Resumo: o objetivo desta pesquisa é produzir uma teoria pluridimensional dos Direitos Humanos, observandoas variáveis: fato, norma, valor, discurso, história, indivíduo e instituição, que fazem parte, em nosso modo de ver, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Com esse objetivo, aplicamos um modelo de investigação que amplia a teoria tridimensional do jusfilósofo Miguel Reale e descreve dialeticamente nesse sentido a possível dinâmica dos direitos humanos.
Palavras-chave: teoria pluridimensional dos direitos humanos; epistemologia jurídica; programa de pesquisa dos direitos humanos.
Introdução
Segundo o analista político Hedley Bull (2002), na história internacional da Humanidade verificamos que os Estados buscaram sempre fazer alianças e equilíbrios de poder, criando sistemas regionais de interesse mútuo, porém, até 1945 não se percebe concretamente o surgimento de uma sociedade internacional compartilhando valores, regras, instituições ou entãodesenvolvendo uma cultura estatal abrangente.
De fato, é somente depois da Segunda Guerra Mundial que verificamos gradativamente o aparecimento de uma sociedade de Estados, cuja lógica institucional extrapola as fronteiras nacionais projetando,ao mesmo tempo, a existência de uma sociedade mundial sem fronteiras.
Refletindo esse contexto histórico, o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) funciona como instrumento operacional dessa nova ordem contratualista, fundada voluntariamente entre os Estados. Por seu intermédio, a sociedade anárquica internacional (visto que não existe um Leviatã comandando a ordem dos países) tem procurado limitar a violência e também garantir a propriedade nacional com a adoção de normas pactuadas entre os Governos interessados nesse tipo de acordo.
A sociedade anárquica de Estados, segundo Hedley Bull, é instituída a partir dos princípios basilares da autonomia, da liberdade, da autoridade compartilhada, da autodeterminação dos povos, da prudência, dos bons costumes, e da ética solidarista.
A sociedade internacional anárquica representa o estado de natureza lockiano, onde as comunidades interagem dentro de princípios ordenados, entretanto, é necessário ressaltar que os princípios jamais resolverão o problema da potencial da guerra hobbesianade todos contra todos, pois não se consegue produzir um critério mundial que seja absoluto e imponha uma ordem mundial através de leis comuns para todos os países na mesma intensidade. Nesses termos, a sociedade anárquica internacional funciona bem apenas se houver capital moral entre os seus participantes (respeito, confiança, fraternidade, etc.), mas como isso é algo instável, recorre-se novamente à ajuda do Leviatã de cada pais no sentido de produzir regras locais com poder de obediência
De acordo Hedley Bull, para fundar uma ordem social qualquer, toda organização humana precisa de dois componentes básicos, que são as regras e as instituições. As regras são réguas sociais, e precisam ser produzidas, aplicadas, fiscalizadas, legitimadas, adaptáveis, e protegidas, conforme propuseram habilmente autores como Hobbes, Kelsen, Hart e Bobbio. Por exemplo, Hans Kelsen, em sua “Teoria pura do Direito” enfatizou que o direito é um conjunto de regras que dependem dos órgãos burocráticos da comunidade. Nessa direção, as regras só têm validade e eficácia quando são coercitivas e se desenvolvem formalmente num determinado território nacional.
Indo mais além, Hedley Bull destacou a presença da teoria solidarista complementando a teoria legalista dos positivistas no plano internacional, observando que no caso dos direitos humanos em geral o cotidiano é garantido pelo consenso entre as partes e somente desse modo ganha status obrigatório com eventuais punições que serão estabelecidas voluntariamente entre os Estados signatáriosem se tratando, aqui, de uma convenção internacional.
Conforme será demonstrado nesse estudo, portanto, os direitos internacionais dos direitos humanos reproduzem igualmente a lógica contratualista nos termos lockianos, baseada na anarquia moralmente ordenada entre os Estados, porém, esses direitos internacionais precisam da colaboração nacional do Leviatã introduzindo em seu ordenamento positivo local as regras que formalizam e se adaptam às convenções internacionais.
2 Teoria Pluridimensional
Originalmente, o ilustre jusfilósofo Miguel Reale afirmou em sua obra “Teoria tridimensional do Direito” que o fenômeno jurídico deveria ser observado através de três variáveis interrelacionadas (Fato, Norma, e Valor), pois a norma não pode ser concebida independentemente dos eventos sociais, dos hábitos, da cultura, consequentemente é um produto histórico-cultural voltado para o bem comum, e na prática representa um processo instável no momento da aplicação da norma positiva.
