Resumo:No presente trabalho será apresentada a descrição de uma ação judicial e em seguida será feito um estudo do caso a partir de quatro teorias jurídicas influentes na sociedade brasileira, aplicando tais concepções teóricas no caso jurídico concreto. A primeira tratada é de Ronald Dworkin, considerado como um dos principais positivistas contemporâneos. Posteriormente será dado enfoque aos críticos do positivismo. Com Roberto Lyra Filho, jurista brasileiro, e sua pretensão de desdogmatização do direito, seguidamente de Warat e sua ideia de carnavalização do Direito. Por fim, será citado o movimento do Direito Alternativo, projeto esse que tem influenciado muitos magistrados brasileiros. O objetivo é mostrar como diferentes teorias do direito podem ser usadas para legitimar a decisão proferida pelo juiz em favor da parte mais vulnerável, sobretudo, economicamente.
Palavras-chave:Juiz Hércules; romance em cadeia; desdogmatização; racionalidade moderna; castração; positivismo; carnavalização.
Abstract:In this work we present the description of a lawsuit and then there will be a case study from four legal theories influential in Brazilian society, applying such theoretical concepts in concrete legal case. The first is addressed to Ronald Dworkin, regarded as one of the leading contemporary positivists. Later focus will be given to critics of positivism. With Roberto Lyra Filho, Brazilian jurist, and his claim to not dogmatization the right, then to his idea and Warat carnivalization law. Finally, the motion will be referred to the Right Alternative, this project has influenced many Brazilian magistrates. The aim is to show how different theories of law can be used to legitimize the ruling of the judge in favor of the most vulnerable, especially economically.
Keywords:Judge Hercules; romance chain; not dogmatization; modern rationality; castration; positivism; carnivalization.
Sumário:1 A ação judicial; 2 O positivismo de Hércules a serviço dos juridicamente vulneráveis; 3 O papel da desdogmatização na aplicação efetiva da justiça; 4 Uma decisão baseada no processo de carnavalização; 5 O Direito Alternativo em oposição às práticas tradicionalistas; 6 Conclusão.
1 A ação judicial
O caso a ser utilizado teve como ré a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S/A (EMBASA) e como autor da ação um cidadão de nome fictício Antônio, uma vez que teve sua identidade preservada nos autos do processo a que tivemos acesso. O senhor Antônio, viúvo e aposentado, alegou corte indevido no fornecimento de água por parte da empresa supracitada e requereu junto ao Fórum da Comarca da cidade de Conceição do Coité – BA, cidade onde se passaram os fatos, a declaração da inexistência de débitos e a indenização por danos morais apresentando para isto os documentos que comprovaram a existência do contrato de fornecimento de água e da “execução da suspensão de fornecimento de água.”
O autor demonstrou através de faturas anteriores um consumo módico de água – entre 6 e 23 m³ de água – e a empresa requerida não justificou o destoante consumo referente ao mês de março de 2007 de 85 m³ de água no valor de R$ 261,14.
Diante da inexistência da conciliação, o caso foi julgado pelo juiz de direito do Tribunal de Justiça da Bahia, Bel. Gerivaldo Alves Neiva. Em audiência de instrução e julgamento a empresa acusada ofereceu defesa por escrito defendendo a legalidade de sua conduta, citando inclusive decisão do STJ, defendendo assim a culpa exclusiva do autor da ação, uma vez que o mesmo encontrava-se inadimplente o que permitiu a suspensão no fornecimento do serviço.
O juiz então julgou procedente a ação do autor, declarando inexistente o débito do autor com relação à cobrança objeto da ação. Para isso, utilizou os seguintes argumentos: inconstitucionalidade da norma que autoriza a suspensão do fornecimento de água potável ao consumidor, mesmo em mora, por afronta aos princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, além do princípio da proporcionalidade, em vista da imprescindibilidade da água potável para uma vida digna. Considerou ainda os atos da empresa atentatórios a vulnerabilidade do consumidor e impregnados de abuso do direito previstos no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.
Utilizou-se para isso, o juiz Gerivaldo Alves, do controle difuso de constitucionalidade e a possibilidade de não aplicação de norma manifestamente inconstitucional.
Pelos princípios supracitados, o juiz reconheceu que o ato de interromper o fornecimento de água ao autor causou constrangimento moral absolutamente desnecessário, ilegal e, sobretudo, inconstitucional.
