“Consideramos justa toda forma de amor”. - Lulu Santos
Resumo: Esta monografia trata-se de uma revisão bibliográfica acerca da constitucionalidade do casamento homoafetivo. Busca-se demonstrar a proteção deste instituto à luz dos princípios constitucionais, notadamente a dignidade da pessoa humana, macroprincípio orientador e legitimador de toda a ordem jurídica pátria, enfeixando todos os demais princípios fundamentais, a exemplo da liberdade, da legalidade, da igualdade e do respeito à diferença, e da não discriminação em razão do sexo. Um Estado que se pretende Democrático de Direito não pode tolerar distinções infundadas entre os indivíduos, sem qualquer amparo racional, lógico e motivadamente constitucional, como ocorre quando se denega o direito de acesso ao casamento em virtude da orientação sexual dos nubentes. Com efeito, não é outra a justificativa para o óbice do acesso ao casamento pelos pares homossexuais, inobstante camuflada de tantos outros pretextos. Tal assertiva se vislumbra, inter alia: ante o rechaço da teoria da inexistência; o fato de a heterogeneidade de sexos não constituir causa de impedimento ao casamento; a procriação não ser elemento caracterizador do matrimônio; a orientação sexual do indivíduo não violar direitos de terceiros; o uso da sexualidade não influir na dignidade da pessoa humana; não haver vedação expressa constitucional nem infraconstitucional quanto ao casamento entre pares homoafetivos.
Palavras-chave: Casamento. Constitucional. Dignidade. Família. Homoafetivo. Princípios.
Sumário: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO 1 – DO CASAMENTO. 1.1 Do Contexto Histórico do Casamento no Ordenamento Pátrio. 1.1.1.A Influência do Direito Canônico. 1.1.2 Breve Relato Sobre o Casamento nas Constituições Brasileiras. 1.2 Da Tentativa Conceitual do Casamento. CAPÍTULO 2 – DA FAMÍLIA. 2.1 Da Evolução do Conceito de Família. 2.2 Da Família Pós-Constituição de 1988. 2.2.1 O Afeto Como Elemento Propulsor da Família e o Pluralismo das Entidades Familiares. 2.2.1.1 O Reconhecimento da União Homoafetiva como Entidade Familiar pelo STF. CAPÍTULO 3 – DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA. 3.1 Da Constitucionalização do Direito Civil. 3.1.1 A Reconstrução da Dicotomia Público e Privado. 3.2 Da Releitura Constitucional do Casamento Civil. CAPÍTULO 4 – DO BALUARTE CONSTITUCIONAL DO CASAMENTO HOMOAFETIVO. 4.1 Do Casamento Homoafetivo Mediante a Conversão da União Homoafetiva. 4.2 Do Casamento Homoafetivo Mediante a Habilitação Diretamente Junto ao Registro Civil. 4.3. Das Teses Contrárias ao Casamento Homoafetivo. 4.3.1.A Teoria da Inexistência. 4.4. Do Casamento Homoafetivo à Luz dos Princípios Constitucionais. 4.4.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 4.4.2 Princípio da Liberdade. 4.4.3. Princípio da Igualdade e do Respeito à Diferença. 4.4.4 Princípio da Razoabilidade. 4.4.5.Princípio da Proporcionalidade. 4.4.6.Princípio da Não Discriminação em Razão do Sexo. 4.4.7.Princípio da Solidariedade. 4.4.8.Princípio do Livre Planejamento Familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
A Carta Magna de 1988 alçou a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado Democrático de Direito, de sorte que tal princípio adjudica legitimidade e unidade de sentido a todo o arcabouço da ordem constitucional. Por ser atributo intrínseco e valor supremo do ser humano, reclama reconhecimento e proteção plenos na integralidade da ordem, refletindo-se em todos os direitos fundamentais oriundos da estrutura constitucional brasileira. De fato, a dignidade é considerada um macroprincípio norteador e orientador de todo o sistema jurídico, o qual enfeixa todos os demais princípios fundamentais, como a liberdade, a não discriminação, a igualdade e o respeito à diferença, inter alia. Como valor supremo, ostenta caráter absoluto, e por isso não se submete a qualquer tentativa de relativização.
