5.Discutindo a participação da sociedade civil
Da mesma forma que inexiste na literatura um entendimento único e inequívoco acerca do conceito de sociedade civil (Arato, 1995), percebem-se, a partir das entrevistas com os coordenadores e gestores, diversas compreensões distintas do que seja a sociedade civil e de quem são seus principais atores. Os gestores entrevistados (G1 e G2) filiam-se à ideia compartilhada por Habermas (1997) e por Cohen e Arato (2000), entendendo a sociedade civil vocacionada para dar voz aos anseios da sociedade. Dentre os coordenadores, há uma forte dúvida sobre as organizações não governamentais comporem a sociedade civil organizada, bem como um entendimento de que todas as pessoas fazem parte da sociedade civil, consoante a imprecisão terminológica explorada nos trabalhos de Gohn (2005) e Dagnino (2004). Contudo, não é possível aferir se tal interpretação tem a ver com o cargo ocupado (para o qual se exige determinado conhecimento teórico e articulação intersetorial); ou se tem relação com a discussão acumulada (no caso dos gestores) ou com a falta de conhecimento acadêmico (no caso dos coordenadores).
A institucionalização da participação pode ser registrada de forma mais efetiva no PPCAAM, tendo em vista que a legislação prevê a participação, em seu conselho gestor, dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (estadual e municipal) e da Frente de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Minas Gerais. Embora se trate de uma única organização da sociedade civil, a Frente de Defesa compõe-se por diversos fóruns temáticos de direitos da criança e do adolescente e aglutina grande parte das organizações que trabalham nessa temática em Minas Gerais. Além disso, a participação dos conselhos de direitos traz uma maior representatividade ao conselho gestor, vinculando-o a outras discussões da política da infância e adolescência em Minas Gerais, como ressalta G2 em sua entrevista. A participação da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Criança do Adolescente, assim como dos atores mencionados, garante que a política de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte tenha um grau mínimo de controle social público e que esteja em constante discussão nos espaços participativos. Esse formato de participação delineado, embora de implantação recente, corresponde a uma tentativa de dar maior legitimidade à participação nas instituições híbridas, repensando a representação no interior das experiências participativas. Constata-se, ainda, que, no caso do PPCAAM, não há previsão legislativa de participação da ONG executora no conselho gestor do programa, tendo sido relatado o acompanhamento das reuniões por representantes da entidade somente a partir de setembro de 2008.
Quanto ao PROVITA, a participação garantida na legislação se dá tão somente pela entidade gestora, o que, tendo em vista a relação de convênio estabelecido entre o Estado e a organização, restringe a representatividade da sociedade civil na condução dessa política. De forma geral, a participação mencionada pelos coordenadores e gestores tem relação somente com a ONG executora, embora exista uma proposta de abertura à participação em discussão ainda embrionária, conforme apresentado nas entrevistas de T1 e T2.
Ressalte-se que, junto com a ideia de sociedade civil, há de se discutir o que se entende por participação e quais os limites do controle público (accountability) na política de direitos humanos. Grande parte dos atores entrevistados não compreende a rede de proteção utilizada para a execução direta do programa (i.e., abrigos, comunidades terapêuticas e repúblicas) como uma forma de participação da sociedade civil organizada. As parcerias para a proteção são previstas na legislação tanto do PROVITA quanto do PPCAAM e, talvez por serem custeadas pelos programas, não são compreendidas de maneira geral como parceria com a sociedade civil.
Como as entrevistas tiveram por base o mesmo roteiro e as perguntas tiveram idêntica formulação, é de se destacar que os coordenadores consideraram a rede de proteção utilizada pelos programas subsidiariamente como um dos eixos de participação, muito embora as considerações dos gestores (G1 e G2) apontem em sentido diverso e mencionem que a execução dos programas de proteção sequer seria possível sem a articulação da rede de proteção. Cabe ressaltar ainda a ressalva feita por G2 de que se trata de uma transferência de responsabilidade complicada, tendo em vista que a pessoa em proteção está sob a tutela do Estado e fica acolhida junto a uma organização da sociedade civil. A corroborar tais preocupações está o fato de que, via de regra, não existe qualquer formalização dessa parceria, o que pode colocar em xeque a eficácia dos programas de proteção.