Em face dos fatos observados, condenou ainda a ré ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 4.150,00 (quatro mil, cento e cinquenta reais) equivalente a 10 salários mínimos, com incidência de correção monetária e juros legais desde a data do acontecido.
Após a exposição dos fatos, iremos partir então para uma singela explanação e análise das teorias propostas e posteriormente ao seu enquadramento no caso concreto, como forma de legitimar e justificar teoricamente as decisões tomadas pelo juiz supracitado, cabendo ao mesmo a sua justificativa e legitimação legal, a qual iremos nos abster.
2 O positivismo de Hércules a serviço dos juridicamente vulneráveis.
De modo expositivo, apresentamos uma síntese da teoria de Ronald Dworkin presente no livro O Império do Direito (2003). O autor utiliza-se de uma visão de conjunto onde as afirmações jurídicas realizadas pelo juiz são na verdade “opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro” (DWORKIN, 2003, p.271). Afirma que o juiz descobre o direito ao pautar decisões no convencionalismo imposto pelo passado legal e ao mesmo tempo inventa o direito ao embasar suas decisões no pragmatismo oriundo de necessidades jurídicas futuras.
Os juízes, para Dworkin, deveriam então ser orientados por um princípio de integridade responsável pela identificação dos direitos e deveres legais, partindo do pressuposto de que todos foram criados por um único autor, sendo este a comunidade personificada – expressão coerente de justiça e equidade.
Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade (DWORKIN, 2003, p. 272).
Para Dworkin, o juiz que aceite o convencionalismo, visto como o estudo de preferências decisórias do poder legislativo, ou então que se utilize do pragmatismo, sendo este um modo instrumental que objetiva a consecução de melhores regras para o futuro terá pela frente uma limitação angular, não podendo interpretar o labor jurídico em sua totalidade. Dessa forma, o direito como integridade começa no presente e apenas volta seu olhar ao passado na medida em que o contexto contemporâneo assim o determine, revelando o envolvimento histórico presente na integridade.
O magistrado tem em suas mãos, segundo Dworkin, o poder interpretativo. Mas não uma interpretação comum e sim uma interpretação criativa que tem o objetivo não somente de descobrir os propósitos contidos no texto legal de uma dada comunidade como também tem a ambição de impor seus próprios propósitos ao texto, aos dados ou às tradições, responsabilizando-se assim por uma nova criação que pretende se enquadrar nos moldes vigentes.
Assim, o juiz tem a sua função comparada ao de um escritor de romance que aspira continuar o que outro romancista deixou inacabado. Deve inicialmente, interpretar os capítulos anteriores para, posteriormente, continuar a história da melhor maneira possível, deixando-a de herança para o próximo romancista que assim terá igual função. Dworkin realiza essa analogia comparando a complexidade de um romance em cadeia com a complexidade de decisões de casos difíceis utilizando o direito como integridade. Os juízes romancistas “devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível” (DWORKIN, 2003, p.276). Devem seguir o legado anterior criando não de forma totalmente livre, mas seguindo os anseios da comunidade personificada em seu cargo.
Segundo Dworkin, a equidade e a justiça são os princípios balizadores fundamentais no momento da aplicação do direito como integridade. O juiz deve utilizá-los sempre em seu labor, para que de certa forma suas interpretações e decisões sigam sempre o roteiro do “romance” que se encontra inacabado até o momento da sua decisão. Ainda assim, o “romance” estará novamente incompleto no surgimento de uma nova demanda, um novo caso difícil, que exigirá que o juiz então crie o direito utilizando, se necessário, o legado dos juristas anteriores para dar a situação a resposta adequada, a melhor, à luz da equidade e da justiça, como se todo o conjunto fosse obra de apenas um autor.
Todas as questões levantadas pelo teórico servem então de fundamentação para o conceito de “juiz Hércules”, proposto por ele. Seria, para Dworkin (2003, p.287): “[...] um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade”. Tal juiz decidiria então o caso à luz de princípios e não somente buscando seguir os procedimentos formais, sendo considerado por Dworkin (2003, p.288): “[...] um juiz criterioso e metódico”.
Conforme Dworkin (2003, p.292): Uma interpretação tem por finalidade mostrar o que é interpretado em sua melhor luz possível, e uma interpretação de qualquer parte do nosso direito deve, portanto, levar em consideração não somente a substância das decisões tomadas por autoridades anteriores, mas também o modo como essas decisões foram tomadas: por quais autoridades e em quais circunstâncias.
