O presente ensaio tem por objetivo analisar a questão da validade das normas jurídicas produzidas pelas agências reguladoras, mais especificamente quanto à questão da necessidade ou não de uma participação democrática para legitimar esse processo.
Inicialmente cabe salientar que com o declínio do Estado Social e o surgimento do Estado Neoliberal, sob o modelo regulatório[1], há uma substancial alteração da atuação do Estado na economia. Com essa mudança surgem diversos questionamentos sobre pressupostos e dogmas do Estado Democrático de Direito, tais como alegitimidade (justificação) democrática e o princípio da legalidade.
O Estado Democrático de Direito pauta-se em duas ordens de valores: na vontade definida pelo povo (democraticamente)[2] e na vontade juridicamente positivada. Este consiste na obediência ao princípio da legalidade (em sentido amplo – legalidade constitucional), atualmente visto como a observância não apenas à lei, mas à toda ordem jurídica (princípio da juridicidade)[3].
A vontade soberana do povo (princípio democrático) está concentrada no princípio da legitimidade. Este princípiopode ser entendido como a própria base de criação e validação do ordenamento jurídico, assim como tem o papel, em última análise, de definir o interesse público, o qual deverá ser atendido pela ação administrativa[4].
Isso porque a legitimidade consiste na justificação de um determinado poder; na relação comando/obediência[5]. Essa relação vai ser traduzida por José Eduardo Faria como o próprio fundamento de mando dos governantes e, por outro lado, no fundamento de obediência dos governados[6]. E com a extinção do Estado Absolutista e o nascimento do Estado Democrático de Direito, a única fonte de legitimação/validação do poder é a esfera democrática. Ou seja, não há mais como essa legitimidade ser auferida por critérios transcendentais, tais como o plano religioso, histórico ou carismático, devendo, portanto, ser encontrada dentro da vontade popular juridicamente positivada.
Ora, é justamente na democracia a resposta encontrada para a pergunta “porque devemos obedecer ao Poder (expressado através das normas jurídicas)?”. Um poder só passa a ser legitimo pois entendemos que ele é fruto, expressão da vontade geral. Se não fosse a soberania popular (a vontade geral), em nada o ordenamento jurídico seria diferenciado das normas deontológicas de um grupo de assaltantes.
Partindo da concepção normativista, no qual o Direito é visto como um ordenamento normativo[7], as normas são partes de um ordenamento emanado pelo poder soberano[8]. A soberania popular é o critério último de validade do ordenamento jurídico e, por conseguinte, da própria Constituição Federal. Apesar desta ser o critério último de validade das normas jurídicas, por ser a norma fundamental do ordenamento, esta só é legítima/válida, em um Estado Democrático, se decorrente da vontade popular e voltada para a concretização dos direitos fundamentais. Quero dizer que a norma jurídica tem como seu critério de validade a Constituição Federal, conduzível, em última instância, à soberania popular.
Ademais, a Constituição só existe como norma integrante de um ordenamento jurídico, no qual há um Estado preexistente[9]. O Estado, segundo os teóricos contratualistas[10], tem início em um contrato social elaborado pelos particulares, no qual cada um destes cede uma parcela de sua liberdade para que a sociedade possa viver em paz e desenvolver-se. Após o surgimento daquele é que nasce a Constituição como documento maior de um ordenamento jurídico e no qual será estipulado o próprio objetivo e função do Estado. De outra forma, poderemos dizer que enquanto a criação da Constituição como norma fundamental deve se pautar pelo princípio democrático, no qual tem na soberania popular a sua base e diretriz, no intuito de legitimar e dar validade ao sistema, assim como produzir inputs axiológicos; a legalidade deve ser vista no sentido de disciplinar os procedimentos internos desse mesmo sistema, como uma forma de criação e evolução do direito no cumprimento da sua função, pressupondo um ordenamento previamente legitimado.
O próprio Hans Kelsen, conhecido por ser um dos mais influentes positivistas de todos os tempos, entende a democracia como uma técnica de elaboração normativa[11]. Ou seja, a criação e produção normativa, na doutrina kelseniana, recorre não apenas ao critério formal de validade mas também à democracia como técnica essencial.
Nesse sentido, ao analisar o Estado Regulador e a sua forma de atuação na sociedade, percebemos um déficit democrático que não é possível ser sanado pelo modelo de democracia representativa. Explico.
O Estado, com o advento do seu modelo regulador e em virtude da necessidade de imprimir eficácia à sua atuação, deixa de atuar centralizadamente – como fazia outrora (modelo renascentista que durou até a queda do Estado Social) – e passa a atuar em uma espécie de rede, buscando, dentre outros motivos, encontrar formulas mais ágeis e eficientes para dirimir a crise de legitimidade do Estado Social decorrente da desconfiança dos cidadãos[12].