De acordo com o professor Montarroyos (2012) além dessas três variáveis, marcam presença obrigatório no prática jurídica os indivíduos, as instituições, a História e o discurso, resultando numa teoria pluridimensional de natureza dialética e transdisciplinar do Direito. Nessa nova releitura, ofenômeno jurídico comportadiferentes planos de estudo ou disciplinas de base. Inclui a Ciência do Direito, que interpreta e sistematiza o ordenamento positivo; a Sociologia, que estuda a relação entre o fenômeno jurídico e a sociedade; a História, que observa a evolução do Direito na sociedade; e a Filosofia, que realiza o estudo ontológico do Direito.
Na “Teoria pluridimensional” há uma série de estruturas qualitativas e organizacionais do conhecimento jurídico (as variantes), que se encontram interligadas. De acordo com o perfil dos indivíduos participantes, portanto, as instituições podem variar entre o individualismo, o coletivismo e o meio termo público-privado. Por sua vez, o desempenho das instituições modifica a rotina da comunidade, fazendo surgir novos fatos sociais e históricos. Nesse contexto dialético, as normas sofrem impactos consideráveis por força da subjetividade e os valores respondem às demais variantes, modificando a experiência jurídica, fazendo reagir, inevitavelmente, o discurso que pode ser prático, empirista, transcendental, idealista ou prático-transcendental. A “Teoria pluridimensional” afirma também que a dinâmica dessas variáveis interage com a história jurídica e com a sociedade como um todo, embora na prática cada uma dessas variáveis busque a sua hegemonia no discurso dos agentes institucionais (por exemplo, existem os historicistas, os positivistas, os realistas, entre outros).
3 Analisando a Declaração Universal da ONU
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi escrita de acordo com as variáveis da sociedade pluralista existente na Modernidade, apresentando normas, indivíduos, fatos sociais, discurso, instituições, valor e históriaem sua estrutura de pensamento.
As normas jurídicas regulam a conduta do indivíduo, e a organização da sociedade e do Estado, compondo assim a ordem jurídica em prol de um bem maior, que é a Justiça humana. As normas garantem idealmente a positivação dos critérios políticos baseados na Democracia,das regras (jurídicas), e também dos princípios humanistas, todos eles interligados na mesma prática institucional.
De acordo com a Declaração Universal, os indivíduos são seres humanos, dotados de direitos e deveres, e estão inseridos em determinada cultura, mas assumem racionalmente depois da segunda guerra mundial a intenção de superar seus vícios culturais com um objetivo de construir uma sociedade mais justa e fraterna.
A História aparece implicitamente no texto da Declaração Universal pressupondo o contexto marcado pela barbárie, pelas injustiças e pelaviolência simbólicagerada pela guerra segunda mundial. Como resposta, surgiu a Declaração propondo uma consciência transformadora, que busca a humanização e principalmente a garantia da dignidade da pessoa humana acima de qualquer projeto estatal.
O discurso da Declaração Universal é humanista, pois tem por base a humanização de todas as atividades sociais, até mesmo do ato de morrer e nascer. Considera-se também que os Direitos Humanos além de serem globais são progressivos e não podem deste modo ser revogados depois de instituídos em cada país, ou seja, não há retrocesso ou eliminação das normas humanistas que já tenham sido adotadas, caso contrário, constitui quebra dos protocolos internacionais da ONU.
Na Declaração Universal as instituições previstas deverão garantir os direitos humanos, a sua inviolabilidade, e promover a ordem social fraterna, justa e democrática. Incluem-se órgãos como a ONU, os Estados e os não Estados, entre eles, Ongs e sociedade civil organizada.
De acordo com a Declaração Universal as instituições precisam ser democráticas pois assim permitirão a participação e a comunicação entre as minorais e maiorias, promovendo o alargamento da cidadania com dignidade e respeito.
Do ponto de vista dos fatos sociais, a Declaração Universal projeta uma sociedade pluralista. Há nesse sentido o reconhecimento de uma grande diversidade de ideologias, de religião, de culturas em geral, e espera-se diante desse quadro que as divergências sejam resolvidas através de uma relação amistosa entre os envolvidos, partindo-se do pressuposto de que todos buscam um bem maior, que é a paz e a justiça na própria comunidade.
