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O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil

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09/11/2012 às 08:25
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consagra-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família, repaginado pela sua repersonalização dada a partir da constitucionalização do Direito Civil, outrora monopolizador de todo o arcabouço da ordem jurídica, inclusive da própria ordem constitucional. Assim, superaram-se as tentativas hermenêuticas que visavam compreender a Constituição e seus princípios a partir de normas existentes no Código Civil e demais diplomas infraconstitucionais. A Carta Magna é quem deve orientar todo o sistema jurídico, e não por ele ser orientada.

Assim, a repersonalização do Direito de Família permitiu o poliformismo das entidades familiares, libertando-as dos grilhões que a prendiam ao casamento, já que era este o único meio de se constituir a família. Foram reconhecidas novas formas em rol meramente exemplificativo insculpido nos parágrafos do art. 226 da Constituição Federal, a exemplo das uniões estáveis e das famílias monoparentais, sobrepujando a conjugalidade e o critério biológico em reverência ao elemento coevamente caracterizador da estrutura familiar, responsável por criá-la e fundamentá-la: a afetividade. Sendo assim, a Lei Maior passa a açambarcar em seu amparo quaisquer novos arranjos multifacetados que se mostrem aptos a também constituírem o núcleo doméstico da família, desde que ostentem os critérios de publicidade, continuidade e afeto.

Desde então, e em razão da constitucionalização das uniões estáveis, bem como da supremacia, inter alia, dos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade, os vínculos homoafetivos foram sendo tutelados tais quais as relações heterossexuais. Tal tutela teve seu divisor de águas quando da decisão da Suprema Corte, de caráter vinculante e oponível erga omnes, que, em sede de julgamento da ADI nº 4.227-DF, alçou as uniões homoafetivas à condição de união estável, reconhecendo-as, enfim, como genuína entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de família.

 Ante a decisão do STF, alarga-se a polêmica sobre o acesso ao casamento pelos pares homoafetivos. No entanto, tal possibilidade se mostra evidente em face do preceito gravado no § 3º do art. 226 da Constituição Federal, ordenando a facilitação da conversão da união estável em casamento. Vale dizer, a união homoafetiva, como união estável que é, vislumbra a possibilidade de ser convertida em casamento por determinação da ordem constitucional.

Entretanto, a doutrina que o presente trabalho preconizou, muito além de entrever o casamento homoafetivo pela conversão da união homoafetiva, defende esse casamento de forma primária, por meio da habilitação para o casamento de nubentes homoafetivos diretamente junto ao Registro Civil, sem a necessidade de se formalizar a união estável para, só então, requerer sua conversão em casamento. Este, inclusive, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, proferido por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.183.378-RS. A imponente decisão proveu o recurso de duas mulheres que pleiteavam sua habilitação para o casamento civil, fundamentando que a dignidade do indivíduo não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sua sexualidade, e que sua orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento.

Muito embora tal decisão não tenha sido a primeira da máquina judiciária, e inobstante não poder vincular outras decisões, tampouco sua eficácia poder ser oponível contra todos, a prolação do STJ foi a mais significativa no permissivo ao casamento homoafetivo, vez que proferida pela Corte à qual incumbe interpretar as leis federais.

Sem embargo do necessário reconhecimento do casamento homoafetivo pelo Poder Judiciário, a própria Constituição, per si, mostra-se suficientemente apta a respaldar sua consolidação. A concepção constitucional do casamento deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias. Além disso, o casamento não é o objeto final da proteção do Estado, basta lembrar que a Carta Constitucional de 1988 não recepcionou seu conceito histórico tido como única possibilidade de se constituir família. Esta sim, base da sociedade, é que tem especial proteção do Estado, por determinação constitucional, cujo escopo maior é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

A dignidade da pessoa humana, por sua vez, como se observou ao longo de todo o trabalho, é o cerne da justificativa a amparar a possibilidade do casamento homoafetivo. Assim o é por ser ela – dignidade – uma qualidade inerente à condição humana e valor supremo do indivíduo, apresentando, por isso, caráter absoluto e não podendo ser submetida a qualquer tentativa de relativização. Daí a supremacia da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e macroprincípio legitimador e orientador de toda a ordem jurídica, enfeixando, inclusive, todos os demais direitos fundamentais vigentes no sistema.