O princípio da descentralização, implícito no modelo regulatório, propugna por mudanças administrativas, com a criação de entes com personalidade jurídica própria que passarão a integrar a administração descentralizada[13]. O objetivo é passar uma maior “autonomia e independência[14], conferindo maior liberdade técnica de condução das ações sem possibilidade de avocação ou revisão pelo superior hierárquico, que exerce um poder político”[15]. Ou seja, com a descentralização, será criada uma entidade, no âmbito da administração indireta, para regular determinada atividade, o que implicará em um ente com especialidade técnica no assunto a ser tratado, atendendo, dessa forma, de maneira mais eficiente a realização do interesse coletivo.
As agências reguladoras, como entidades típicas do Estado Regulador (no cenário brasileiro) e do Poder Executivo, atuam como agente normativo e regulador da atividade econômica (em sentido amplo), segundo os moldes do art. 174, CF[16], expedindo atos normativos sob a forma de regulamentos, cuja disposição deôntica tem caráter cogente aos particulares.
Assim, muito se fala no déficit democrático do poder normativo das agências reguladoras[17], o qual denotaria a própria ilegitimidade na atuação do Estado Regulador. O déficit ocorreria pelo fato de os dirigentes das agências reguladoras não serem eleitos pelo povo (mas sim por escolha discricionária do chefe do Poder Executivo), não havendo transferência da investidura popular deste àqueles, fazendo com que os particulares estejam sujeitos a normas não elaboradas pelo povo[18].
Paulo Todescan de Lessa Mattos[19] afirma ainda que há a possibilidade desses entes da Administração Indireta contrariarem os interesses do Chefe do Executivo (representante do povo) em virtude da independência conferida pelo ordenamento jurídico àquelas.
Sob um outro ponto de vista, afirmam também que na regulação o poder central atua estabelecendo a política geral de todos os setores e metas a serem atingidas; enquanto as autoridades locais e regionais – entenda-se as agências reguladoras – executam as metas elaboradas pelo poder central; sendo, para tanto, necessária a outorga de competência normativa para a execução dessas atividades que antes era realizada pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo central[20]. Ou seja, haveria uma retirada de competência do Legislativo e do Executivo central[21].
No entanto, observe que essa atuação do Estado na economia não era a inicialmente prevista na Constituição Federal. Aqui a reforma do Estado, no intuito de fazer a transição do Estado Social para o Estado Regulador, foi marcada com a edição da Lei n.8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Plano Nacional de Desestatização (PND), reformulado pela Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997 (com as alterações da Medida Provisória 2.161-35, de 23 de agosto de 2001).Essa percepção é clara ao se observar os objetivos fundamentais do PND, contidos em seu art. 1°[22].
A nível constitucional foram editadas diversas Emendas Constitucionais[23] que afetaram especificamente os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 e a Emenda n° 6/2005, suprimindo o art. 171 daquela Carta, que trazia a proteção e benefícios especiais à empresa brasileira de capital nacional, desfazendo o conceito de empresa nacional. Observa-se que todas essas Emendas são do mesmo dia (15.8.95). As alterações que vieram a alterar os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 são: a Emenda Constitucional n° 5/95 que afetou especificamente o monopólio da exploração de serviços públicos locais de distribuição de gás canalizado; a Emenda Constitucional 8/95, que privatizou o setor de telecomunicação e radiodifusão e a Emenda Constitucional 9/95, o setor petrolífero. Mais recentemente, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 36, de 28.5.2002, que permitiu a participação de estrangeiros em até trinta por cento do capital das empresas jornalísticas e de radiodifusão.
Nesse sentido, entendemos que as mudanças sociais positivadas no cenário nacional decorreram de alterações no cenário internacional: já está demonstrada a impossibilidade de se ter um Estado provedor de bem e serviços em face da limitação dessa intervenção[24]. Dessa forma, devemos prezar por um Estado Regulador (atual forma no direito dogmático) forte, sem deixar que ideologias individualistas – ou melhor, neoliberais – alterem conquistas sociais conseguidas ao longo do tempo (princípio do não retrocesso social).
Não importa o regime assumido pelo Estado brasileiro, o seu fim será sempre o interesse público, a promoção da justiça social[25]. Os instrumentos necessários para tal fim é que poderão mudar; não importando se a atuação no domínio econômico se dará de forma direta ou indireta – lógico que tal assertiva só é constitucional se obedecer ao princípio da juridicidade. Ou melhor, qualquer que seja o modo de atuação no domínio econômico, o Estado tem de basear-se nos fundamentos constantes no art. 1° da CF/1988[26], ter como objetivos aqueles delineados no art. 3° da CF/1988[27] e obedecer aos princípios gerais da atividade econômica[28] positivados no art. 170 da própria Constituição.
No entanto, apesar de entender que tal mudança não fere o princípio da legalidade[29], na sua vertente da juridicidade, compreendo que a mudança introduzida gera um déficit democrático em virtude das implicações geradas por tais mudanças, nos moldes do explicitado acima: possibilidade de contrariar os interesses do Chefe do Executivo e a impossibilidade de transferência democrática para a Administração Indireta.