Os valores prescritos na Declaração Universal são originários das primeiras revoluções que tratam da questão dos direitos humanos (as chamadas revoluções burguesas). Os principais valores prescritos nesse documento histórico da ONU são: a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade. Além deles, encontramos também valores relacionados com a dignidade da pessoa humana e a justiça humana universal, que constituem, no geral, os pilares axiológicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
4 Ordem internacional e os direitos humanos
A sociedade internacional, conforme apontou inicialmente Hedley Bull, consiste num grupo de países que se relacionam diplomaticamente compondo uma anarquia ordenada lockiana. Essa sociedade surge da necessidade da ordem no período do pós guerra induzindo assim as nações a compartilharem pacificamente valores, regras e instituições comuns, formando uma comunidade cujo propósito é garantir a coexistência de múltiplas maneiras de exercício da soberania dos Estados em seus respectivos territórios, sem causar ameaça à autodeterminação dos outros povos.
Geralmente, porém, imaginamos a ordem pública como sendo um fenômeno estritamente estatal, consistindo em regras e instituições burocráticas, conforme salientaram os positivistas, como Hobbes, Kelsen, Hart e Bobbio. Para os positivistas não existe sociedade mundial ou direito internacional, pois para isso existir seria necessário ter a presença de um Estado Leviatã para se garantir a ordem, o que não é acontece na realidade.
Contrários a essa visão há outros analistas que acreditam no direito internacional formado não só por regras estatais, mas também por princípios humanistas e por critérios democráticos. Acreditam esses teóricos que o modelo da sociedade internacional deve se pautar na prática do consenso entre as nações, fazendo surgir novos costumes e tratados internacionais tendo por base a solidariedade e não a arbitrariedade de cada país.
Nessa direção, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, traz um progresso indubitável na sociedade de Estados, pois manifesta uma preocupação largamente garantista em seu texto oficial pactuado no sentido de tornar mais humana a prática política, civil e penal, independentemente se a pessoa estiver na condição de vítima ou réu. Nesse Pacto, encontramos também uma teoria pluridimensional.
Inicialmente, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos nos leva a perceber alguns fatos indesejáveis, sobretudo a arbitrariedade recorrente do Estado, através de condutas antijurídicas, violadoras do direito humano, realizando também guerras absurdas; cultivando o cego nacionalismo e a idolatria ao poder estatal; além da discriminação burocrática, oficializando nesse sentido preconceitos e permitindo prisões arbitrárias.O Pactobusca combater esses fatos sociais acabando, por exemplo, com as barreiras de acesso à Justiça, com a discriminação social e com aopressão política.
Os valores principais apresentados pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos são basicamente a liberdade, a paz e a justiça universal. Na essência, reaparece o Iluminismo entre os Estados-partes que declaram concordar com o acessomais fácil à Justiça e ao Poder Judiciário; e também aos cargos eletivos; preocupando-se além disso com a dignidade social. No sistema de valores desse Pacto o foco imediato é com a liberdade civil e política.
As normas desse Pacto, segundo o modelo anarquista, criam teoricamente condições para que os indivíduos possam gozar de seus direitos, com a garantia de que os Estados reconheçam e preservema dignidade da pessoa humana. Essas normas pactuadas são fundamentalmente cooperativas, baseadas no consenso das nações no plano internacional, que assumem a tarefa de implementar em seus países as regras e os critérios necessários ao desenvolvimento humano sustentável.
Percebe-se nas entrelinhas do Pacto Civil e Político uma vigilância permanente sobre as condutas dos Estados em seus países a fim de evitar a repetição histórica do totalitarismo, por isso, notamos imediatamente que o seu discurso égarantista (cerca de 50% dos seus artigos vão nessa direção; enquanto a outra parte se destina a criar a Comissão dos Direitos Humanos). Nessa perspectiva, o discurso do Pacto considera que todos os povos e indivíduos têm direito à sua autodeterminação e o Estado deve então garantir a justiça, a liberdade e autogestão dos recursos econômicos e ambientais na sociedade civil e no mercado.
Os indivíduos são sujeitos dotados de direitos à vida, liberdade, igualdade, respeito, mas também possuem deveres perante à comunidade local e planetária. Um exemplo é o artigo 16 que diz que toda pessoa terá o direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
De maneira geral, as instituições de acordo com o Pacto Civil e Político devem ser sustentáveis, ou seja, devem promover o desenvolvimento da liberdade com respeito e responsabilidadepensando nas presentes e futuras gerações. Em particular, o Pacto criou o Comitê de direitos humanos justamente para orientar, fiscalizar e assessorar a efetivação dos direitos internacionaisnesses termos, monitorando inclusive a conduta dos países signatários.
