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Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização

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3. HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA PENA DE PRISÃO

A privação da liberdade como punição surgiu num momento em que a prevenção passou a ser, juntamente com a retribuição, um dos fins que deveriam ser perseguidos pela sociedade ao se aplicar a pena. O castigo meramente vingativo e expiatório cedeu lugar à prisão à medida que o humanismo se desenvolveu com o advento do Iluminismo, pois o que se desejava era a racionalização das penas como forma de valorização do homem, de modo que este fosse punido proporcionalmente ao ato cometido, evitando-se exageros nas punições.

Dessa forma, a prisão tornou-se a pena por excelência, tendo substituído gradativamente a pena de morte, os castigos corporais e as penas infamantes, pois permitia que a retribuição fosse dada de forma eficaz e proporcional ao delito, ao mesmo tempo em que era possível “adestrar” o delinquente, de modo a torná-lo apto ao convívio social. Assim, o surgimento da prisão como pena está muito ligado à atuação da religião na docilização dos delinquentes, de modo que as primeiras experiências carcerárias foram levadas a cabo por eclesiásticos interessados em reformar os homens sem negar-lhes a dignidade. Assim surgiu o termo “penitenciária”, oriundo da palavra penitência – isto é, o reconhecimento pelo preso do erro cometido, a confissão e a aceitação da punição.

Sabe-se, contudo, que o cárcere comporta defeitos de difícil resolução, dada a sua própria natureza opressora e segregatória, razão por que vem sendo duramente criticado desde fins do século XIX até hoje. A crise da prisão originou anseios abolicionistas em um expressivo segmento dos estudiosos do tema, mas o fato é que sua história é marcada pela sua constante reforma, sendo considerada por muitos um “mal necessário”.

3.1. A Antiguidade

A pena tinha, na Antiguidade, a finalidade de expiação daquele que violou as normas de convívio social - ou seja, tinha caráter meramente retributivo. Não se almejava a correção do delinquente ou a ameaça dos indivíduos a fim de que se abstivessem de cometer crimes, mas apenas infligir ao desviante o mal que causou na exata medida da gravidade do crime cometido, a exemplo do que previa a lei de talião (“olho por olho, dente por dente”).

Preferia-se, naquele tempo, infligir dor física ao condenado como forma de justa retribuição pelo dano que causara, sendo que as prisões tinham apenas a função de custódia do réu – era mantido encarcerado até que fosse julgado ou fosse cumprida sua pena, cujas variedades se resumiam à pena de morte, às penas corporais e às infamantes.

A Antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu desde tempos imemoriáveis, não tinha caráter de pena e repousava em outras razões. Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda dos réus, para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados ou executados. Recorria-se, durante esse longo período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites) e às infamantes. (BITENCOURT, 2004, p. 04)

As prisões também eram usadas com frequência como sala de torturas com o objetivo de extrair a “verdade” dos réus, e eram localizadas em prédios improvisados, comumente calabouços, aposentos em ruínas ou insalubres de castelos, conventos abandonados, palácios, torres e outros edifícios em condições subumanas de habitabilidade, já que não existia ainda uma arquitetura penitenciária própria naquela época.

Outra forma de prisão comum entre os gregos e romanos era a prisão por dívida, que consistia numa maneira de obrigar o devedor a saldar seu débito para que fosse solto, mas tinha caráter de meio de coerção civil, e não criminal.

Assim, Grécia e Roma utilizavam a prisão com a finalidade eminentemente de custódia, para impedir que o réu se furtasse do castigo a ser-lhe imposto até que houvesse a execução da condenação respectiva. Mesmo na prisão civil, o objetivo era de fazer com que o devedor cumprisse suas obrigações coercitivamente, mas não era concebida como uma pena em si mesma.

3.2. A Idade Média

O fim da Antiguidade é tradicionalmente marcado pela queda do império romano e a tomada da Europa pelos povos germânicos a partir das chamadas invasões bárbaras. Neste período, a instabilidade política reinante levou os governantes a usarem a lei penal como forma de se manterem no poder por meio de torturas, suplícios, amputações e execuções públicas, as quais exerciam ao mesmo tempo a função de intimidar e de distrair a população.