Diante disto, o juiz Hércules poderá chegar a algumas interpretações que ele considere válidas e deverá confrontá-las com outras decisões semelhantes tomadas no passado, para assim saber se o caminho que ele está tomando é o correto a luz da justiça, da equidade e do devido processo legal. Tal procedimento faz-se necessário para que a decisão seja justificada perante as partes, visto que o juiz está a criar um direito “novo”.
O direito como integridade, então, exige que um juiz ponha à prova sua interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer parte de uma teoria coerente que justificasse essa rede como um todo (DWORKIN, 2003, p.294).
Porém, Dworkin faz uma ressalva ao reconhecer que nenhum juiz real terá as mesmas habilidades interpretativas que o juiz Hércules. A capacidade de um juiz verdadeiro agir como Hércules é limitada, irá até certo ponto. Mesmo assim, o juiz real será capaz de realizar a interpretação do direito como integridade, ainda que de forma inconsciente, baseando-se em toda a sua experiência e conhecimento do âmbito em que atua. Para o autor:
Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade (DWORKIN, 2003, p.305).
Diante dos casos controversos, os juízes utilizam-se desta teoria, orientando a interpretação em busca da única resposta correta. Aquela que alia princípios de equidade e justiça ao devido processo legal, proporcionando assim uma decisão permeada de segurança jurídica que consequentemente gera segurança jurídica ao ordenamento como um todo. Desponta assim como defensor dos princípios constitucionais e da sociedade em geral, sendo responsável por uma aplicação legal que leva em consideração as particularidades de cada caso concreto.
Assim, a decisão do caso exposto pode ser vista em consonância com o positivismo contemporâneo de Dworkin uma vez que o juiz Gerivaldo Neiva utiliza princípios constitucionais para fundamentar sua decisão, mostrando que a aplicação do direito deve orientar-se pela equidade e pela justiça, com base no positivismo, ainda que este seja visto como fonte geradora de desigualdades.
Desta forma, o juiz real procurou encontrar – e acredita ter encontrado – a única e a melhor resposta para a lide apresentada, mostrando que a vontade dos legisladores constituintes deve sempre ser levada em consideração na atividade fim do poder judiciário. Procurou assim seguir o “romance em cadeia” deixado inacabado pelos constituintes para que o objetivo de justiça e equidade fosse conseguido e a segurança jurídica fosse assegurada.
Mostrou de certa forma que o combate ao positivismo dogmático pode ser realizado de forma hábil com o próprio positivismo contemporâneo, uma vez que possuímos uma Constituição bastante ampla e que prevê importantes garantias aos seus cosignatários.
3 O papel da desdogmatização na aplicação efetiva da justiça
Analisaremos agora a teoria de Roberto Lyra Filho, que é responsável por uma importante crítica ao dogmatismo jurídico. Em sua obra, “Para um Direito sem Dogmas” (1980), tece inúmeras críticas ao caráter dogmático que o ordenamento jurídico adquire com o desenvolvimento da sociedade.
Inicia sua análise ao definir etimologicamente o dogma, como sendo “[...] primeiro, uma tese ou doutrina e, depois, uma regra ou norma, como a própria lei, a cuja imperatividade atribui um caráter intocável” (Lyra Filho, 1980. p.11). Desvenda a origem histórica do dogma e do dogmatismo, atribuída à Grécia antiga e que define como sendo a prescrição amparada no argumento de autoridade e de poder sem qualquer apoio em comprovações experimentais ou demonstrativas. Trata-se, segundo Lyra Filho (1980, p.12), de “uma verdade absoluta, que se pretende erguer acima de qualquer debate”.
O autor faz críticas a Kant, pela proposição de um dogmatismo racionalista em oposição ao dogmatismo metafísico tradicional, uma vez que ambas as teorias estão permeadas da fragilidade dogmática, simbolizada pela não aceitação de contestações. O dogmatismo seria para Lyra Filho característica fundamental de sistemas que defendem o velho, caduco e que combatem a revolução, o anseio por mudança.
Por estas características, o dogmatismo então é visto por Lyra Filho como a base para uma economia capitalista, ao passo que almeja uma massa que não pretenda se opor as ideias impostas por uma minoria dominante. O dogmatismo atribuía assim ao Direito um caráter divinizado, tendo este inclusive sido chamado de Teologia. O Estado desta forma assumia o papel que era anteriormente desempenhado pela Igreja, no controle das massas e em seu direcionamento ao convívio “harmônico”, embasando-se em teorias dogmáticas que não previam contestação, apenas a aceitação irracional.
