3 - O Papel da Interpretação na Mutabilidade do Direito
Já vimos que as normas jurídicas podem encerrar os mais variados conteúdos normativos, dada a ausência de predeterminação transcendental de conteúdo por parte da norma fundamental. Com efeito, os ordenamentos jurídicos guardam, cada um, sua identidade, não se cogitando deles em termos axiológicos.
Nesse contexto, Kelsen observa duas espécies de interpretação do texto jurídico: a interpretação realizada pelos órgãos jurídicos definidos pelo sistema; e a interpretação colhida pelos demais intérpretes, sobretudo pela Ciência Jurídica. Aquela primeira, Kelsen denomina de interpretação autêntica do Direito. É sobre ela que vamos tratar agora.
3.1 – Indeterminação do Ato de Aplicação do Direito
Para Kelsen a norma superior determina a produção da norma inferior e, em derradeira instância e de certo modo, a aplicação final do Direito, ou sua execução, realizada pelos tribunais (intérpretes autênticos). A determinação imposta pela norma superior atinge a forma como a norma inferior deve ser produzida e, eventualmente, seu conteúdo. Entretanto, essa determinação nunca é completa. Há sempre uma margem de liberdade nos atos inferiores, em maior ou menor grau, de maneira que a norma superior faz as vezes de uma moldura que deve ser preenchida por aquele ato. Assim é que a criação e a aplicação (execução) do Direito são só em parte determinadas por este[17]. O processo de determinação parte da norma geral e abstrata até atingir a norma individual e concreta, no processo seriado e gradual de determinação do Direito.
Outrossim, Kelsen em sua teoria pura afirma a necessidade de o texto jurídico ser interpretado, pois encerra diversas interpretações possíveis, por conta da pluralidade de sentido das palavras[18], que não possuem um sentido em si mesmas. É nesse jaez que Kelsen vai dizer que o intérprete do Direito estará diante de uma multiplicidade de sentidos possíveis ao aplicá-lo[19].
Não sobeja dizer sobre a existência de uma distinção havida entre texto normativo e norma jurídica que subjaz a teoria kelseniana[20], ainda que se possa fazer uma crítica contundente a ela quando esta se refere a uma busca da “vontade do legislador”. Contudo, o importante é que Kelsen reconhece o caráter jurídico de qualquer ato de aplicação que se encontre dentro das possibilidades interpretativas que compõem a moldura.
3.2 – Sobre a Construção da Moldura
Com efeito, um dos pontos basilares, e um dos grandes passos dados no sentido do progresso da ciência jurídica, é o reconhecimento de Kelsen, em seus termos, da dualidade texto e norma jurídica (em sentido estrito, acresceríamos de mão própria). Pensamos que é possível traduzir a linguagem de Kelsen – sem alterar seu sentido original – para dizer que está ali a seguinte idéia: o texto, sendo expressão empiricamente objetivada, implica numa pluralidade de sentidos possíveis – a moldura. Sublinhe-se, por oportuno, que não são todas as interpretações possíveis a partir do texto que estão dentro da moldura, mas tão só aquelas em consonância com o sistema. As demais estão simplesmente fora da moldura.
Assim é que se nos afigura como construtiva/constitutiva da moldura a atividade do intérprete. Com isso queremos dizer que a moldura não é posta pela norma jurídica, ou pelo sistema, mas a partir dele, e pelo intérprete, enfim. Ela (a moldura) não já está lá, mas é posta pelo ato interpretativo do sujeito cognoscente, no caso órgão jurídico competente. Por outros torneios: a moldura é construída pelo intérprete, e não posta pelo Direito, como se o fizesse independentemente daquele (intérprete).