Durante todo esse período histórico a ideia de pena privativa de liberdade não ganhou relevo, e a prisão continuou a ter a finalidade eminentemente custodial que tinha no período anterior - local onde os réus aguardavam o momento em que protagonizariam um espetáculo sangrento para servir de exemplo à população.

As sanções criminais na Idade Média estavam submetidas ao arbítrio dos governantes, que as impunham em função do status social a que pertencia o réu.  Referidas sanções podiam ser substituídas por prestações em metal ou espécie, restando a pena de prisão, excepcionalmente, para aqueles casos em que os crimes não tinham suficiente gravidade para sofrer condenação à morte ou a penas de mutilação. (BITENCOURT, 2004, p. 09)

No entanto, nessa época surgem duas espécies de prisão que, embora não se caracterizassem como penas privativas de liberdade nos moldes que conhecemos, exerceriam grande influência na constituição da prisão-pena: a prisão de Estado e a prisão eclesiástica.

Segundo BITENCOURT (2004, p. 09), na prisão de Estado “somente podiam ser recolhidos os inimigos do poder, real ou senhorial, que tivessem cometido delitos de traição, e os adversários políticos dos governantes”. Existiam duas modalidades de prisão de Estado: a prisão-custódia, onde o réu aguardava a execução da pena aplicada de fato (em geral mutilações, açoite, morte etc.), e a detenção temporal ou perpétua, que variavam conforme a gravidade do crime, estando o réu sujeito ainda ao perdão real.

A prisão eclesiástica, por sua vez, era destinada “aos clérigos rebeldes e respondia às ideias de caridade, redenção e fraternidade da Igreja, dando ao internamento um sentido de penitência e meditação” (BITENCOURT, 2004, p. 10). Os infratores eram recolhidos em uma ala dos mosteiros para que, por meio da oração e da penitência, se arrependessem dos seus pecados e se corrigissem; no entanto, as condições das masmorras eram tão precárias e a flagelação tão intensa que dificilmente se saía vivo de lá.

O direito medieval caracterizou-se por ser ordálico e profundamente corrompido. Primeiramente, porque a inocência ou culpa dos acusados eram aferidas mediante as chamadas “provas de Deus” – o réu era submetido ao fogo, à água fervente ou ao ferro em brasa e, caso sucumbisse, seria porque Deus o abandonara diante do pecado que cometera. Assim, o castigado se sentia merecedor do castigo e se resignava diante do julgamento de Deus, convencendo-se da própria maldade. Em segundo lugar, porque frequentemente os juízes cobravam dinheiro das partes no processo, de modo que as sentenças tendiam a ser arbitrárias e injustas.

O pensamento cristão, dominante na Idade Média, influenciou determinantemente na evolução das penas e na consolidação da prisão no direito secular. A procura da felicidade e o conceito de que a oração, o arrependimento e a contrição contribuíam mais para a emenda do que a simples dureza do castigo constituiriam as bases dos primeiros sistemas penitenciários, que incorporaram práticas e métodos como o isolamento celular, a escuridão, o jejum e o silêncio como parte do processo de correção do criminoso.

Assim, surgiu a concepção de pena medicinal, que era o fundamento das penas canônicas, pois significava a correção da alma do criminoso por meio do arrependimento sincero e da compreensão da gravidade de sua culpa, sem necessariamente levá-lo à morte.

Santo Agostinho, em sua obra mais importante, A cidade de Deus, afirmava que o castigo não deve orientar-se à destruição do culpado, mas ao seu melhoramento. Essas noções de arrependimento, meditação, aceitação íntima da própria culpa, são ideias que se encontram intimamente vinculadas ao direito canônico ou a conceitos que provieram do Antigo e do Novo Testamento. (BITENCOURT, 2004, p. 13)

Não obstante a penitência tenha sido incorporada ao conceito de pena do direito secular, esta não perdeu seu caráter vindicante, de castigo e expiação, motivo pelo qual, embora seja notável a influência, não se confundem a prisão canônica e a prisão moderna.