Desta forma, a Ciência do Direito é vista como “um saber dos dogmas estatais ou mais amplamente, dos padrões impostos pelas classes sociais que tomem as decisões cogentes” Lyra Filho4 (apud Ferras JR., 1977, p.41). Ocorre a sacralização dos ordenamentos estatais, como se estes fossem obra de uma revelação divina ao invés de serem vistos como um poder originário de complexas relações sociais.
Lyra Filho então propõe uma ciência jurídica da libertação, como já ocorre com a teologia moderna, onde os dogmas são rechaçados e se busca uma adequação as transformações sociais e culturais que ocorre na comunidade. Procuraria assim o direito seguir uma tendência progressista, onde as normas deixariam de exprimir a vontade da classe detentora do poder e se voltaria para as necessidades e exigências dos oprimidos. O pano de fundo que retrata essas mudanças são os movimentos sociais, as lutas de libertação nacional, as reivindicações das minorias étnicas e os parâmetros orientadores do direito internacional em relação ao direito nacional.
Segundo Lyra Filho, o ideal de paz que seria alcançado por meio do direito, para Kelsen, pretende na verdade camuflar a realidade da luta de classes e o papel classista do Estado. O Direito serviria apenas como ferramenta repressiva dos desejos das classes menos abastadas, “veículo de controle social” (LYRA FILHO, 1980, p.34). Restringir toda a prática jurídica ao que está positivado é negar a existência de uma série de fatos, uma vez que a norma engessada não acompanha a complexidade das relações humanas.
O autor acredita que o sistema jurídico deve ser não apenas uma abstração acadêmica seguida às cegas, mas que deve originar-se do extrato social como um todo, atendendo de forma ampla todas as necessidades que aflorem. A norma deve ter seu ponto de partida em um fato social e sua razão última também deve ser um fato social, uma vez que sua função primeira é garantir a todos um leque de direitos fundamentais. Assim, o Direito realizar-se-á de forma plena se constituir uma dialética que abrangerá eficácia, legitimidade e formalização.
Em consonância com o caso exposto, a teoria aplica-se no momento em que o juiz Gerivaldo Neiva realiza uma interpretação que visa a desdogmatização, a contestação de decisões tomadas anteriormente, inclusive pelo STJ, utilizando-se para isso a Constituição Federal em seus princípios fundamentais. Entende que a legislação que estava sendo utilizada para fundamentar as decisões em favor das empresas de fornecimento de água serviria na verdade para que o lado mais frágil da relação fosse subjulgado, uma vez que o consumidor é de fato a parte mais vulnerável.
Assim, utilizou-se da Constituição, buscando eliminar os dogmas e a divinização do Estado e contestou-se tais arbitrariedades, criando-se um novo direito que está em contato mais direto com as reais necessidades da sociedade. O fato social passa então a fundamentar a aplicação da norma, sendo realizada assim uma interpretação mais voltada às aspirações sociais. Visou-se o bem social, a garantia de dignidade ao ser humano e a sua possibilidade mínima de subsistência.
4 Uma decisão baseada no processo de carnavalização
Passaremos agora à contemplação dos textos de Luiz Alberto Warat: “Literasofia” e “ A Ciência Jurídica e seus dois maridos”, presente no livro: “ Territórios Desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade” (2004). O autor considera que sua obra é um reflexo de sua luta para não ser preso a um sistema de ilusões. Resumidamente considera sua “narrativa como poético-existencial, o surrealismo como filosofia e estilística da existência, como forma de vida” (WARAT, 2004, p.22). É perceptível ao longo de seu trabalho uma crítica ao instituído, a racionalidade moderna e a sua pretensão de certeza. O direito nessa perspectiva é tratado como um elemento com função de contribuir com a castração.
A teoria de Warat é abordada inicialmente a partir da sua perspectiva de que todo começo é uma arte e junto com ele vem todas as suas incertezas, suas dúvidas e sua subjetividade. O começo é uma luta contra o inesperado, uma tentativa de fuga da dominação. São múltiplas as possibilidades que se abrem quando se é capaz de um começo, mas alerta Warat (2004, p.20): “Muitos começos são ilusórios. O ano novo só é possível dentro de uma ilusão temporal”.