No que se refere à relação e articulação do PPCAAM com a sociedade civil, a participação do PPCAAM na rede de medidas socioeducativas pode ser avaliada como relevante e impactante, tratando-se de uma articulação que tem impacto direto nos moldes de execução do programa, ainda que essa interação ocorra fora dos encontros da rede. O Fórum de Abrigos e o Fórum de Conselhos Tutelares também são espaços articulados com o PPCAAM (ainda que de maneira menos periódica) e estão também relacionados com a forma de intervenção do programa nos casos em proteção. Contudo, não se verifica uma discussão e articulação mais aprofundada acerca da necessidade de prestação de contas (accountability) do programa, ainda que seja por meio dos atores representados no conselho gestor.
Constata-se um padrão nas respostas dos gestores quanto à possibilidade de participação e ao espaço para a ampliação dessa participação, bem como quanto à perspectiva de mudanças na forma de gestão do PROVITA. Essa compreensão também se alinha às considerações feitas por T2: uma maior aproximação entre a ONG e a Secretaria poderá auxiliar na reformatação do conselho deliberativo e da forma fechada e isolada (nas palavras desse informante, “oculta”) pela qual o programa vem sendo executado até então.
De maneira geral, os dados analisados possibilitam apontar que o PPCAAM vem conseguindo conciliar a participação com a questão do sigilo, articulando-se em redes e utilizando-se da institucionalização da participação a partir de seu conselho gestor. No PROVITA, contudo, não se verifica participação direta e autônoma de organizações da sociedade civil, existindo somente a atuação da ONG executora no conselho deliberativo e parceria com as entidades que compõem a rede de proteção, sendo tal atuação, em ambos os casos, regida pela relação financeira estabelecida. Ademais, ressalta-se que, em se tratando do PPCAAM, a atuação da ONG executora tem se dado de forma tímida e restrita à execução administrativo-financeira dos programas, sem um envolvimento efetivo na gestão e consolidação da política de proteção. Tal fato, inclusive, impossibilitou a realização da presente pesquisa envolvendo os dirigentes das organizações, em vista do contato quase inexistente com a dinâmica e a temática de atuação dos programas de proteção.
Alarmante também é o comentário do gestor estadual acerca da falta de informações sobre como estão as pessoas sob proteção dos programas. De fato, a estratégia de proteção adotada pelo Brasil não primou pela sistematização de dados e informações sobre os protegidos e nem há registros confiáveis relativos ao índice de sucesso do programa, em especial após a exclusão do programa.
Finalmente, é importante salientar que a ampliação da participação não pode ser responsabilidade única e exclusiva da sociedade civil. Algumas respostas às entrevistas registram que as organizações da sociedade civil deveriam mostrar interesse pelos programas e auxiliar na articulação do programa em redes de proteção e defesa. A mobilização da sociedade civil organizada e sua forma de intervenção com o Estado foram responsáveis inclusive pela criação do PPCAAM e do PROVITA em nível nacional, a partir das experiências em Minas Gerais e Pernambuco, respectivamente.
A responsabilidade pela existência e ampliação da participação passa, conforme se pode extrair das entrevistas realizadas, pelo Estado, pelas ONGs gestoras, pelos programas do Sistema de Proteção a Pessoas Ameaçadas e pelas organizações da sociedade civil envolvidas com a temática. Nesse sentido, todos os entrevistados salientam a necessidade de maior divulgação dos programas, tanto para que as organizações da sociedade civil possam ter conhecimento e encaminhar casos para atendimento quanto para que se possa estabelecer articulação, participação ativa e controle da sociedade civil na política de proteção desenvolvida.
6.Considerações Finais
O presente artigo buscou analisar como se dá ou como é percebida a participação democrática nas políticas de proteção de direitos fundamentais desenvolvidas junto ao Sistema de Proteção a Pessoas Ameaçadas. Os programas integrantes do Sistema são uma iniciativa do governo federal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em parceria com os governos locais e/ou organizações da sociedade civil.