3.3. A Idade Moderna

O declínio do feudalismo, o inchamento dos núcleos urbanos, as longas guerras e a pobreza que assolava a Europa em fins do século XVII e início do século XVIII ocasionaram um enorme aumento na criminalidade, em razão da vultosa população de mendigos e vagabundos que circulavam pelas cidades europeias, chegando a representar um quarto da população do continente. Esse contingente provinha das aldeias incendiadas e saqueadas nos constantes conflitos bélicos e da perseguição religiosa, e, embora fosse preciso defender-se desse perigo social, a pena de morte não se apresentava como solução viável, visto que implicaria um verdadeiro massacre.

Nesse contexto, as classes minoritárias da elite inglesa criaram instituições de correção a fim de defender-se contra a criminalidade e de conter seu avanço. A pedido de alguns integrantes do clero inglês, o Rei autorizou a utilização do Castelo de Bridwell para que ali fossem recolhidos os vagabundos, os mendigos, os ladrões e os autores de pequenos delitos.

A suposta finalidade da instituição, dirigida com mão-de-ferro, consistia na reforma dos delinquentes por meio do trabalho e da disciplina. O sistema orientava-se pela convicção, como todas as ideias que inspiraram o penitenciarismo clássico, de que o trabalho e a férrea disciplina são um meio indiscutível para a reforma do recluso. Ademais, a instituição tinha objetivos relacionados com a prevenção geral, já que pretendia desestimular outros para a vadiagem e a ociosidade. (BITENCOURT, 2004, p. 16)

Acredita-se que a experiência levada a cabo no Castelo de Bridwell logrou êxito considerável, já que instituições semelhantes foram sendo criadas por toda a Inglaterra, as quais passaram a ser denominadas houses of correction ou bridwells, seguindo o modelo daquela primeira experiência, baseado no trabalho e na disciplina rígida.

No ano de 1697 surge na Inglaterra a primeira workhouse, casa de trabalho destinada à correção de ociosos e pequenos delinquentes nascida da união de várias paróquias da cidade de Bristol. Assim, “[...] O desenvolvimento e o auge das casas de trabalho terminam por estabelecer uma prova evidente sobre as íntimas relações que existem, ao menos em suas origens, entre a prisão e a utilização da mão-de-obra do recluso, bem como a conexão com as suas condições de oferta e procura” (BITENCOURT, 2004, p. 17).

Em fins do século XVI surgiram em Amsterdam, na Holanda, casas de correção bastante semelhantes às inglesas, umas destinadas somente a homens (rasphuis), outras apenas a mulheres (spinhis) e, por fim, criou-se uma seção especial para jovens. Tinham o mesmo objetivo das instituições inglesas, qual seja o de tratar a pequena delinquência. Assim, os delitos mais graves continuavam a ser combatidos com as penas usuais da época, como o exílio, o açoite, o pelourinho, a morte etc. Não obstante fossem voltadas preponderantemente a pequenos delitos, tendo escala de uso limitada, constituíram importante passo na construção da pena privativa de liberdade moderna.

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BITENCOURT (2004, p. 18) explica que a criação dessas instituições procurava alcançar o fim educativo por meio do trabalho constante e ininterrupto, do castigo corporal e da instrução religiosa, instrumentos os quais eram coerentes com o conceito que se tinha na época de correção dos delinquentes e dos meios hábeis para alcançá-la. Tal se dava em razão da influência calvinista, doutrina segundo a qual o trabalho não devia pretender a obtenção de ganhos nem satisfações, mas somente tormento e fadiga.

As prisões de Amsterdam, criadas nesse modelo e contando com um programa de reforma dos internos, foram muito bem-sucedidas no seu intento e foram imitadas em diversos países europeus, cujas experiências tornaram-se famosas pela sua importância histórica na delineação do que se tornaria a prisão como a conhecemos hoje.

3.3.1. Causas da transformação da prisão-custódia em prisão-pena

Antes de analisarmos as diversas causas que levaram à transformação da prisão-custódia em prisão-pena, vale a pena expor mais detidamente o pensamento de alguns autores que defendem posicionamento eminentemente político-ideológico sobre o tema, relacionando o surgimento da pena de prisão com o desenvolvimento do capitalismo.