A racionalidade moderna surgiu como um paradigma com seu excesso de certeza, excluindo a esfera da emoção. Para Warat, diferentemente de uma obra de arte, que não garante objetividade, a pretensão da racionalidade atual – a certeza – é apenas uma ilusão. O individuo acaba preso a uma grande ilusão sendo que a vida deste é apenas fruto desta. Logo é necessário que o indivíduo seja capaz de enxergar a realidade, o que autor considera como uma fuga:
O homem unicamente consegue amar, sonhar, desejar, dotar de sentido ao mundo e a sua vida no interior de um complexo esquema de ilusões. Se prescindirmos, ou permanecemos fora de um articulado de ilusões, tudo se torna (a) significativo. Todo o individuo é uma variável de uma ilusão maior. O final é quando as ilusões se tornam uma Matrix. Aí ficamos prisioneiros das determinações, atrelados pelas sombras do poder (WARAT, 2004, p.20).
A consequência de tal fato é perceptivelmente conhecida como castração. Esta é o excesso de limites impostos as pessoas, que segundo Warat (2004, p.63) “a castração é sobretudo a poda de um desejo”. Logo a castração é tudo que nos impede de alcançar nossa fuga do Matrix, o que nos distancia do saber, do amar, do conhecer, do viver, do sentir. A castração acaba por fechar a visão da possibilidade de um olhar diferente do que não é culturamente instituído, através do medo do distinto. A castração é apenas uma garantia do respeito à ordem e aos costumes instituídos pela racionalidade moderna.
A fuga da castração, dita como necessária, acaba por se torna uma tarefa árdua, pois escapar de tal controle além de um processo difícil é bastante doloroso já que a fuga acaba por se tornar um processo rumo ao desconhecido e à insegurança. A obra Dona Flor e seus dois maridos acaba por se tornar uma peça chave, pois representa a fuga da castração pela personagem Dona Flor (representa a oposição que compõe a realidade entre a razão e entre a emoção). Nas palavras de Warat (2004, p.67):
Redescubro Dona Flor como uma mulher que não consegue se contaminar pela castração. Encanta-me imaginá-la como a heroína da ambivalência, que foge do dever e abre horizontes ao desenjo. Seu valor de plenitude viria da intensidade, da vitalidade, do jeito vibrante com que encara a possibilidade de romper com o costume do desejo, o hábito dos corpos e o dever do sentido.
Os dois maridos representam a oposição na vida de Dona Flor.
Seus dois maridos, como retrato de uma duplicidade convergente persistente, funcionam dialeticamente como espaço de confronto da estabilidade dentro da qual acreditamos existir. (WARAT, 2004, p.68)
Teodoro representa o paradigma da modernidade, é o fruto da racionalidade criticada por Warat. É o retrato do indivíduo que se liga a lógica da obrigação, que não foge da rotina, que não consegue expressar seus desejos, que aparenta a uniformidade e respeita as convenções sociais. “No caso de Teodoro, a vida perde seu movimento, torna-se univocidade de atos e de desejos, repetindo-se nos dias e nas palavras” (WARAT, 2004, p.69)
Vadinho, o outro marido, representa a marginalização, a autonomia, a sensibilidade, acabando por ser o oposto de Teodoro. Vadinho, em definição do próprio Warat (2004, p.69): “É a presença constante do inesperado. A marginalidade como conjunto oxigenante dos desejos”. O personagem acaba por ser o fator de resgate de Dona Flor, pois é através de sua presença que Dona Flor consegue se libertar e fugir da castração.
Os dois representam energias opostas. Vadinho representa a energia feminina, uma energia que simboliza o prazer. A energia de Teodoro, a energia masculina(o Direito se utilizou da energia masculina), por sua vez tem sua essência no dever, na obrigação. Pois bem, a partir da perspectiva da energia dos dois maridos, se torna possível uma análise do que é o Direito para o autor. Segundo Warat (2004, p.87):
Fantasiar ao Direito como protesis anímica (como Marx chamava a religão) para ocultar o inevitável estado de guerra preexistente, e sempre latente, entre o Estado e a sociedade civil, do qual o Direito é tão-somente sua cobertura em chave. Quando se fala de Direito, chamamos de razão ao que, simplesmente, é regulação da força triunfante.
O que se pode perceber com a existência dos indivíduos castrados, de uma maneira geral, é a pretensão de uma suposta uniformidade, representada no Direito especificamente como a não aceitação da existência de incerteza jurídica. Tal quadro é fruto da racionalidade moderna. Segundo Warat, em tais circunstâncias a democracia não é possível, já que de uma maneira geral essa só é plausível em contextos de ordens plurais, não na situação de ordem singular proposta pela sociedade moderna e sua racionalidade.