Concluindo, podemos avaliar que o Pacto dos Direitos Civis e Políticos atende a uma sociedade anárquica internacional de Estados, criando direitos pactuados que buscam garantir a dignidade, a liberdade, a igualdade e o respeito entre povos e nações, dentro de uma filosofia pautada no consenso entre as partes.
5 Discussão
A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem aprovação generalizada e progressiva depois de 60 anos de história, entretanto, o seu reconhecimento nunca foi automático, linear, pacífico, ou inquestionável, tendo em vista que existe uma realidade concreta cheia de barreiras, vícios, custos, falhas, e impedimentos institucionais. Continuam ocorrendo violações porque faltam instrumentos educativos e coercitivos; culturas novas; militantes esclarecidos; e novos projetos e ações públicas que garantam a efetividade dos direitos humanos em realidades específicas.
Segundo o professor Heiner Bielefeldt (2005), há um risco permanente de idealização dos direitos humanos, caso não haja ligação com o direito positivo nacional e com a política local. Além disso, crescem as interpretações e os relativismos que enfraquecem o discurso absolutista dos direitos humanos. Paradoxalmente, devemos admitir, são essas mesmas interpretações que garantem a validade histórica dos direitos humanos e sua utilidade prática na sociedade ao longo de gerações.
O tempo todo na História da humanidade há sempre uma disputa cultural entre religiosos e filósofos, ocidentais e orientais, individualistas e comunitaristas; ateus e espiritualistas, quebuscam controlar a bandeira dos direitos humanos. Nessa perspectiva, de acordo com Bielefeldt (op. cit.), o iluminismo de Kant tem grande importância na justificação filosófica dos direitos humanos, todavia, ele é incompleto porque não consegue incluir a cultura dos povos e a sua história particular. Apesar dessa lacuna teórico-empírica a moral kantiana nos leva ao ideal do bem maior onde o homem não é um meio, mas um fim em si mesmo, situado historicamente na busca da liberdade; da autonomia; e do progresso da razão e do consenso.
Bielefeldt considerou também que a modernidade sistematizou e deu vida aos direitos humanos porque não havia até 1948 coerência e unidade jurídica e política desses direitos numa linguagem universalista. Consequentemente, só podemos entender a Modernidade e os direitos humanos em uma constante dialética, através de um contexto reflexivo e autocrítico o paradoxo da modernidade que cria exclusão-inclusão; direitos e injustiças.
Essa ambivalência histórica da modernidade, segundo Bielefeldt,despertou a preocupação social peloautoequilíbrio diante da presença de uma série de problemas modernos. Os direitos humanos aparecem, portanto, como resposta a essa problemática histórica.
Na sociedade moderna, a burocratização, a exemplo do que considerou Max Weber, estabelece a racionalidade instrumental; desencanta o mundo; efaz o planejamento e o tecnicismo dominarem o tempo natural da vida.
Outro problema da sociedade moderna é o individualismo burguês incentivando a alienação do social do indivíduo, destruindo os laços fraternos da comunidade em nome de uma liberdade máxima desenfreada e inconsequente para a sociedade civil.
Outro problema típico da modernidade é a massificação que atinge amplos setores, como a cultura, a burocracia, o Poder Judiciário, o sistema eleitoral, e assim por diante.
O ateísmo também faz parte dessa lista de problemas, propondo que se jogue fora o que é místico para em seu lugar dominar a razão iluminista. Na prática, porém, existem resistências visíveis, como aumento das seitas e dos ritualismos que invadem não só os templos religiosos mas também as instituições civis, governamentais, jurídicas e até o próprio mercado. O debate em torno do crucifixo nas repartições públicas e a tradição capitalista do Natal de Cristo são dois exemplos dessa resistência contra o racionalismo lógico ateu.
Diante disso tudo, Heiner Bielefelt considerou que os direitos humanos não curam essa ambivalência ou desequilíbrios, mas funcionam como espelho ou resposta desse contexto; eles representam, portanto, um novo “ethos” de liberdade individual, devendo por isso mesmo serem usados como instrumentos racionais e não ideológicos puramente.