Dentro da moldura se encontram as interpretações possíveis (normas válidas, diríamos) construídas a partir do texto positivo. Estas interpretações possíveis se traduzem, no ato de aplicação do Direito, em possibilidades de aplicação. É dizer: o órgão competente poderá aplicar ao caso concreto qualquer das interpretações possíveis da norma, e que se encontram, pois, compreendidas dentro da moldura normativa. Não há se olvidar, nesse diapasão, a função criadora desses órgãos, que não é, pois, meramente declaratória[21], malgrado seja essa função limitada pelo próprio sistema, que confere validade às normas. Enfim, não há só uma interpretação possível, como se fosse a interpretação correta, o que revelaria uma concepção essencialista com a qual, como visto, o pensamento do mestre de Viena não se compadece.
A necessidade da interpretação repousa, pois, nessa inexistência de uma interpretação única, correta – o que só seria possível no caso de uma norma fundamental com conteúdo axiológico transcendental e, por conseguinte, vinculativo das demais normas desse sistema, que derivariam dela por dedução. No Direito positivo há inúmeras possibilidades interpretativas, diversos são, pois, os conteúdos normativos e as possibilidades de aplicação concreta da norma.
Então é assim: há o texto positivo, e a partir dele o intérprete constrói a moldura (de acordo com os critérios de validade do sistema) onde estão contidas as possibilidades (interpretativas) de aplicação; e desse ponto em diante o Direito positivo já não fornece qualquer critério para a escolha da decisão a ser aplicada concretamente. Essa decisão/escolha entre as interpretações contidas na moldura é, nesses termos, um problema político. A decisão sobre a norma a aplicar é livre e cabe ao órgão competente (juiz ou tribunal). Uma vez feita esta escolha política, eis a norma individual e concreta posta no sistema, em seu continuum reprodutivo.
4 – CONCLUSÃO
A ausência de conteúdo pré-determinado por uma norma fundamental axiologicamente neutra implica em uma dupla indeterminação normativa: a indeterminação quanto ao conteúdo da norma jurídica e da própria ordem normativa como um todo; e a indeterminação da norma (como significação) a ser aplicada, dentro das múltiplas significações construídas a partir do texto positivo – no que pese o fato de que a escolha pela aplicação de uma das significações não exclui as demais, nem mesmo a possibilidade de sua aplicação em outros casos, ou até no mesmo, por um órgão decisional superior. O Direito para Kelsen é mutável, dinâmico, contingente, enfim.
Notas
[1] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 26 usque 29.
[2] Teoria Pura do Direito. (Tradução de João Batista Machado). 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 2.
[3] Sobre a auto-produção e auto-regulação do Direito na perspectiva kelseniana versaremos mais detidamente em momento ulterior e oportuno.
[4] VILANOVA, Lourival. Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume I. São Paulo: Axis Mundi: Ibet, 2003. p. 325.
[5] Acerca da auto-referência ou auto-fundamento do Direito Positivo na teoria kelseniana, que se traduz na sua própria regulação quanto a sua produção e aplicação, ver: KELSEN, Teoria Pura do Direito, pp. 80; 257; 263 e ao longo de toda a obra deste autor. Também: VILANOVA, Lourival. Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. p. 312 e ss. Com isso, Kelsen quer deixar claro que o Direito se auto-regula independentemente do mundo do ser, pois só norma disciplina outra norma do sistema. Entretanto, é curioso observar em sua teoria a afirmação acerca de que o fundamento de validade das normas, e mesmo da ordem jurídica, é a norma fundamental, mas que a eficácia social, duma e de outra, é condição de validade de ambas. Reconhece, enfim, que a eficácia (plano do ser) não se confunde com validade (plano do dever-ser), intentando, assim, deixar claroar-ser), ma e mesmo da ordemsitivo o fechamento do sistema. Ocorre que, debalde afirme tal fechamento, aliado a circunstância de que a norma fundamental empresta validade a todo esse sistema, a eficácia aparece como condição de validade da norma jurídica. Isto porque, afirma Kelsen, sem uma eficácia (social) mínima a norma se torna, de pronto, inválida (Kelsen, Teoria Pura do Direito. pp. 235 e ss.). Ora, prelecionar isso é de certo modo a negação da premissa de que uma norma só toma validade em uma outra superior. Com efeito, não sendo “a falta de eficácia mínima” o antecedente de uma norma superior – e não é –, a invalidade em casos assim se deverá exclusivamente a uma causa do mundo do ser, malgrado seja a invalidação de uma norma um “efeito jurídico”, porquanto importa em sua retirada do sistema jurídico. Isto é o mesmo que afirmar que o ser define o dever-ser. O factual define o deôntico. Onde está a auto-regulação do Direito, então?!?