A Declaração Universal da ONU indigita o cerne do princípio da dignidade na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, o que significa que o homem tem o direito de decidir livre e autonomamente sobre os seus projetos de vida e de existência eudemonista, desde que não transgrida a redoma dos direitos de terceiros. A autonomia e a autodeterminação da pessoa estruturam sua individualidade e o desenvolvimento da sua personalidade. Aqui, a sexualidade tem importante espaço na constituição da subjetividade do indivíduo e no reconhecimento da sua dignidade. A orientação sexual, dessa forma, relaciona-se estreitamente com o amparo da dignidade da pessoa humana. De modo que, ao vislumbrarmos trato jurídico diferenciado a uma pessoa em razão da sua orientação sexual, está-se conferindo tratamento indigno à mesma.
Com efeito, um Estado que se pretende Democrático de Direito não deve tolerar qualquer espécie de distinção entre os indivíduos como pretexto de discriminação em razão da orientação sexual dos mesmos. Qualquer pretensão de trato diferenciado entre os indivíduos deve ser muito bem fundamentada, racional, lógica e compatível com os preceitos constitucionais. Se esses pressupostos não forem observados, a diferenciação estará em flagrante infringência à Lei Maior. Diante de tais premissas, questiona-se: o óbice ao acesso dos homossexuais ao casamento é uma diferenciação que possui fundamento lógico-racional?
É nesse contexto que se insere a análise desenvolvida no presente trabalho. Trata-se de revisão bibliográfica pretensa a explanar acerca do estabelecimento do casamento dentro do direito homoafetivo, sob uma ótica constitucional, cuja pesquisa se deu mediante ampla leitura, investigação, fichamento de obras, bem como análise da legislação pertinente, da doutrina e da jurisprudência. Ambiciona-se uma releitura constitucional deste instituto de direito civil, até então monopolizado por pares heterossexuais.
Tal desiderato é principiado com uma tentativa conceitual do instituto do casamento, em breve relato de suas nuances ao longo do tempo, desde as influências do direito canônico até o contexto coevo inaugurado com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Discorre-se sobre a característica histórica – e já superada – do casamento como sacralização e única forma de constituição da família, presente em várias Constituições; e sobre a mudança dos seus contornos face à conjuntura do novo paradigma do Estado Democrático de Direito. Concomitantemente, mostra-se a evolução da família, hodiernamente constituída por outros meios, que não só o casamento, graças ao seu poliformismo, a pluralidade das entidades familiares consagrada na Constituição Cidadã.
Em seguida, explana-se acerca do julgamento conjunto da ADI nº 4.227 e da APDF nº 132, pelo Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, que, em decisão unânime, equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, alçando-as, pois, à condição de entidade familiar, entendida esta como sinônimo de família. Tal decisão, de caráter vinculante e efeito erga omnes é vista pela doutrina como o divisor de águas no âmbito do direito homoafetivo.
Conseguintemente, propõe-se uma lacônica mostra das teses contrárias à possibilidade do casamento homoafetivo, notadamente a teoria da inexistência, doutrina esta rechaçada com o advento da constitucionalização do direito civil, que permitiu a repersonificação do direito de família.
Finalmente, a pesquisa permeia entre os princípios fundamentais do indivíduo, consagrados pela Constituição Federal de 1988, demonstrando o baluarte constitucional que afaga o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Além da dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade e o respeito à diferença, a não discriminação em razão do sexo, e bem assim da orientação sexual, e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade mostram-se respaldo suficiente para autorizar a contração das núpcias entre pares de gêneros idênticos. Defende-se a autossuficiência principiológica no amparo ao casamento homoafetivo, sem embargo da alegação, de alguns doutrinadores e da Ordem dos Advogados do Brasil, da necessidade de se editar uma legislação específica para o trato do direito homoafetivo, por eles chamada de Estatuto da Diversidade Sexual.