A pesquisa repisou que, num Estado que se diz Democrático de Direito, qualquer tratamento jurídico diferenciado entre os indivíduos deve ser muito bem fundamentado em consonância com os preceitos constitucionais, sob pena de afronta à Carta Magna. O óbice ao acesso dos homossexuais ao casamento é uma diferenciação desprovida de fundamento lógico-racional e, portanto, deve ser repelida pelos operadores de direito. Não se deve admitir qualquer espécie de distinção entre as pessoas em razão da orientação sexual das mesmas. Ao denegarmos direitos fundamentais ao indivíduo em virtude do uso da sua sexualidade não corresponder ao convencionado pela maioria, estamos violando a sua dignidade, afirmando que ele não pode pretender os mesmos direitos da maioria porque ele não é igual aos demais – ou “menos igual” aos demais. Está-se, assim, relegando-o a uma espécie de “subdignidade”.

Dentre estas e tantas outras arguições auferidas ao longo desta dissertação, a constitucionalidade do casamento homoafetivo se vislumbra. Apesar das conquistas galgadas pelos homoafetivos em diferentes searas do direito, o casamento ainda tenta vencer o véu do preconceito. De fato, não é outra a razão para o óbice ao matrimônio entre pares do mesmo sexo. Não é fácil assumir a homossexualidade no Brasil, onde inevitavelmente ainda se encontram muito preconceito e discriminação infundados, frutos de concepções culturais e sociais retrógradas, herdadas da dominação cultural pautada em valores androcêntricos e reducionismos religiosos. Daí porque a maioria deles ainda resiste “no armário”. Já dizia Guimarães Rosa, em seu clássico Grande Sertão: Veredas: “homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARTIGOS DOUTRINÁRIOS DA INTERNET

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VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11441>. Acesso em: 2 mar. 2012.

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___________. Parecer – Possibilidade de Conversão da União Estável Homoafetiva em casamento Civil. Disponível em: <http://pauloriv71.wordpress.com/2011/05/31/parecer-possibilidade-de-conversao-da-uniao-estavel-homoafetiva-em-casamento-civil/>. Acesso em: 16 mar. 2012.

NOTÍCIAS DE INTERNET

“Casamento civil homoafetivo tem quatro votos favoráveis e julgamento é interrompido”. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto =103594&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=casamento. Acesso em: 28 fev. 2012.

“Decano diz que julgamento é marco histórico na caminhada da comunidade homossexual”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178942& caixa Busca=N. Acesso em: 28 fev. 2012.

“Quarta Turma admite casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=103687&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=uni%E3o%20homoafetiva. Acesso em: 28 fev. 2012.

 “Supremo reconhece união estável homoafetiva”. Disponível em: http://www.conjur.com.br /2011-mai-05/supremo-tribunal-federal-reconhece-uniao-estavel-homoafetiva. Acesso em: 28 fev. 2012.

“Supremo reconhece união homoafetiva”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/ verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931&caixaBusca=N. Acesso em: 28 fev. 2012.

“União Homoafetiva: julgamento no STF da ADI 4227 e da APDF 132”. Disponível em: http://oimpressionista.wordpress.com/2011/05/05/uniao-homoafetiva-julgamento-no-stf-da-adi-4277-e-da-adpf-132/. Acesso em: 28 fev. 2012.

JURISPRUDÊNCIA

ADI 4277, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341

ADPF 132, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001

REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012


Notas

[1] Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. 6, p. 37

[2] Cânon 1055, §1º: “A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade do sacramento”. Cânon 1056: “A união decorrente do casamento é indissolúvel, isto é, não se pode dissolver por vontade dos cônjuges, exceto pela morte”.  (CAPPARELLI, 1999. p. 20 apud CUNHA, 2010).

[3] Ao longo deste trabalho, a expressão “entidade familiar” é usada como sinônimo idêntico de “família”. Quando da promulgação da Constituição Federal, alguns autores fizeram a diferenciação entre ambos os termos, dando àquele uma acepção subalterna, inferior à “família”, vez que esta, segundo eles, só poderia ser constituída pelo matrimônio, enquanto a “entidade familiar”, embora protegida, seria uma mera tentativa da primeira, arranjada por outras formas, que não o casamento, e, portanto, inferior e desmerecedora da mesma importância que teria o casamento. Entretanto, por óbvio, a Constituição Federal de 1988 jamais intencionou distinguir tais entidades, ao contrário, condenou qualquer discriminação, exclusão ou tratamento desonroso direcionado à família, qualquer que seja sua constituição.

[4] CC/1916, art. 358: “Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos”.

[5] CF, art. 226. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

[6] “Novos velhos” modos de convívio porque há muito tempo já existiam, mas só coevamente tem sido despertados, vale dizer, aceitos e reconhecidos pelo ordenamento jurídico pátrio.