O que o autor nos remete é o fato da democracia ser consolidada apenas em uma sociedade plural, sua legitimação ocorre através da existência dos conflitos, das transgressões, ou seja, a democracia possível através da marginalidade. Nas palavras de Warat (2004, p.70): “[...] não existe democracia sem marginalidade (adultério), sem uma louca cavalgada, o delírio febril, os ais do amor que vêm da experiência comum da gente”.
No contexto da sociedade atual é notável a necessidade do surgimento de um novo para ser instituído, que resultaria mudanças no Direito vigente, Warat (2004, p.76), cita:
[...] quando uma sociedade sente a necessidade de sair de um Estado poluído de proibições, ela deve repensar a função jurídica estatal, passando a ver suas instituições como um lugar de produção coletiva dos desejos, considerando a ordem fora de seu lugar consagrado, isto é, criando uma ordem carnavalizada e percebendo a democracia como um espaço social polifônico.
O processo do novo segundo Warat não pode ser feito apenas pela substituição por um instituído pronto - não existe uma fórmula pronta para essa troca - já que tal fato acarretaria apenas a mudança de instituído com a continuação da mesma racionalidade moderna. O que pode ser observado é a maneira pelo qual se consegue mudar de instituído, que se dá por meio da Carnavalização que acarreta mudança da interação social ao território da produção do saber. Carnavalizar é a epistemologia que torna possível se chegar à democracia.
Importante é salientar sobre a existência de máscaras, uma destas responsável por apagar a emoção e o prazer com função reguladora. A outra máscara libertadora com função libertadora faz com que o indivíduo fuja da vida automatizada. Uma dúvida surge: Como é a máscara do direito? Segundo Warat, essa tem uma função disciplinadora e são estéreis na medida em que não são capazes de criar uma ciência jurídica democrática. “Carapuças impotentes ante a rotina cultural. Escritos estéreis não conseguem procriar uma cultura jurídica visceralmente democrática” (WARAT, 2004, p.83).
Apesar do ponto de vista pessimista é possível o uso da máscara libertadora no Direito (processo de Carnavalização). Tal fato ocorre baseado no uso do Direito pensado como garantia dos desejos da sociedade plural. Nesse caso se faz necessária também transformação na ciência jurídica. É imprescindível para mudança, que ocorra renovações no ensino jurídico, permitindo uma visão mais crítica sobre a realidade, inovando assim a prática judiciária. Nessa situação cabe ao professor ser o transgressor da ciência acadêmica. Cabe a ele carnavalizar o ensino do Direito.
Ao abordar a decisão sobre a ótica de Warat, um juiz ao julgar um caso deve considerar a norma vazia para partir de tal pressuposto. Observa-lá tomando como base o momento em que ela esta sendo acionada, ou seja, o juiz deve julgar o caso interpretando como um começo e não se baseando no instituído.
Na decisão feita por Gerivaldo Neiva se torna perceptível tal situação, pois este, ao julgar o caso não se limitou aplicar a norma pela letra da lei (o fato do morador ter descumprido o pagamento da conta de água daria o direito à fornecedora de cortar a água). Observou a realidade do caso e não se limitou ao instituído (julgou o caso diferente do instituído, pois houveram outras decisões favoráveis a ré, como uma do STJ) e escutou o lado mais fraco (ao considerar válida a observação do autor da ação, que alegou exorbitante o valor de uma das faturas em relação as demais). O que se pode perceber é que o juiz, desta maneira, julgou o caso através da hermenêutica do direito aliado com o processo de carnavalização.
Vale a pena fazer duas ressalvas:
a) Ao enquadrar o caso na teoria de Warat este considera o direito composto por simulacros como: “todos possuem o mesmo direito”. Tais elementos contribuem para a existência da segurança jurídica, a qual, segundo o autor, não passa de uma ilusão. Pois bem, ao julgar o caso o juiz não pode se ater apenas a enquadrar sua decisão na lógica da racionalidade moderna, da segurança jurídica e a dos seus simulacros. Deve sim tomar sua decisão através do processo hermenêutico aliado com a carnavalização como já citado anteriormente;
b) Warat alerta que não se pode substituir um instituído por outro instituído já que tal fato pode acarretar apenas a substituição de um novo instituído, acabando por impedir o surgimento do “novo”. Por exemplo, o movimento do Direito Alternativo não pode apenas substituir o direito vigente por outro direito instituído, segundo Warat.