[6] Estamos de acordo com Lourival Vilanova quando este afiança que “em rigor, indo ao nível da norma fundamental ele (o jurista) vai além do ordenamento positivo e vai além do recinto onde se move a Ciência-do-Direito” (grifo do original). Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. p. 320. Nesse diapasão, Vilanova afirma, ainda, que a teoria da grundnorm está no plano de uma teoria da ciência do Direito, o que nos autoriza a dizer, seria ela uma metateoria. Op. cit. p. 306 e 320.
[7] Para mais nesse sentido, consultar: Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 225; Lourival Vilanova, Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. p. 304 e 305.
[8] VILANOVA, Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 75 e ss.
[9] VILANOVA, Lourival. Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. p. 321.
[10] Acerca dessas e outras considerações desse capítulo, consulte-se Vilanova, idem, p. 314.
[11] Nesse sentido: KELSEN, Teoria Pura do Direito. p. 225; VILANOVA, Lourival, Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. p. 316 a 318.
[12] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed., Brasília: Editora UNB, 1999. p. 58 e ss.
[13] Estudando as constituições compreendidas no período de 1891 a 1946, Lourival Vilanova preceitua que todas elas advieram de uma revolução política, mas também jurídica, na medida em que importaram na “quebra da continuidade constitucional. Consequentemente, normas fundamentais diferentes”. Teoria Jurídica da Revolução, Escritos Jurídicos e Filosóficos, Volume I. São Paulo: Axis Mundi: Ibet, 2003. p. 275/276.
[14] Para mais detalhes sobre o assunto recomendamos a leitura de: BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, et passim e, do mesmo autor, Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 64 e ss. Para ficar nas obras do maior comentador de Kelsen.
[15] Sem prejuízo das normas que detêm a chamada relação de hierarquia material em relação a que lhe é inferior, ou seja, aquelas normas que definem de certo modo o conteúdo que a norma inferior deverá encerrar. Mas esta é apenas uma das espécies normativas dentro de um sistema dinâmico. O importante é que o princípio dinâmico não diz com vinculação de conteúdo inexorável, como a do sistema estático.
[16] No mesmo sentido a doutrina de Vilanova, in Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. p. 316.
[17] Sobre as considerações tecidas neste tópico ver; Kelsen. Teoria Pura do Direito. p. 387 e ss.
[18] Vale o registro de que esse desapego às concepções metafísico-essencialistas é próprio do movimento filosófico do qual Kelsen participou, liderado por Moritz Schlick e conhecido por “Círculo de Viena”, ali pelos idos do início do século XX, e que fundou o positivismo lógico ou Neo-positivismo.
[19] Alguns autores criticam a vacilação de Kelsen quanto a afirmação da indeterminação do Direito. Questiona-se se ela seria mesmo inarredável ou se haveria casos em que a lei seria clara o suficiente para externar seu conteúdo e a vontade do legislador. Para mais detalhes ver: VIDAL, Isabel Lifante. La Interpretación Jurídica em la Teoria del Derecho Contemporânea. Madri: Centro de estudos políticos y consttucionales, 1999.p. 70 e ss.
[20] Kelsen. Op. cit. p. 389, 390.
[21] Kelsen. Teoria Pura do Direito. pp. 264, 265, 268 e 393.