[7] “Conjugalidade” aqui entendida em seu sentido lato, vale dizer, enquanto gênero, do qual derivam as espécies casamento, união estável, união homoafetiva, ou outro qualquer arranjo que se vislumbre ou defina.

[8] ADI 4.277-DF

[9] ADI 4.277, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341

[10] ADPF 132, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001

[11] CC, art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (...).

[12] Este mesmo é o entendimento de Roger Raupp Rios: “sem depender de sujeição aos tradicionais esquemas de casamento, união estável ou de concubinato, tais relações apresentam notas distintivas do fenômeno ora juridicizado pelo direito de família. Sua concretização, iniciada pela jurisprudência, reclama a adequada intervenção legislativa, criadora de um regime jurídico peculiar” (RIOS, 2001 apud CHAVES, 2011).

[13] Veja-se o entendimento de Francisco Amaral sobre o Direito Civil: “A importância do direito civil manifesta-se em diversos aspectos. Em primeiro lugar, constitui a base do ordenamento jurídico de todas as sociedades. (...) É no direito civil que a técnica jurídica, conjunto de processos que se utilizam na determinação do direito, mais se desenvolveu, continuando a ser a espinha dorsal da ciência jurídica. O próprio Estado no exercício de sua atividade econômica, a ele se submete” (AMARAL, 2000) (sem grifos no original).

[14] “Na época de nossa primeira codificação, os campos jurídicos do público e do privado estavam bem delimitados. O Código Civil representava a esfera privada na intenção de assegurar a autonomia do sujeito de direito, diante do poder estatal, em harmonia com o individualismo e o liberalismo de então. Aliam-se fundamentos de direitos naturais com o panorama positivista, passando o direito civil a ser sinônimo de Código Civil. Ao público cabia o papel de intervir o menos possível na esfera privada; apenas deveria garantir as condições necessárias para que os indivíduos agissem segundo sua livre vontade” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Perspectiva civil-constitucional. 2011).

[15] "Ainda que o texto legal não a proclame, a diversidade de sexos é essencial para o casamento em todas as civilizações" (VENOSA, 2008). “O casamento entre pessoas do mesmo sexo é inconcebível. A existência da diversidade de sexos constitui, entretanto, uma condição natural, tendo-se em vista a conformação física de certas pessoas, dado que repugna cogitar da hipótese de casamento entre dois homens ou entre duas mulheres, fato que pertence aos domínios da insânia” (GOMES, 1998 apud CHAVES 2011). “Apenas uma reforma na Constituição brasileira poderá apartar a heterossexualidade como a base do casamento” (PEREIRA, 2007 apud CHAVES, 2011). “Nem se cogite, nessa hipótese, de que se pudesse falar em casamento regulado pelo Código Civil, ainda que, por qualquer erro ou inadvertência, venha o ato da união registrar-se no Cartório. Isso porque, pelo mesmo Código, o casamento, embora sem qualquer determinação expressa, de que se realize entre homem e mulher, de acordo com as suas rigorosas exigências, não pode prescindir de tal circunstância, indispensável à sua própria existência” (AZEVEDO, 2002 apud CHAVES, 2011).

[16] Em sua obra, Marianna Chaves colaciona um excerto do posicionamento de João Gilberto Gonçalves Filho, quando então Procurador da República, na exordial da ação civil pública intentada em 2005, com intuito de assegurar o reconhecimento legal do casamento homossexual, que, com a devida licença, trago também à baila, por oportuno. Vejamos: "Todo o mundo sabe que homem só casa com mulher e mulher só casa com homem, não havendo a possibilidade de algo diferente e isso é tão certo que ninguém discute. Só que talvez as pessoas não parem para refletir, como deveriam, que existem certas coisas que são certas porque ninguém discute e ninguém discute porque são certas. Ou seja, existem práticas humanas tão enraizadas no espírito cultural coletivo que paira uma sensação geral de que as coisas foram assim, são assim e vão ser sempre assim. É exatamente esse dogma cultural que a presente ação civil pública vai combater, orientada pelo espírito de tolerância e de respeito com as diferenças. Afinal, trata-se de diretriz normativa que deflui do texto constitucional e que o Estado Brasileiro não poderá jamais olvidar" (Justiça Federal de São Paulo, Subseção de Guaratinguetá. Processo 2005.61.18.000028-6).

[17] Código Civil. Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.

Art. 1.523. Não devem casar:

I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;

II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; (...)

Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos:"De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."

Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. (...) (grifos meus)

[18] Trecho do poema “Nosso Tempo”, de Carlos Drummond de Andrade.