Sobre as casas de trabalho, Dario MELOSSI e Massimo PAVARINI (1985 apud BITENCOURT, 2004, p. 21-22) afirmam que “[...] a criação desta nova e original forma de segregação punitiva responde mais a uma exigência relacionada ao desenvolvimento geral da sociedade capitalista que à genialidade individual de algum reformador”, pois acreditam que os modelos punitivos se diversificam não por um idealismo pueril ou pela luta por melhores condições das prisões, mas sim com o fim de adestrar a mão-de-obra à lógica capitalista, permitindo a hegemonia da classe dominante, composta pelos proprietários dos bens de produção.

Para Melossi e Pavarini, a prisão surge quando se estabelecem as casas de correção holandesas e inglesas, cuja origem não se explica pela existência de um propósito mais ou menos humanitário e idealista, mas pela necessidade que existia de possuir um instrumento que permitisse não tanto a reforma ou reabilitação do delinquente, mas a sua submissão ao regime dominante (capitalismo). Serviu também como meio de controle dos salários, permitindo, por outro lado, que mediante o efeito preventivo-geral da prisão se pudesse “convencer” os que não cometeram nenhum delito de que deviam aceitar a hegemonia da classe proprietária dos bens de produção. Já não se trata de dizer que a correção sirva para alcançar uma ideia metafísica e difusa de liberdade, mas que procura disciplinar um setor da força de trabalho “para introduzi-lo coativamente no mundo da produção manufatureira”, tornando o trabalhador mais dócil e menos provido de conhecimentos, impedindo, dessa forma, que possa apresentar alguma resistência. (BITENCOURT, 2004, p. 23)

A religião exercia, nesse intuito de disciplinar o trabalhador para o sistema capitalista de produção, a importante tarefa de reforçar os elementos ideológicos que justificariam e fortaleceriam a hegemonia da burguesia capitalista.

O substrato religioso do capitalismo fundamentou-se no calvinismo, doutrina que defende a predestinação dos homens – a desigual distribuição da riqueza, por exemplo, se deve à vontade de Deus, contra a qual não se pode insurgir –, a valorização do trabalho e do sucesso econômico e o ascetismo mundano. Assim, a perda de tempo, a preguiça, o luxo e o ócio eram considerados os piores dos pecados, enquanto que, por outro lado, acreditava-se que o trabalho deveria ser constante e árduo, sempre com o fim de servir a Deus, e não de alcançar satisfação pessoal ou profissional ou mesmo de diversão. Pelo mesmo motivo, os calvinistas condenavam também o teatro, a música, a poesia e as demais manifestações artísticas e estéticas, pois eram atividades que não correspondiam ao ideal de moralidade e ascetismo daquela doutrina (QUINTANEIRO, BARBOSA e OLIVEIRA, 2003, p. 141).

A tese defendida por Melossi e Pavarini parte de um ponto de vista marxista, claramente fundamentado no materialismo histórico-dialético e na luta de classes, pois recusa a ideia de que as casas de correção e de trabalho almejavam a reforma ou emenda do delinquente; serviam, sim, como instrumento de dominação político-econômico-ideológica que favorecia a imposição da hegemonia da classe burguesa sobre o proletariado. Contudo, embora seja inegável a relação entre o desenvolvimento da prisão-pena e o capitalismo, algumas objeções devem ser feitas a este raciocínio.

A primeira ponderação é a de que se deve evitar uma análise unilateral da origem da prisão e de sua função, pois outros fatores, ainda que menos racionais, como a crise da pena de morte e o processo geral de humanização, devem ser tomados em conta. A segunda é de que tal análise parte do pressuposto de que apenas a infraestrutura (econômica) afeta a superestrutura (jurídica), mas jamais o inverso, o que não é verdade, nem mesmo na lógica marxista pura. Deve-se reconhecer, portanto, que a superestrutura tem relativa autonomia em relação à infraestrutura, não sendo suficiente dizer que o surgimento da prisão é simples reflexo do modo de produção capitalista.