Concluindo sua argumentação, Bielefeldt afirmou que na discussão dos direitos humanos o mais importante não é a tolerância liberal, mas o reconhecimento político-constitucional das diferenças humanas. Nesse caso, a dignidade humana deve ser dotada de responsabilidade moral no exercício da autonomia do sujeito de direito, integrada com o respeito à liberdade, à igualdade e à fraternidade dos povos. Nesses termos, sendo os direitos humanos um instrumento da racionalidade, eles permitem a comunicação social ou jurídica, funcionando portanto como espaços privilegiados de debates e consensos.
De acordo com Bielefeldt, o debate dos direitos humanos e o pluralismo real das culturas não pode ser desligado jamais do tema da cidadania e da economia modernas. Para muitos pensadores, o acesso a essas duas esferas (progresso e civilização) é geralmente um direito da humanidade – ou seja: todos têm o direito de usufruir da Modernidade, embora saibamos que é uma característica da Modernidade o constante incluir-excluir, criar-destruir, inovar e envelhecer tudo, consequentemente, nessa perspectiva filosófica, os direitos humanos estão sempre correndo atrás da Modernidade para serem atuais e efetivos.
Analisando o que foi exposto até agora, notamos que os direitos humanos exercem função existencialista, democrática, hermenêutica e moralista sobre a realidade social.Função existencialista, colocando em evidência o ser humano e a sua capacidade política enquanto sujeito, filosoficamente aberto ao mundo. Função política, projetando amensagem de que precisamos participar e facilitar o acesso ao poder; reconhecer direitos; e construir uma sociedade mais digna e fraterna. Função moralista, por sua vez, colocando em evidência o indivíduo livre, autônomo, responsável na sociedade em que vive. Por último, função hermenêutica, definindo uma série de princípios que sustentam a interpretação do texto com o contexto.
Segundo Flávia Piovesan, no artigo publicado na Revista Internacional dos Direitos Humanos (SUR), de 2004, intitulado “Direitos Sociais, Econômicos, Culturais e os Direitos Civis e Políticos”, o debate filosófico aponta realmente para uma metafísica existencialista, ressaltando como núcleo dogmático a dignidade existencial da pessoa humana.
Para tornar esse núcleo realidade, a autora desenvolveu uma metodologia hermenêutica, que deve servir para ligar o texto dos Pactos Internacionais com o contexto específico de cada povo, sobretudo buscando nesse caso integrar os princípios humanistas com as regras jurídicas e os critérios políticos.
Do ponto de vista axiológico, essa metodologia não é neutra, nem estática. A autora enfatiza que os direitos humanos são produtos de reivindicações morais, são construções históricas como disse Hannah Arendt, e não surgem de uma vez só e para sempre, como sugeriu Norberto Bobbio.
Do ponto de vista teórico, a aplicação do programa de pesquisa da autora aponta para uma teoria humanista centrada na história dos direitos humanos. Ela diz que na História esses direitos ganharam muitos significados, porém, desde 1948 a teoria dos direitos humanos varia entre a visão hobbesiana e positivista do Estado forte e soberano para monopolizar os direitos humanos; e de outro lado, entre a visão kantiana da soberania centrada na cidadania universal como centro do poder.
Apesar das variações, os direitos humanos são direitos e não meras recomendações, ou gestos de caridade ou de compaixão.
Do ponto de vista teórico, ainda, Flavia Piovesan destaca que os direitos humanos são universais e indivisíveis; ou seja, não existe separação entre os direitos civis e os direitos econômicos, nem entre os direitos culturais e o direito ao desenvolvimento e assim por diante. A proposição aqui é pensar os direitos humanos sempre numa totalidade integrada, simultaneamente.
Do ponto de vista prático, consequentemente, é apontada uma série de medidas ou ações institucionais, político-constitucionais, que podem ligar o ideal com o real, ou seja, a metafísica com o dia a dia das pessoas. A autora recomenda: 1- criar políticas setoriais voltadas para os sujeitos de direitos que já existem ou então que devem surgir obrigatoriamente, pois a pessoa humana não pode viver somente na abstração filosófica; 2- fortalecer também a democracia porque é o espaço onde se reelaboram os entendimentos e finalidades práticas dos direitos humanos; 3-aumentar e otimizar a justiciabilidade e acionabilidade dos direitos humanos; 4-atribuir mais poder de petição aos indivíduos e grupos sociais sobre os órgãos internacionais e nacionais; 5-incentivar a cultura da paz; 6-aproximar os órgãos econômicos internacionais e o Mercado para promoverem um desenvolvimento humano sustentável, entre outras medidas complementares.