[19] “A teoria do casamento inexistente foi criada pelo escritor tudesco do séc. XIX, Zachariae, em Comentários ao CC francês de 1804, que surgiram na Alemanha no ano de 1808 e, em 1839 foram traduzidos por Aubry et Rau. Posteriormente, no ano de 1911, a tese foi desenvolvida por Saleilles em estudo semelhante” (PEREIRA, 2007 apud CHAVES, p. 214).

[20] A Teoria Tridimensional de Miguel Reale “demonstra que a norma é oriunda de um valor atribuído a um fato (norma = fato + valor), donde é o valor que enseja a proteção da norma jurídica, e não o fato propriamente dito. Vale dizer, o valor é o que atribui significação ao fato abarcado pela norma, razão pela qual, se o elemento que ensejou a proteção de determinada situação fática estiver presente em outra, a interpretação extensiva ou a analogia demandará pela extensão do regime jurídico normatizado a esta última. Isso quer dizer que, por mais que a lei traga a expressão “o homem e a mulher” (ou seja, “fato” heteroafetivo), o valor por ela protegido não é a heterossexualidade, mas o amor de duas pessoas que gera uma entidade familiar (...) (VECCHIATTI, 2008).

[21] Neste sentido, Ragazzi e Garcia: “Prevalece entre nós, portanto, a concepção kantiana de que a dignidade da pessoa humana faz com que esta seja concebida como fim, e não como meio, noção que repudia toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[22] Segundo Ragazzi e Garcia, foi o filósofo Immanuel Kant quem mais influenciou o pensamento acerca da dignidade humana: “segundo ele, ‘as coisas tem preço, as pessoas tem dignidade’. Para Kant, a dignidade é o valor absoluto da racionalidade humana. Enquanto as coisas são seres destituídos de razão, relativas, portanto, as pessoas são seres racionais e possuem vontade, sendo que é esta vontade que lhes atribui dignidade, reconhecida como valor e atributo maior da pessoa humana” (grifei). (RAGAZZI E GARCIA, 2011).

[23] Neste mesmo sentido, Ana Carla Harmatiuk Matos preleciona: “Há de conhecer-se a dignidade existente na união homoafetiva. O conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo. a sexualidade está dentro do campo da subjetividade, representando uma fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, e partilhar a cotidianeidade da vida em parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da experiência humana” (MATOS, 2011).

[24] “O postulado da dignidade humana consagra a ideia de que o homem, em virtude tão somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado” (REGAZZI e GARCIA, 2011).

[25] Quanto à força normativa do preâmbulo constitucional, Walter Claudius Rothemburg alega: “os princípios instalam-se confortavelmente no preâmbulo, pleno de força normativa”.  Segundo o autor, os princípios alocados no preâmbulo ostentam a mesma força jurídica dos em outros espaços normativos. (ROTHEMBURG, 2003, p. 74 apud RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[26] Ilustrando quão maléfica é a negação ao exercício de liberdades dos indivíduos, Ragazzi e Garcia relembram a ditadura militar no Brasil: “Toda vez que o Estado suprime, restringe ou nega o exercício de liberdades inerentes à dignidade da pessoa humana, todos saem perdendo e, em muitas situações o resultado é catastrófico. O povo brasileiro foi vítima de uma cruel ditadura, época em que praticamente se aniquilou a liberdade de expressão. Foi necessária muita luta para que o país se redemocratizasse. Muitos dos brasileiros que, corajosamente, se opuseram ao regime e à ausência de liberdade que ele impunha foram mortos, presos, torturados, exilados. Tudo isso em nome de quê? Não havia justificativa plausível. A Constituição de 1988 foi erguida com o exato objetivo de representar um verdadeiro contraponto ao regime ditatorial que havia dominado o país naqueles assombrosos tempos, para que, enfim, e sem exceções, a liberdade abrisse suas asas sobre todos os brasileiros. Se assim o é, também a liberdade de orientação sexual está amplamente protegida pela Constituição Federal.” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[27] A fim de uma melhor compreensão acerca da força normativa de princípios não explícitos, a exemplo da razoabilidade, Ragazzi e Garcia fazem a distinção entre regras e princípios. Segundo ou autores, a principal diferença entre ambos está no grau de abstração com que se apresentam: enquanto o conteúdo normativo estabelecido pelo princípio é tido como geral, vinculado por normas vagas, amplas e abertas, que comportam uma série indefinida de aplicações, as regras são dotadas de normatividade mais específica. “O reconhecimento de que os princípios constitucionais, dada sua generalidade, se traduzem nos princípios gerais de direito, deflagra-lhes a possibilidade de estar, ou não, expressos no Texto Constitucional, de modo que, ainda que implícitos, serão dotados da mesma eficácia normativa. (...) É exatamente este contexto que nos leva ao reconhecimento do princípio constitucional da razoabilidade, que, ainda que não expressamente previsto no texto Constitucional, goza de importante eficácia e prestígio tanto na doutrina quanto na jurisprudência” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[28] Atente-se para o fato de alguns autores, a exemplo de José Ragazzi, Thiago Garcia e Walter Claudius Rothemberg não considerarem a proporcionalidade enquanto princípio, mas enquanto critério de ponderação e interpretação constitucional, em razão dela (a proporcionalidade) não poder ser ponderada com outros princípios justamente por ser ela quem determina a ponderação. Em sentido contrário, Paulo Vecchiatti, Ana Paula de Barcellos e Luís Roberto Barroso, consideram-na princípio partindo-se de sua natureza teleológica, e não do seu conteúdo. Convém citar a escorreita colocação de Barroso: “o emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à procedência desses mandamentos dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta” (BARROSO e BARCELLOS, 2006, p. 361).