Assim, a fim de avaliar o grau de participação foi escolhido um estado federado que mantivesse os programas de proteção sob gestão de um órgão estadual, de forma a manter o mesmo contexto de violência e criminalidade. Nessa proposta, foi escolhido o estado de Minas Gerais, que mantém, sob gestão da Subsecretaria de Estado de Direitos Humanos, o Programa de Proteção e Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (PROVITA) e o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), além de manter o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos (CEAV). Mais especificamente, a partir da análise da legislação específica aplicável e de entrevistas com atores que atuam na execução e gestão dos programas, procurou-se analisar qual a percepção desses atores acerca do papel exercido (de fato ou supostamente) pela sociedade civil organizada junto às políticas públicas que integram o Sistema de Proteção a Pessoas Ameaçadas em Minas Gerais. Finalmente, propõe-se apresentar alternativas que viabilizem uma maior participação da sociedade civil organizada na consolidação da política pública estadual de proteção de direitos humanos.
Algumas considerações podem ser discutidas com base nos dados coletados. Inexiste, por exemplo, um entendimento compartilhado entre os atores entrevistados do que seja a sociedade civil organizada e como esta poderia contribuir e participar efetivamente nos programas. Percebe-se, contudo, que, quando há certo grau de institucionalização dessa participação, como no caso do PPCAAM, a discussão inevitavelmente atinge um aprofundamento e uma maturidade que transpassam a mera arguição de sua importância, possibilitando um debate mais qualificado nos espaços participativos, com impacto direto na inserção das políticas em um âmbito de transformação macrossocial. Essa maior participação verificada no PPCAAM também pode ter relação com o fato de esse programa ter sido criado como resultado de uma conquista do movimento da infância e juventude em Minas Gerais, de maneira que os atores sociais percebem-se como aliados e responsáveis pelo programa.
A mitificação referente ao sigilo precisa ser desfeita, ou ao menos ressignificada. Em outras palavras, precisa-se discutir e (re)avaliar em que medida o sigilo é fator de não participação, haja vista que os benefícios de uma mais ampla interlocução com as organizações da sociedade civil podem superar o receio preconcebido de que existiria um descuido quanto ao sigilo da execução do programa. As mesmas medidas adotadas atualmente e que resguardam informações sensíveis quanto à localização da pessoa ameaçada possivelmente seriam suficientes no sentido de resguardar a segurança do indivíduo atendido e, ao mesmo tempo, viabilizar uma ampliação da participação da sociedade civil organizada (seja nos conselhos ou em fóruns e redes).
Especificamente quanto ao PPCAAM, a expansão da participação passa pela diversificação das redes temáticas envolvidas e, certamente, por um maior envolvimento da ONG executora com as atividades da política de proteção desenvolvida – não no que se refere à execução administrativa e financeira, mas à articulação política com outros atores da sociedade civil. O PROVITA, por sua vez, deve repensar em que medida não é possível a interação efetiva e direta entre os envolvidos no programa e fóruns, redes e espaços de discussão da sociedade civil organizada – não obstante tal discussão perpasse um debate profundo sobre a estruturação do programa e sua atual forma de gestão e coordenação.
Uma maior divulgação dos programas em questão é apontada por todos os informantes como uma forma de garantir uma maior participação e também como um primeiro passo para aprofundar a interação até então existente. Embora, seguramente, tal divulgação deva ser responsável e planejada, não se pode mais restringir a divulgação aos órgãos públicos (na maior parte dos casos, representados nos conselhos gestores/deliberativos) e enxergar a sociedade civil organizada como um antagonista. A rede de proteção utilizada pelos programas de proteção é essencialmente não governamental, o que, por si só, já é uma razão suficiente para justificar um debate aprofundado e uma participação efetiva das organizações da sociedade civil na gestão da política de proteção no Estado.
Um possível efeito colateral que também precisa ser enfrentado consiste na ampliação da demanda dos programas. Em Minas Gerais, o foco do PPCAAM ainda é a Região Metropolitana de Belo Horizonte e o PROVITA atende a capital e aquelas cidades com uma criminalidade mais organizada e com atuação especializada da polícia e do Ministério Público. Porém, provavelmente muitos casos de ameaça de morte não chegam sequer a ser analisados por estes programas, pelo fato de os órgãos e organizações – que recebem a notícia do risco letal de determinada pessoa – não conhecerem o Sistema de Proteção ou não saberem como acessá-lo.