Inobstante tardiamente, e ainda de forma tímida, os direitos dos homoafetivos vem sendo previstos em legislações ordinárias esparsas, a exemplo da previdenciária, da sucessória e da penal, com a Lei Maria da Penha – esta elevou o conceito de família à relação íntima de afeto, abraçando também, assim, as uniões homoafetivas. Dentre as questões atinentes ao direito homoafetivo, fala-se muito em adoção por pares homoafetivos, homoparentalidade e filiação, obrigação alimentar nas uniões homoafetivas, a condição do parceiro como herdeiro, o dano moral por discriminação, entre outras.
Em que pese ao alto grau de relevância dos temas mencionados, este trabalho não se propõe a discuti-los, vez que visa a abordar tão só a temática referente ao casamento no direito homoafetivo, tema que, per si, enseja grande polêmica e dissonância doutrinária e jurisprudencial.
Outrossim, apesar da enorme influência dos aspectos religiosos nesta matéria, abster-me-ei de invocá-los neste debate, posto que, pela sua amplitude, rendem assunto para outra dissertação. Demais disso, intenciona-se aqui ressaltar os aspectos jurídicos do objeto da pesquisa no contexto do Estado Democrático de Direito, que é laico e guiado por uma Constituição assentada na dignidade da pessoa humana, como visto. Assim, em que pese sua relevância, a religião e seus dogmas não podem sobrepujar o direito e o texto constitucional.
Da mesma forma, não cabe aos operadores do direito ou aos legisladores arguir ou indagar o porquê da homossexualidade, nem conjecturar sobre sua natureza, se opção, condição ou orientação do indivíduo, sem embargo de cada qual formular seu juízo a esse respeito. Juristas e legisladores devem, sim, reconhecer a homossexualidade como fato da vida social, que, por ser impregnado de valores axiológicos, reclamam normatização tal qual qualquer outro, seja pela edição de legislação específica, seja pela adequação às já existentes mediante analogia ou a interpretação extensiva.
Uma vez pontuados os desígnios a que se presta a presente dissertação neste breve introito, passemos ao estudo da matéria proposta.
1 DO CASAMENTO
1.1.Do Contexto Histórico do Casamento no Ordenamento Pátrio
1.1.1 A Influência do Direito Canônico
Ao longo do processo histórico brasileiro, o instituto do casamento, bem como sua tentativa conceitual por parte do legislador e da doutrina, apresentaram diversas roupagens, cujas mutações se deram em adequação ao contexto sociocultural de cada época, às concepções religiosas, e até mesmo a preconceitos intrínsecos, inerentes à condição humana, que, muitas vezes, acabam por macular, com achismos subjetivos, institutos basilares e de grandiosa relevância da sociedade civil, como o casamento.
Consoante o ilustre civilista Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 37), o casamento, como toda instituição social, varia com o tempo e os povos, razão pela qual “são inúmeras as definições de casamento apresentadas pelos escritores, a partir de Modestino, da época clássica do direito romano, muitas delas refletindo concepções ou tendências filosóficas ou religiosas. A aludida definição é do século III e reflete as ideias predominantes no período clássico”. Assim, para Modestino (apud GONÇALVES, 2010, p. 37-38), o casamento seria a “conjunção do homem e da mulher, que se unem para toda a vida, a comunhão do direito divino e do direito humano”[1].
Caio Mário da Silva Pereira (2004, apud GONÇALVES, 2010, p. 38), por sua vez, aduz que “o cristianismo elevou o casamento à dignidade de um sacramento, pelo qual um homem e uma mulher selam a sua união sob as bênçãos do céu, transformando-se numa só entidade física e espiritual (caro una, uma só carne), e de maneira indissolúvel (quos Deus coniunxit, homo non separet)”.
Percebe-se a histórica e tradicional influência do Direito Canônico[2] na concepção do casamento, tido como instituição sacralizada, por ser identificada com o direito divino; indissolúvel, pois não poderia findar por vontade dos cônjuges, dissolvendo-se tão somente com a morte; e único acesso para constituição da família, vez que não eram reconhecidas ou aceitas outras formas de entidades familiares[3], que não as constituídas pelo matrimônio. Esta milenar concepção de família cristã ainda predomina nos dias atuais. O eminente Orlando Gomes (1998, p. 40 apud CUNHA, 2010) disciplina que
na organização jurídica da família hodierna é mais decisiva a influência do direito canônico. Para o cristianismo, deve a família fundar-se no matrimônio, elevado a sacramento por seu fundador. A Igreja sempre se preocupou com a organização da família, disciplinando-a por sucessivas regras no curso dos dois mil anos de sua existência, que por largo período histórico vigoraram, entre os povos cristãos, como seu exclusivo estatuto matrimonial. Considerável, em consequência, é a influência do direito canônico na estruturação jurídica do grupo familiar. (grifo do autor).