Por último, do ponto de vista contextual, Flávia Piovesan considera o ideal de um “Estado de Direito Internacional”, fundado no poder do consenso e da legitimidade, o que é um ponto de vista positivista bem diferente da concepção anarquistainternacional que defende um estado, com letra minúscula, ou situação de direito internacional, sem a presença de um novo Leviatã mundial.
6.1 Direitos humanos e educação
No aspecto filosófico, a autora Dione Ribeiro Basílio (USP, 2009) argumenta que o direito à educação constitui um direito fundamental que garante o mínimo existencial do cidadão numa sociedade moderna e pluralista. Para desenvolver essa proposição, a autora recorreu às Declarações da ONU, onde ela percebeu que a educação tem função estratégica ou basilar na dignidade da pessoa humana, visto que permite a realização de sua liberdade de expressão e de pensamento e desse modo o torna sujeito autônomo criativo e socialmente responsável.
No aspecto metodológico hermenêutico, a Declaração Universal enfatiza que as suas normas precisam ser progressivamente aperfeiçoadas e integradas com as normas positivas nacionais, e que além desse princípio da complementaridade, existe o princípio da irrevogabilidade ou inderrogabilidade, que proíbe qualquer regressão ou retrocesso das conquistas existentes no país; desse modo, o direito humano não pode ser mal interpretado ou desprezado quando ele já foi instituído de alguma forma. Em outras palavras, “Não pode ser admitida nenhuma restrição ou derrogação aos direitos fundamentais do homem reconhecidos ou então em vigor”.
No aspecto moral, a autora Dione Ribeiro enfatiza que o direito a educação é um projeto iluminista que tem raízes no pensamento de Rousseau, onde se postula a ideia de que pela educação nasce uma consciência ativa e transformadora da vida. Para Rousseau, nascemos fracos, estúpidos, sem juízos, e diante disso a educação escolar tem papel revolucionário. Por isso, segundo Rousseau, a educação deve ensinar o indivíduo a exercer a curiosidade e a liberdade.
No longo processo de aprendizagem, a base, a alfabetização tem sido posicionada como prioridade número 1 de uma visão iluminista libertadora. Entretanto, bem advertiu a autora, o modelo de educação não pode repetir o sistema “bancário” criticado por Paulo Freire, restrita ao sistema de eficiência do saber através de máquinas e provas. Precisamos humanizar a relação do educando com o mundo e com o próprio educador com a intenção de tornar a educação um processo construído por pessoas humanas e não por máquinas ou objetos massificados.
No aspecto teórico humanista, de acordo com Paulo Bonavides, citado pela autora, a educação baseada na dignidade da pessoa humana permite ao cidadão marcar a sua presença no mundo de forma democrática, construtiva e transformadora. Por isso, segundo Dione Basilio, o direito à educação, um direito social da segunda geração, implica o dever prestacional do Estado independentemente de qualquer conjuntura político-partidária.
Esse dever foi proclamado pela Declaração de 1948, considerando sua importância vital para o desenvolvimento da personalidade humana. Em 1966, de acordo com pacto dos direitos econômicos, sociais e culturais, o ensino fundamental figura inclusive como essencial para se projetar a efetivação dos princípios da igualdade, liberdade e solidariedade.
No aspecto prático, político-constitucional, portanto, o analfabetismo é uma violação dos direitos fundamentais, pois de acordo com a Declaração Universal e das Convenções dos direitos civis, políticos e culturais, o Estado deve promover e garantir a erradicação da pobreza, da desigualdade e do atraso intelectual do seu povo através da oferta de um ensino gratuito, universal e de qualidade. A autora enfatiza como exemplo brasileiro que o Poder Judiciário pode interferir na vida da municipalidade quando for acionado, sendo que a experiência tem mostrado mais sucesso na questão sobre a quantidade de vagas ofertadas e muito menos na questão da qualidade do ensino com um todo.
Todo titular ao direito à educação fundamental solicita mandado de segurança devido à natureza do pedido constitucional em relação ao papel e responsabilidade do Estado. O atendimento dessa demanda coloca em xeque a qualidade de vida das futuras gerações, e por esse motivo a sua defesa coloca a sociedade numa situação de progresso, e não de atraso “iluminista”.