Para melhor compreender pense qual seria a resposta da seguinte pergunta: por que os particulares/cidadãos deveriam observar as normas produzidas pelas agências reguladoras? Pautar a resposta apenas no princípio da legalidade/juridicidade seria ter uma visão reducionista do ordenamento jurídico e da sua validade, além de menosprezar o aspecto democrático. Se a democracia é uma técnica de produção normativa, aqui ela não foi observada, necessitando, portanto, de instâncias democráticas legitimadoras. O mais adequado seria exatamente perguntar qual a legitimação possível para essas normas jurídicas, sem esquecer a sua natureza e função mas também sem transgredir o caráter democrático.
No âmago desse cenário, penso que não há qualquer inconstitucionalidade na atuação das agências[30], desde que seja possibilitada a participação dos particulares noprocesso normativo das agências reguladoras[31].
Nesse contexto, a legitimidade será auferida a partir da legalidade[32], em razão desses entes fazerem parte do Poder Executivo, produzindo um ato administrativo (em sentido formal), e a sua competência ser atribuída por lei. Por conseguinte, será auferida primeiramente a legalidade para depois, a legitimidade. Contudo, a legitimidade não se confunde com a legalidade; sendo imprescindível que seja permitido a oportunidade da participação popular nos procedimentos de criação da norma.
Assim, não haverá qualquer inconstitucionalidade na previsão de mecanismos que possibilitem a participação da sociedade no processo de elaboração da norma. Afinal qualquer instituto que devolva o poder ao povo será não só desejável mas também benéfico. Por outro lado, apesar de, em regra, a lei de cada agência ter previsto mecanismos de participação popular, como audiências e consultas públicas, não seria necessariamente exigida expressa previsão das formas de participação do povo no processo de elaboração das normas pois isso decorre da materialização do direito de petição[33] (art. 5°, inc. XXXIV, CF) e do próprio princípio participativo – vertente do princípio democrático (art. 1°, parágrafo único, CF).
A legitimação na seara do processo normativo das agências reguladoras não possui déficit de justificação democrática desde que haja uma real participação dos particulares (democracia participativa); o que consistirá no próprio dever das agências: incentivar a efetiva participação dos membros da sociedade.
A participação popular nos procedimentos discursivos possibilita ao Estado acolher, detectar, processar e atender as demandas plurais da sociedade, escolhendo, com vista ao interesse público, quais os valores, dentre aqueles gerados no debate público, devem ser institucionalizados.
Com foco no ordenamento jurídico brasileiro, a participação popular decorre do princípio democrático (parágrafo único do art. 1° da CF), e é expressão da cidadania e do pluralismo político, ambos fundamentos da República (respectivamente art. 1°, inc. V e II, da CF), assim como da consciência nacional. Sob outro ponto de vista, o princípio ora em comento consiste em uma evolução na gestão da coisa pública (princípio da República), no momento em que concede aos cidadãos a possibilidade de atuar na sua gestão.
A democracia procedimental (ou participativa) requer uma observância às regras do jogo, que também pode ser entendida como as normas de um sistema (ordenamento) que foram selecionadas e institucionalizadas a partir de uma gama de expectativas. Assim, na legitimação processual é necessária a observância do devido processo legal (principio consagrado no art. 5°, LIV, CF).
No processo normativo das agências, o devido processo legal consiste, dentre outras coisas, na observância do princípio da publicidade (art. 37, caput, CF) em todos os atos praticados por esses entes; o livre acesso às informações aos interessados (art. 5°, XXXIV, CF); o princípio da motivação etc.
A motivação será de extrema importância tanto para o controle social quanto para o controle judicial. O órgão colegiado responsável pela decisão deverá levar em consideração os anseios, manifestações e colocações formuladas pelos participantes do processo decisório, devendo motivar a sua decisão, principalmente quando for contrária à vontade majoritária. As agências têm o poder discricionário técnico na elaboração da decisão, no entanto, a discricionariedade é sempre relativa e pode se diluir em relação ao caso concreto. Por outro lado, o órgão não pode ficar vinculado à vontade dos particulares, pois isso acarretaria a desvirtuação do próprio objetivo da regulação: emanar decisões com natureza técnica.
A participação discursiva de setores da sociedade em processos normativos garante a racionalidade comunicativa nestes e a escolha dos valores que serão institucionalizados a partir dos anseios, manifestações e colocações formuladas na esfera pública; contribuindo, assim, tanto para o controle social quanto judicial das decisões proferidas pelo Poder Público. Isso consiste em uma evolução do princípio da separação dos poderes: limitar o poder através da pluralidade e circularidade de procedimentos participativos no Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, essa forma de democracia participativa procedimental é complementada pela moral, o que, no cenário brasileiro, tem extrema importância; haja vista a positivação do princípio da moralidade (art. 37, caput, CF), que deve ser atendido tanto pela administração pública direta quanto indireta[34].
Em suma, concluímos que, na seara das agências reguladoras, o seu poder normativo é legitimado/validado através de procedimentos consensuais sobre as regras do jogo que possibilitem a participação social.