Sendo assim, dentre as causas mais importantes que explicam o surgimento da prisão, podemos destacar:

a) a valorização da liberdade e do racionalismo a partir do século XVI, o que fez com que a pena de morte e as penas corporais perdessem espaço paulatinamente;

b) a crise da pena de morte, pois era um instrumento ineficaz contra a crescente criminalidade, que se agravava à medida que as tensões sociais e o número de pessoas em extrema pobreza aumentavam. Notou-se também que a aplicação das penas publicamente gerava mais compaixão e sentimento de injustiça no povo que horror, fazendo com que a criminalidade ganhasse, de certa forma, simpatizantes;

c) a substituição, a partir do século XV, da publicidade de alguns castigos pela vergonha, por um sentimento de culpa do réu. Assim, a prisão prestava-se a ocultar o castigo e a fazer com que o réu caísse no esquecimento do povo, evitando o “contágio moral”;

d) finalmente, o aspecto econômico já referido, segundo o qual a prisão prestou-se muito mais à função de angariar mão-de-obra barata e de servir como válvula de escape contra as tensões sociais que ao ideal de ressocialização dos delinquentes.

Segundo FOUCAULT (1967 apud BITENCOURT, 2004, p. 30), a prisão exercia um duplo papel: em períodos de grande oferta de emprego e salários altos, oferecia mão-de-obra barata às manufaturas; por outro lado, em épocas de crises e tensões sociais, as prisões absorviam as massas de desocupados como forma de dissimular a miséria e evitar o avanço da criminalidade.

A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema de submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção. (FOUCAULT, 2007, p. 204)

Diante das razões expostas, fica claro que o surgimento da prisão não se vincula apenas a um sentimento geral de humanidade, ao ideal de correção dos delinquentes e sua ressocialização. Deve-se considerar a influência da estrutura social, política, econômica e ideológica da época, que deram à prisão o caráter de instrumento de dominação da massa operária pela classe dominante.

3.4. Os reformadores: Beccaria, Howard, Bentham

Diante do excessivo rigor imprimido pelas leis penais em meados do século XVIII, surgiu na Europa um movimento liderado por intelectuais inspirados nas correntes iluministas e humanitárias que exigia a reforma do sistema punitivo, defendendo as liberdades do indivíduo e valorizando os princípios da dignidade do homem.

Dentre seus principais teóricos, analisaremos as contribuições de Beccaria, Howard e Bentham, pensadores estes cujas ideias permanecem ainda atuais e relevantes no nosso tempo.

3.4.1. Cesare Beccaria

Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, foi um filósofo italiano que se dedicou a denunciar a crueldade do sistema punitivo europeu do século XVIII, inspirando-se nos grandes pensadores iluministas franceses de sua época, e cujo grande mérito foi a associação do contratualismo e do utilitarismo na reforma do sistema penal.

Seu livro, Dos delitos e das penas, foi lançado em um contexto bastante favorável às ideias nele apresentadas, pois a desumanidade e os abusos cometidos pelo sistema criminal então vigente eram alvo da reprovação da opinião pública, desejosa por mudanças, além de ter forte inspiração nos ideais iluministas em voga à época, fazendo com que a obra repercutisse amplamente, tanto no aspecto político quanto no jurídico.

A obra de Beccaria fundava-se particularmente na teoria do contrato social, segundo a qual os homens se associam livremente entre si em uma sociedade civil, abrindo mão de parcela de sua liberdade em troca da segurança e proteção por ela oferecidas. Essa teoria presume, portanto, a igualdade absoluta entre todos os homens enquanto seres racionais e livres, capazes de se orientar positivamente em relação à lei, a qual tem, por sua vez, a função de garantir a proteção da sociedade. Assim, se um dos integrantes do corpo social descumpre a lei, automaticamente considera-se quebrado o pacto e o infrator se torna inimigo de toda a sociedade, devendo ser punido por suas ações.

Beccaria tinha, no entanto, uma concepção utilitarista da pena. Segundo o autor, “o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido”; ela deve “causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado” (BECCARIA, 2003, p. 47-48). Defende, pois, a proporcionalidade da pena em relação ao delito cometido, evitando-se os abusos e a violação da dignidade do homem.