Finalizando, destacou a autora que existem duas instituições que o cidadão isolado ou em grupo pode reivindicar legalmente seu direito humano. De acordo com a LDBN, o Ministério Público pode ser acionado para pressionar os governos; a constituição autoriza também o Ministério Público na defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 129). Além disso, o Conselho Superior do Ministério Público em sua súmula número 7 manifestou que é legítima a propositura de Ação Civil Pública defender questões relacionadas com a dignidade da pessoa humana e com o acesso à educação de crianças e jovens entre outras situações. A autora destaca também a Defensoria Pública pela lei 11448/2007 considerando legítima a propositura de Ação Civil Pública na defesa de interesses de pessoas carentes em defesa de interesses metaindividuais. Segundo ressaltou a autora, essa legitimidade não afronta o poder do Ministério Público, pois a Constituição lhe autoriza participar da vida social sempre em defesa dos mais carentes economicamente ou dos “necessitados” onde se incluem todos aqueles que precisam garantir suas demandas e usufruir do direito do devido processo legal, do contraditório, e da ampla defesa.
A educação fundamental, através da alfabetização é uma cláusula pétrea, não pode ser desprezada como política de Estado gratuita e universal inclusive atendendo pessoas que não tiveram acesso à escola na idade ideal ou própria. O artigo 208 da Constituição Federal diz que o dever do Estado será exercido com a garantia do ensino fundamental. E mais ainda: não dependea garantia do ensino fundamental de conveniências e discricionariedades do administrador público, pois de acordo com a Constituição esse direito público subjetivo depende do dever do Estado de assegurar sua prestação de forma gratuita e obrigatória. Consequentemente, tanto a Constituição como a Lei de Diretrizes Bases da Educação Nacional (LDBN) declaram que na falta ou descaso do poder público na efetivação desse direito à educação fundamental, caberá ao cidadão ou a um grupo organizado de pessoas prejudicado,finalmente recorrer ao Poder Judiciário sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente, havendo também a possibilidade de o administrador público responder por crime de responsabilidade.
No aspecto contextual brasileiro, o ensino fundamental está garantido constitucionalmente como um serviço de responsabilidade do Estado oferecendo um ensino gratuito e de qualidade para todos os cidadãos entre 8 e 14 anos de idade.
Apesar de ser o ideal “legalizado”, na prática existe infelizmente um enorme déficit escolar envolvendo repetência, evasões e até mesmo falta de escolas e professores em grande parte do território brasileiro. Contra essa situação, a autora mostra que os tratados e convenções internacionais assinados pelo Estado brasileiro constituem instrumentos poderosos no primeiro passo contra essa realidade.
6.2 Direitos humanos e diálogo intercultural
Com o objetivo de propor um ambiente político-constitucional que possa valorizar o diálogo entre índios e não índios em questões polêmicas da sociedade nacional, Pedro Peruzzo (USP, 2011) considerou que o Direito como mediação pode ser exatamente esse espaço e ele deve ser construído levando-se em consideração 6 necessidades institucionais.
A primeira necessidade é filosófica-existencialista-ontológica-metafísica, e consiste na busca permanente da dignificação da pessoa humana inserida no seu mundo cultural. A segunda, de natureza metodológica, observa a importância do diálogo e da compreensão hermenêutica das diferenças culturais. Boaventura Santos propõe, por exemplo, uma hermenêutica diatópica. A terceira necessidade, de natureza axiológica, chama a atenção para o etnocentrismo que deve ser superado, pois dificulta o alargamento humano do debate cultural. Nesse ponto, o autor acredita que o diálogo deve se pautar na experiência da racionalidade e também da sensibilidade humana. A quarta necessidade, de natureza teórica, propõe a aplicação da teoria crítica do direito, focalizando o discurso normativo com suas ideologias e utopias que mascaram a transparência do que é vivido no presente. O autor inclui a teoria crítica de Wolkmer, entre outros. A quinta necessidade, de ordem prática, preocupa-se em superar a homogeneização social e jurídica, desse modo, propõe-se como solução garantir a simetria dialógica, usando a tecnologia da mediação aplicada ao campo étnico-cultural, ou então, antropológica por meio do Juiz que deve agir inspirado no paradigma do consenso democrático. Outra estratégia é desenvolver uma educação em todos os níveis pautada nesse tipo de ambiente cultural medianeiro entre índios e não índios. Por último, existe uma necessidade contextual que é superar a herança da modernidade que priorizou o papel racionalizante do Estado de Direito, a massificação, a impessoalidade, e de maneira pro ativa precisamos caminhar para uma atitude emancipatória, nesse caso, coincidindo com as proposições da pós-modernidade, com maior poder ao microssocial; às diferenças culturais; e ao diálogo libertador.