Caparelli (1999 apud CUNHA, 2010) destaca ainda, em relação ao modelo canônico de família, a importância dada à relação sexual entre os nubentes, tornando-a até mesmo pressuposto de validade para a convalidação do matrimônio, que tinha por primordial finalidade a procriação. Segundo o autor, “entendia-se dessa forma que o fim do matrimônio enquanto instituição era a procriação e, por conseguinte, a educação da prole, o que tornava justificável a prática do ato sexual dos cônjuges, autorizado no seio dessa instituição como remédio [...]”.
1.1.2 Breve Relato Sobre o Casamento nas Constituições Brasileiras
A estrutura jurídica do ordenamento pátrio – tanto nas Constituições quanto nas legislações infraconstitucionais – refletiu a influência do direito canônico.
A Constituição Imperial de 1824 previa exclusivamente os interesses do casamento da família real (MATOS, 2011). Até a Proclamação da República, em novembro de 1889, o casamento entre homem e mulher era instituto exclusivamente religioso da Igreja Católica, de modo que, naquela época, quem não fosse católico, não poderia estabelecer o matrimônio. Antes disso, porém, com a chegada dos imigrantes ao Brasil, sendo os mesmos praticantes de diferenciadas crenças e religiões, fez-se necessária a previsão de uma forma acessível ao casamento. Na precisa lição de Clóvis Beviláquia:
“enquanto a quase totalidade dos brasileiros era católica, inconveniente algum havia em alhear-se o Estado à recuperação dos seus direitos. A imigração, porém, com inevitável introdução de novas crenças, tinha de impor a decretação de outra forma de casamento, mais compatível com as circunstâncias” (BEVILÁQUIA, 2001, p. 57 apud MONTEIRO, 2011, p. 55).
Assim, segundo Washington de Barros Monteiro (2011), ainda em 11 de setembro de 1861, surgiu a primeira lei regulando o casamento dos não católicos, o qual deveria ser celebrado conforme o rito religioso dos nubentes, o que representou “o primeiro passo para a emancipação do casamento da tutela eclesiástica”. Em seguida, houve várias tentativas, embora tímidas, com o intuito de secularizar o casamento, sujeitando-o às leis civis. Todavia, o casamento civil só foi previsto em 24 de janeiro de 1890, quando da separação entre a Igreja e o Estado, com o decreto nº 181, de autoria de Ruy Barbosa, que reconhecia como válido, no Brasil, tão somente a forma civil, devendo esta preceder, inclusive, à cerimônia religiosa, sob pena de prisão e multa.
A Constituição Brasileira de 1891 ratificou o reconhecimento exclusivo do instituto civil. Entretanto, a de 1934, volta a reconhecer o matrimônio religioso, desde que perante a autoridade civil e conforme as disposições da lei. A partir de 1950, enfim, o casamento religioso passa a surtir efeitos civis (BRANDÃO, 2002).
1.2 Da Tentativa Conceitual do Casamento
Com o passar do tempo, entretanto, as concepções acerca do casamento e da família, foram se despindo da conotação religiosa, e ganhando novos contornos, mais condizentes com as novas realidades vivenciadas pela sociedade, de modo que as noções de casamento quanto sacramento perdem espaço para a ideia de casamento quanto ato, contrato ou negócio jurídico. Destaquem-se os conceitos clássicos trazidos por Lafayette Rodrigues Pereira e Clóvis Beviláquia, que ensejaram a formulação de outros inúmeros conceitos deles derivados. Para aquele, o casamento “é um ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre, sob promessa recíproca de fidelidade no amor e da mais estreita comunhão de vida” (PEREIRA, 1945 apud GONÇALVES, 2010, p. 38). Este, por sua vez, define o matrimônio como “um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e a educar a prole, que de ambos nascer” (BEVILÁQUIA, 1950 apud GONÇALVES, 2010, p. 39). Para Pontes de Miranda (apud LÔBO), é simplesmente “o contrato de direito de família que regula a união entre marido e mulher”.