A articulação com a sociedade civil é uma forma de ampliar a capilaridade dos programas, a fim de que casos graves de ameaça de morte sejam encaminhados para avaliação pelas equipes técnicas e, caracterizado o perfil, sejam inseridos nas redes de proteção. Esse objetivo ideal, contudo, ainda está longe de ser realidade no cotidiano dos programas de proteção, em face das equipes reduzidas e dos escassos recursos financeiros. O aumento da divulgação e o crescimento da demanda de atendimento recebida pelo Sistema podem vir a mostrar que ainda se trata de uma política paliativa e que não possui estrutura para atender, de maneira efetiva, todos aqueles ameaçados de morte em determinado estado federado.
A partir deste trabalho, podem-se delimitar três recomendações que, certamente, podem fomentar a continuidade da discussão ora traçada: trata-se do estabelecimento do sistema de proteção propriamente dito; da realização de pesquisas e avaliações; e da capacitação e formação dos atores envolvidos. Em primeiro lugar, uma institucionalização do Sistema de Proteção de Direitos Humanos ou do Sistema de Proteção a Pessoas Ameaçadas possibilitará um aprofundamento das discussões entre gestores, coordenadores e parceiros já representados nos conselhos gestores/deliberativos dos programas, abrangendo-se também outros atores, como movimentos sociais e centros de pesquisa e análises. Não há, até o momento, um espaço de interação e interlocução entre os programas, e muitos desafios que se apresentam para determinado programa certamente se repete em condições muito semelhantes nos demais. Em segundo lugar, verifica-se uma necessidade de aprimorar a qualidade do registro de dados, informações, práticas e discussões em atas, a fim de potencializar o pensar acerca da política de proteção, assim como a efetividade e a forma de execução dos programas. E, para além disso, é preciso nivelar conhecimentos e informações, inclusive a partir de interação com a academia: os atores envolvidos na política pública de direitos humanos precisam ter um embasamento teórico mínimo acerca do que seja a sociedade civil organizada, qual o papel e quem são os principais atores. Somente a partir desse nivelamento de conhecimentos será possível planejar a atuação desses atores a fim de aprofundar as experiências de democracia participativa na gestão das políticas setoriais de direitos humanos.
Como dito anteriormente, se os defensores de direitos humanos são uníssonos ao afirmar que a democracia é o melhor regime para a efetivação dos direitos humanos, a gestão, execução e implementação da política de direitos humanos deveriam contar com o maior grau de participação democrática possível. De nada adianta o governante ou os gestores da Subsecretaria almejar(em) uma interlocução profunda com a sociedade civil organizada se os atores responsáveis pela execução direta não se filiam a esse entendimento ou sequer têm compreensão dos objetivos envolvidos na proposta. Se os debates da teoria democrática perpassam a radicalização da democracia, compreendendo os limites da representação e implantando espaços participativos, a sociedade civil organizada deve ser convidada a fomentar as experiências participativas junto às políticas públicas (em especial, no âmbito dos direitos humanos).
Uma maior participação da sociedade civil organizada em programas que têm foco nas pessoas ameaçadas de morte deve e precisa ser problematizada. Por um lado, essa participação pode garantir uma maior eficácia da política de proteção; por outro lado, deve-se vislumbrar sempre a segurança e a vida das pessoas protegidas e em que medida os mecanismos de controle público são compatíveis, necessários e desejáveis na implementação da política de proteção de direitos humanos.
Contudo, a participação deve ser entendida muito além da execução por meio de organizações da sociedade civil. A democratização da representação social passa pela interação com outros atores responsáveis pela gestão de políticas, como os conselhos e centros de pesquisa. A ampliação das experiências participativas tem partido sempre da sociedade civil organizada, mas o papel do Estado no estímulo, informação e interação da participação precisa ser referenciado e ressignificado, em especial ao se considerar que a participação é, por si só, um direito humano.