Defendia igualmente a função preventiva da lei, afirmando que “é melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los” (BECCARIA, 2003, p. 92), sendo considerado um dos precursores das teorias relativas da pena, tanto em seu caráter geral quanto especial.

Os postulados do autor podem ser resumidos na sua afirmação de que “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei” (BECCARIA, 2003, p. 97), contribuições que até hoje permanecem válidas, tanto sob o ponto de vista jurídico como criminológico.

3.4.2. John Howard

John Howard foi um pensador inglês que conheceu a fundo a realidade das prisões europeias, especialmente as inglesas. Foi xerife do condado de Bedford, sendo posteriormente nomeado alcaide da mesma localidade - cargo correspondente a uma espécie de magistrado -, momento em que pôde ter contato com a situação extremamente grave em que se encontravam as prisões.

Publicou um livro no qual expôs sua experiência acumulada ao longo dos anos de prática penitenciária, sendo responsável, involuntariamente, pelo início de uma corrente preocupada com a reforma carcerária, dado o seu profundo senso humanitário e grande entusiasmo em relação à reforma penal.

Howard deu especial ênfase à necessidade de se humanizar as prisões, pois não aceitava as condições deploráveis em que se encontravam os cárceres ingleses, e tampouco admitia que o sofrimento humano fosse consequência implícita da pena privativa de liberdade, embora a reforma do sistema prisional não fosse um tema que atraísse a atenção da opinião pública ou dos governantes.

Naquela época, o industrialismo já estava estabelecido e a Inglaterra havia alcançado elevado desenvolvimento econômico e das condições de trabalho, fato que tirou da prisão a responsabilidade de formar operários dóceis e submissos ao sistema capitalista, passando a servir somente como instrumento de intimidação e controle político. Por tal motivo, seus esforços em melhorar as condições das prisões não obtiveram resultados substanciais, haja vista o interesse do aparelho estatal em mantê-las precárias.

Considerava que o trabalho obrigatório, inclusive penoso, era um instrumento eficaz de regeneração moral do delinquente, bem como a instrução religiosa, haja vista sua crença no calvinismo. Propôs também o isolamento dos encarcerados, com o objetivo de favorecer a reflexão e o arrependimento e evitar práticas promíscuas entre os internos, dando especial importância ao isolamento noturno.

Segundo seu entendimento, as prisões deveriam ser distintas entre aqueles que estão esperando julgamento - cujo encarceramento servia apenas como meio assecuratório de sua punição, e não como castigo -, da prisão aplicada como pena aos condenados, bem como daquela aplicada aos devedores. Defendeu também que as mulheres permanecessem separadas dos homes, assim como os jovens delinquentes dos mais velhos.

Outra grande contribuição de sua obra foi ter chamado a atenção para a necessidade de serem nomeados carcereiros “honrados e humanos” para a administração das prisões a fim de que fossem evitados abusos e arbitrariedades, bem como sugeriu a fiscalização da vida carcerária por magistrados, proposta que delineou a figura do juiz da execução da pena.

Embora tenha apresentado propostas a inúmeros aspectos das prisões a fim de corrigir suas deficiências e priorizar a reabilitação do criminoso, a obra de John Howard teve pouca repercussão nas reformas legislativas de sua época. Contudo, conseguiu abolir o direito de carceragem – segundo o qual o preso deveria pagar pelo aluguel do espaço que ocupava na prisão – e transferiu essa responsabilidade ao Estado, bem como originou o penitenciarismo, marcando o início de uma incansável luta em busca de condições mais dignas nas prisões e a reforma do delinquente.

Por fim, Howard foi o responsável pela separação entre o direito penal e a execução penal - o primeiro deveria manter o caráter retributivo e intimidativo da pena, enquanto que a segunda tinha a função de priorizar a reforma do réu -, distinção esta que constitui hoje o núcleo de grande parte dos sistemas penitenciários vigentes.

3.4.3. Jeremy Bentham

Bentham foi um filósofo e jurista inglês nascido em 1748, de admirável lógica sistemática em seus escritos, afeito à penologia e muito interessado na causa penitenciária, campo em que suas contribuições mantêm-se vigentes até a atualidade.

