqüente a aplicação do poderoso princípio da primazia da realidade para se afastar estruturas jurídicas que acobertam vínculos espúrios, por outro lado também há de ser aplicado o princípio para analisar a real situação do obreiro no seio da prestação de serviços de correspondente bancário, ainda que esta análise milite pela manutenção do trabalhador no enquadramento de comerciário, já que suas atividades decorrem da atividade principal do contratado.