6.3 Direitos humanos e justiça de transição
No programa de pesquisa da autora Priscila Beltrame (USP, 2011), existe a preocupação de construir uma ponte argumentativa entre um ambiente altamente conflitivo na direção de outro ambiente pacifista. Esses dois extremos, coincidem abertamente, com o modelo do estado de natureza hobbesiano de guerra civil na direção de um Estado democrático de Direito, embora a autora não cite Thomas Hobbes.
Segundo a autora, a guerra civil, a pobreza, o atraso educacional, a intolerância religiosa, a ditadura do mais forte, ou seja, o estado de natureza hobbesiano no caso do Afeganistão e do Timor Leste não ficou à mercê de um contrato social espontâneo entre as partes, mas precisou de intervenção da ONU e dos Estados Unidos, no sentido de buscar o estado democrático de direito, entretanto, segundo a autora, essas e outras intervenções têm fracassado a curto e médio prazo,ficando insustentáveis e novamente geram outros conflitos na sociedade.
Diante dessa estrutura de pensamento, estado de guerra civil e Estado democrático de direito, guerra e paz, a autora contribui transformando os direitos humanos numa espécie de observatório político-constitucional, sobretudo relendo o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Esse observatório apresenta seis ângulos de análise. O primeiro ângulo, ontológico ou filosófico, enfatiza a necessidade da garantia da efetivação e da inviolabilidade dos direitos humanos. Nesse sentido, citando Hannah Arendt, todo ser humano que é um cidadão, tem direito a ter direitos.
O ângulo metodológico de observação enfatiza a necessidade de ligar o ideal universalista desses direitos com a realidade de cada povo, nesse caso, hermenêutico-fenomenológico, o que contribui fornecendo um esquema de trabalho que providencia a compreensão das múltiplas formas culturais de se praticar o direito além daquele já conhecido pela visão positivista.
Os antropólogos na África já mostraram que entre as comunidades nativas existe um ordenamento jurídico nativo assentado na diferença cultural de cada etnia. O ângulo axiológico valoriza, portanto, certos elementos e despreza outros. Nessa perspectiva, a autora coloca o pluralismo jurídico como valor contrário ao monismo jurídico que prejudica a coexistência pacifica entre a diversidade cultural.
O ângulo teórico, por sua vez, é desenvolvido por meio da teoria crítica do direito; nesse ponto, a autora enfatiza que a ideia do direito centrada na visão totalitarista hobbesiana não atende ao projeto pacifista na sociedade pós-ditadura ou pós-conflito. Para que haja um desenvolvimento institucional humano e sustentável, a teoria enfatiza a integração da política, com o direito positivo, os direitos costumeiros e os Tratados internacionais humanistas.
Do ponto de vista prático, na sequência, a autora aponta um problema e uma série de soluções. O problema é reconstruir a comunidade nacional, maculada pela violência, pobreza, analfabetismo, desconfiança, intolerância e desesperança.
A solução para sair desse estado de natureza hobbesiano consiste na aplicação de uma série de incentivos positivos: 1-adotar o pluralismo jurídico como fonte de inspiração, produção e interpretação do direito e dos processos judiciários; 2-facilitar o acesso ao Poder Judiciário; 3-cultivar um novo paradigma constitucional centrado na cooperação; 4-incentivar o uso de tecnologias extrajudiciais: arbitragem, mediação, conciliação, e negociação; 5-rever o passado buscando recuperar a verdade dos fatos, a memória crítica e a educação libertadora; 6-codificar o direito costumeiro; 7-erradicar o analfabetismo; 8-motivar o empoderamento político local; 9- estimular economias solidárias; 10-perdoar dívidas; 11-monitorar o processo de transição dos governos e a forma como são indicados juízes e promotores; 12-, incentivar o juiz a participar politicamente na garantia dos direitos fundamentais; 13- resumindo, segundo a autora: fazer a justiça de transição, valorizando o desenvolvimento institucional sustentável e humano e também o acesso à justiça com a emergência dos direitos difusos.
O ângulo que observa o contexto, finalmente, leva em consideração o estado de natureza que pode ressurgir a qualquer momento, se a ponte humanista não for consolidada de forma abrangente, inclusiva, moralizante e justa.