Dedicou seus esforços à busca de um método de controle do comportamento humano que seguisse um princípio ético, o qual seria proporcionado pelo utilitarismo, corrente filosófica à qual se filiava e que prevê que o bem-estar comum se traduz na procura da felicidade para a maioria. “Um ato possui utilidade se visa a produzir benefício, vantagem, prazer, bem-estar e se serve para prevenir a dor” (BITENCOURT, 2004, p. 45); assim, sobre esse princípio fundamentou sua teoria da pena.

Bentham considerava que o fim principal da pena era o de prevenir crimes semelhantes – dava valor preponderante ao fim preventivo geral da pena, embora reconhecesse e recomendasse seu fim preventivo especial. Dessa forma, a emenda do delinquente não era prioridade na teoria de Bentham, mas sim evitar a prática de delitos futuros.

No pensamento de Bentham, a pena deve ter um aspecto cerimonial e lúgubre, de modo que sua crueldade seja apenas aparente. Com isso, causa maior impressão no espírito do público sem, por outro lado, infligir dor física extrema e desnecessária ao réu. Desse modo, não admitia a crueldade nas penas, pois não via o sofrimento como um fim em si mesmo, muito embora reconhecesse algum fim retributivo na pena, bem como rechaçava também as penas infamantes, porque estas descartam toda possibilidade de reabilitação. Segundo BITENCOURT (2004, p. 47-48), “admitia a necessidade de que o castigo seja um mal, mas como meio para prevenir danos maiores à sociedade”; assim, “foi um avanço importante na racionalização da doutrina penal o fato de Bentham insistir que a função da pena não era a vingança do fato criminoso praticado, mas a prevenção da prática de novos fatos”.

O autor preocupou-se também com uma questão ainda muito discutida atualmente: a assistência pós-penitenciária. Bentham acreditava que o delinquente só poderia alcançar alguma reabilitação caso fosse recebido de volta à sociedade tendo um aparelho de apoio à sua disposição, a fim de que se reintegrasse sem recorrer novamente ao crime.

Por outro lado, preocupou-se ativamente com as condições das prisões e o problema penitenciário, porquanto entendia que as prisões de seu tempo, salvo raras exceções, apresentavam condições tão degradantes que exerciam influência criminógena sobre os encarcerados; a tirania dos carcereiros e os castigos corporais terríveis e constantes os tornavam insensíveis às penas e despertavam neles um sentimento de vingança contra a própria sociedade, além de que acreditava que o tédio, a vingança e a necessidade sofrida pelos internos os desmoralizavam e os educavam para a perversidade.

Seus comentários sobre as condições degradantes da prisão sugerem o que hoje se denomina subcultura carcerária. Bentham percebeu que os homens agregados naquelas condições terminam por assimilar e constituir linguagens e costumes próprios, fazem suas próprias leis e estabelecem uma escala de valores de acordo com seus próprios princípios, tudo dentro de uma microssociedade em que a força física e a violência determinam quem são os mais fortes.

Não obstante tenha sido prolífico defensor da humanização das prisões, a maior contribuição de Bentham foi à arquitetura penitenciária, pois é considerado o idealizador do panóptico. Este modelo de construção de prisões não foi tão amplamente adotado como se esperava, mas é determinante na história da prisão, pois foi o marco inicial dos estudos arquitetônicos dedicados à questão penitenciária desde então, dando origem inclusive ao desenho radial que hoje se adota largamente em várias partes do mundo.

Segundo sua própria descrição, o panóptico é:

[...] Uma casa de Penitência. Segundo o plano que lhes proponho, deveria ser um edifício circular, ou melhor dizendo, dois edifícios encaixados um no outro. Os quartos dos presos formariam o edifício da circunferência com seis andares, e podemos imaginar esses quartos com umas pequenas celas abertas pela parte interna, porque uma grade de ferro bastante larga os deixa inteiramente à vista. Uma galeria em cada andar serve para a comunicação e cada pequena cela tem uma porta que se abre para a galeria. Uma torre ocupa o centro, que é o lugar dos inspetores: mas a torre não está dividida em mais do que três andares, porque está disposta de forma que cada um domine plenamente dois andares de celas. A torre de inspeção está também rodeada de uma galeria coberta com uma gelosia transparente que permite ao inspetor registrar todas as celas sem ser visto. Com uma simples olhada vê um terço dos presos e movimentando-se em um pequeno espaço pode ver a todos em um minuto. Embora ausente a sensação da sua presença é tão eficaz como se estivesse presente. [...] Todo o edifício é como uma colmeia, cujas pequenas cavidades podem ser vistas todas de um ponto central. O inspetor invisível reina como um espírito. (BENTHAM, 1979 apud BITENCOURT, 2004, p. 51)

O desenho do panóptico visa à segurança do estabelecimento, tanto interna quanto externa, bem como a uma tecnologia de dominação, produzindo a submissão forçada dos internos. No entanto, no plano original de Bentham, tinha também a função de propiciar a emenda do preso, motivo pelo qual recusa a ideia do isolamento celular constante: os presos deveriam ser reunidos em pequenos grupos, cujos integrantes seriam previamente classificados de acordo com seu grau de perversidade, a fim de que essas pequenas associações permitissem uma reforma mútua. A ideia da prisão como penitência deixa clara a vinculação que Bentham fazia da instituição prisional a conceitos religiosos da época, muito comum no penitenciarismo clássico.

Michel Foucault atribui ao panóptico de Bentham uma função que vai muito além das prisões: constitui instrumento que permite a automatização e a desindividualização do poder, favorecendo a dominação e a submissão dos observados em diversos contextos sociais, como hospitais, indústrias, escolas, manicômios etc.

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. [...] O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. (FOUCAULT, 2007, p. 166-167)

Seguindo esse raciocínio, Foucault chega à conclusão de que as instituições panópticas fazem nascer uma relação real de sujeição a partir de uma relação, a princípio, fictícia. O poder é exercido sem a necessidade de amarras e grilhões; basta que o observado tenha a certeza de que está submetido ao campo de visibilidade do observador, que ele mesmo se sujeitará espontaneamente à relação de poder, exercendo, simultaneamente, o papel de dominador e de dominado. Em consequência, o poder externo alivia-se da obrigação de impor-se fisicamente sobre o observado, tendendo ao incorpóreo, haja vista o caráter definitivo e constante da relação de poder criada pelo panóptico.

Bentham acreditava também no trabalho como meio de reforma dos delinquentes, pois seria a única forma de conseguirem ter uma vida honrada fora da prisão após sua libertação; assim, opunha-se frontalmente aos trabalhos penosos e inúteis, entendendo que o trabalho deveria ser produtivo e atrativo.

Por outro lado, afirmava que a prisão deveria valer-se da severidade no trato com o preso - por exemplo, na comida de má qualidade, nas vestimentas humilhantes e na disciplina rígida -, pois entendia que a vida no estabelecimento prisional deveria ser de privações e limitações. Isso se dava porque acreditava que o interno pobre não poderia gozar de condições de vida melhores que os indivíduos de mesma classe que vivem em um estado de inocência e liberdade (BENTHAM, 1979 apud BITENCOURT, 2004, p. 53), argumentando que as condições de vida penosas favoreceriam a prevenção geral. Muito embora tal tese não possua fundamento empírico, está arraigada até hoje no senso comum e impede a implantação de diversas medidas progressistas em prol de uma reforma penitenciária.

O panóptico não chegou a desenvolver-se completamente nos termos idealizados por Bentham, mas deu origem a diversos modelos semelhantes hoje utilizados principalmente nos EUA e em algumas poucas prisões espalhadas pelo mundo. Além disso, suas ideias tiveram importância incontestável em diversos campos do conhecimento, bem como tem o mérito de ter conseguido reduzir consideravelmente os castigos cruéis nas prisões inglesas.

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Sobre o autor
Sergio Enrique Ochoa Guimarães

Assessor da Área Criminal da Defensoria Pública do Estado do Amazonas Especialista em Ciências Penais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Sergio Enrique Ochoa. Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3672, 21 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24285. Acesso em: 4 nov. 2024.

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