[29] Constituição Federal, de 1988: art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[30] Sobre posicionamento no mesmo sentido, veja-se excerto do voto do ministro relator Ayres Britto no julgamento conjunto da ADI 4.227-DF e APDF 132-RJ: “Noutra maneira de falar sobre o mesmo tema, tanto nos mencionados países quanto aqui na Terra Brasilis pós-Constituição de 1988, o sexo das pessoas é um todo pró-indiviso, por alcançar o ser e o respectivo aparelho genital. Sem a menor possibilidade de dissociação entre o órgão e a pessoa natural em que sediado. Pelo que proibir a discriminação em razão do sexo (como faz o inciso III do art. 1º da nossa Constituição Republicana) é proteger o homem e a mulher como um todo psicossomático e espiritual que abarca a dimensão sexual de cada qual deles. Por conseguinte, cuida-se de proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico” (grifos do autor).

[31] A autora ilustra seu dizer com um exemplo bem elucidativo trazido à baila por Roger Raupp Rios: “Assim, Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir o seu desejo ou sua conduta sexual. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discriminação; se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos, neste contexto, têm sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo”. Complementa ainda o autor que "contra este raciocínio, pode-se objetar que a proteção constitucional em face da discriminação sexual não alcança a orientação sexual; que o discrímen não se define pelo sexo de Paulo ou de Maria, mas pela coincidência sexual entre os partícipes da relação sexual, tanto que homens e mulheres, nesta situação são igualmente discriminados. Este argumento, todavia, não subsiste a um exame mais apurado. Isto porque é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou outra orientação sexual levar-se em conta o sexo, tanto que é o sexo de Paulo ou de Maria que ensejará ou não o juízo discriminatório diante de Pedro. Ou seja, o sexo da pessoa envolvida em relação ao sexo de Pedro é que vai qualificar a orientação sexual como causa de eventual tratamento diferenciado" (RIOS, 2001 apud CHAVES, 2011). (Referência: RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito, 2001, p. 72-73).

[32] Vide 2.2.1 O Afeto Como Elemento Propulsor da Família e o Pluralismo das Entidades Familiares. p. 14         


Abstract: This monograph is a literature review about the constitutionality of the Homoaffective Marriage. It looks for demonstrate the protection of this institute in the light of constitutional principles, notably the human dignity, principle that guides and legitimate the entire legal country order, sheaving all other fundamental principles such as freedom, legality, equality and respect for difference and non-discrimination on grounds of sex. A State which intends to be Democratic can not tolerate unwarranted distinctions between individuals, without any support rational, logical, and so justified constitutional as when it denies the right of access to marriage because of sexual orientation of the intending spouses. Indeed, there is no other justification for the obstacle of access to Marriage for gay couples, regardless of whether camouflaged on so many other excuses. This assertive is envisaged, inter alia: against the repulsion of the theory of the non existence; the fact that the heterogeneity of the genders does not constitute a cause of impediment to marriage; procreation is not characterizing element of marriage; sexual orientation does not violate the individual rights of third parties; the use of sexuality does not affect the human dignity; there is no express impediment constitutional or infra constitutional against the marriage between homosexual couples.

Key words:  Marriage. Constitucional. Dignity. Family. Homoaffective. Principles.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Evellin Costa. O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3418, 9 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22964. Acesso em: 4 mai. 2024.

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