Maria Helena Diniz (2007) eleva o casamento à mais importante e poderosa de todas as instituições de direito privado, por ser uma das bases da família, que, segundo ela, é a pedra angular da sociedade, e o define como “o vínculo jurídico entre home e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”. Para José Lamartine Corrêa de Oliveira, o referido instituto é um “negócio jurídico de Direito de Família por meio do qual um homem e uma mulher se vinculam através de uma relação jurídica típica, que é a relação matrimonial. Esta é uma relação personalíssima e permanente, que traduz ampla e duradoura comunhão de vida” (OLIVEIRA, 1990 apud GONÇALVES, 2010, p.40). Para Paulo Luiz Netto Lôbo (2010), “é um ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado”.
Para o exímio professor Washington de Barros Monteiro, o casamento é “a união permanente entre o homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos” (MONTEIRO; TAVARES, 2011, p. 48).
Em que pesem aos respeitáveis conceitos até aqui trazidos, havemos de ponderar que a procriação, hodiernamente, não pode ser requisitada como pressuposto do casamento, vez que inúmeros casais optam por não terem filhos, simplesmente por não quererem; outros, porém, não os podem conceber, seja por questões de saúde, seja pela idade avançada. Marianna Chaves (2011) adverte que é ideia arraigada na doutrina mundial que a procriação não constitui escopo do casamento: “Se assim o fosse, casamentos entre pessoas idosas ou entre pessoas inférteis seriam vedados. Do mesmo modo, não existe óbice algum ao casamento entre parceiros férteis que não desejem ter filhos, mas querem desfrutar dos benefícios e direitos oriundos da relação matrimonializada”. E continua: “o reconhecimento legal de uma família não se encontra mais restrito na lógica do casamento plus crianças. Existem pluri ou multiformas de se constituir família, não se faz necessária a presença de prole”.
Sabiamente, Regina Beatriz Tavares da Silva (2011, p. 48), define o matrimônio como “a comunhão de vidas entre dois seres humanos, que tem em vista a realização de cada qual, baseada no afeto, com direitos e deveres recíprocos, pessoais e materiais” (grifo nosso).
A definição de casamento da autora parece-nos a mais fidedigna, esclarecedora, e hodierna para o instituto no coevo contexto social. De fato, não se remete à procriação como fim do matrimônio, ressalta a reciprocidade de direitos e deveres que deve haver no pacto nupcial, destaca a realização pessoal sentimental dos nubentes, que veem no casamento um desejo de vida plena e feliz, a dois; e enfatiza a base que deve suportar o relacionamento conjugal, fator determinante para a formação da família: o afeto, o qual será estudado em linhas posteriores.
Atente-se ainda para o fato de a autora ter utilizado a expressão “entre dois seres humanos” ao invés de “entre homem e mulher”, como o faz a esmagadora maioria dos autores civilistas. A brilhante definição da autora enseja à possibilidade de firmação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, tão clamada atualmente pela sociedade guetificada dos pares homossexuais, bem como pelos autores mais coevos e ávidos por equidade e pela efetiva aplicação dos princípios fundamentais da Carta Magna, especialmente a dignidade da pessoa humana e seus apêndices. Nas palavras de Marianna Chaves, “a heterossexualidade seria algo intrínseco do casamento apenas se este fosse entendido como tendo a procriação como um dos seus objetivos, mas essa definição tem sido desde há muito abandonada na sociedade ocidental” (CHAVES, 2011, P. 203).
Antes, porém, de adentrarmos ao mérito ao qual se propõe este trabalho, vale dizer, a constitucionalidade do casamento homoafetivo, faz-se mister o reconhecimento da família homoafetiva. Para tanto, passemos ao estudo da evolução histórica do conceito de família, que foi se amoldando à realidade social hodierna.