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Disforia de gênero e suas repercussões jurídicas

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3. LEGISLAÇÃO E PROJETOS DE LEI CONCERNENTES À ALTERAÇÃO DO PRENOME E SEXO NO DIREITO BRASILEIRO

3.1 Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos)

A vetusta Lei dos Registros Públicos regula as causas ensejadoras da mudança do nome civil, entretanto, a mesma não agasalha taxativamente a hipótese de alteração do prenome em decorrência de cirurgia de redesignação sexual.

A imutabilidade do nome, preconizada por esta Lei, vem sofrendo mitigações diante das possibilidades de modificações que aos poucos foram sendo inseridas no seu próprio bojo, entre elas destacam-se as principais: o prenome que expõe ao ridículo, o erro gráfico, a substituição por apelidos públicos notórios, autorização para enteado ou enteada adotar o nome de família do padrasto ou madrasta e a proteção à vítima e à testemunha.

a) Prenome capaz de expor ao ridículo

Pode-se considerar como ridículo aqueles prenomes que poderão expor o seu portador a situações embaraçosas, lhe causando vexames e constrangimentos, ao ponto de a própria pessoa recusar-se a declará-lo, ou quando obrigado a fazê-lo, o faz contrariado.

Consoante Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, ridículo é tudo aquilo suscetível de provocar riso ou escárnio. [54]

Para tentar evitar esses casos a LRP (Lei dos Registros Públicos), por inteligência do Parágrafo Único, do art. 55, prevê que o oficial do registro civil poderá se recusar a registrar prenomes que sejam capazes de expor ao ridículo os seus portadores. Caso os genitores se oponham a recusa exarada pelo oficial, este submeterá a questão ao juízo competente, independentemente de quaisquer emolumentos.

É óbvio que nessas situações o oficial do registro deverá agir pautado no bom senso, pois exposição ao ridículo é algo subjetivo, que varia de pessoa para pessoa, só devendo tolher a escolha dos genitores se realmente o prenome for bizarro.

Pontua Tereza Rodrigues Vieira que prenomes que suscitem dúvidas com relação ao sexo do titular devem ser evitados, exceto se forem compostos, que não permitam dúvidas e confusões, por exemplo: Valdeci Carlos, Edi Cristina, Juraci Regina. [55]

Os pais têm que entender que o nome é um traço distintivo que acompanha o indivíduo por toda sua vida, e por isso, a imposição de nomes que possam lhe causar escárnio, embaraço serão verdadeiros óbices em suas vidas.

Ana Pându coletou uma extensa lista de nomes extravagantes, excêntricos, das mais diversas fontes: catálogos de telefones, recenseamentos, jornais, revistas, etc: Abc Lopes, Abril Alves, Abrilina Décima nona Caçapava, Adelaide Cuoco Cuca- racha, Adriano Costa Vaso Veludo, Adriano Pereira Órfão, Aires Abreu Preguiça, Alberto José Bicha, Ametista de Ouro Branco, Amílcar José Fundinho, Amim Amou Amado, Antonio Abreu Pezinho, Antonio carnaval Quaresma, Antonio Dodói, Antonio Laranjeiras Lima, Aricléia Café Chá, Arnaldo Augusto Queijo, Benvindo o Dia do Meu Nascimento Cardoso, Himeneu Casamentício das Dores Conjugais, Janeiro Fevereiro da Silva Março, Oceano Atlântico Linhares, Oceano Pacífico, Restos mortais de Catarina e Zero Fonseca. [56]

Para remediar esses casos excepcionais, os arts. 56 e 57 da Lei dos Registros Públicos permite a alteração do prenome ridículo. No art. 56 há a previsão de alteração do nome no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil. Por sua vez, o art. 57 determina que a alteração posterior ao preestabelecido no artigo anterior somente se dará por exceção e motivadamente, sendo obrigatória a participação do Ministério Público em todos os atos do processo.

Não é difícil constatar que nomes como os citados acima sem dúvida alguma expõem ao ridículo seus portadores, sendo medida salutar e de extrema justiça substituí-los por outros mais apropriados. Em igual posição Tereza Rodrigues Vieira: “É indiscutível o direito de pessoas detentoras de nomes ridículos pleitearem a mudança do nome civil, sendo tal alteração não só possível, como ainda aconselhável, cessando assim, exposição constante a motejos e sarcasmos”. [57]

Algumas vezes os disfóricos, por analogia, se utilizam deste argumento para conseguir a alteração do prenome no seu assento de nascimento, uma vez que, realizada a cirurgia de reversão o prenome anterior não mais será condizente com a personalidade do seu titular, a discrepância será objeto de aborrecimentos e chacotas.

b) Erro gráfico

O erro gráfico consiste em retificações decorrentes da escrita errônea relativa ao nome civil. São aqueles que ao invés de se grafar uma letra, por exemplo, se grafa outra em seu lugar. A retificação por esse motivo visa corrigir imperfeições ou omissões ocorridas ao se confeccionar o assento de nascimento.

Tereza Rodrigues Vieira anota: “Os pedidos são constantes, pois não é raro encontrarmos pessoas registradas como, por exemplo, Geraudo, Isabéu, Nicolal, Óuga, Váuter, Néuton, Oliúde, Maiquel etc”. [58]

O procedimento estabelecido nos termos da Lei em comento (artigo 110 e parágrafos) com relação à erro gráfico é extremamente simples: o próprio Cartório onde se encontrar o assentamento, desde que os erros não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de ofício pelo oficial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assentamento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação conclusiva do Ministério Público.

Caso o Ministério Público entenda que o pedido exige maior indagação, requererá ao juiz a distribuição dos autos a um dos cartórios da circunscrição, caso em que se processará a retificação, com assistência de advogado, observado o rito sumaríssimo.

Eis a ementa:

Registro civil. Retificação. Correção da grafia do prenome. Sidnéia em lugar de Sedneia. Evidente o equívoco do registrador. Forma não usual. Ausência de prejuízos para terceiros. Interpretação da legislação em face da lógica do razoável.

Constrangimento efetivo na utilização da grafia lançada em registro. Indicação, em documentos públicos, da utilização da grafia pretendida em mudança. Possibilidade da alteração. Excepcionalidade demonstrada. Sentença reformada. Recurso provido. [59]

No acórdão, bem se vê que o relator percebeu o equívoco cometido pelo oficial do registro do cartório e reformou a decisão do juiz a quo. Comumente é o que ocorre, emprega-se letra diversa da que deveria constar ou suprime-se uma letra que deveria ser usada.

Conforme autorizada doutrina, a retificação com fulcro no erro de grafia se estende não só ao prenome, mas também deve ser admitida para corrigir o nome de família e o agnome, pois não haverá alteração alguma no sobrenome, apenas a mera correção.

c) Apelidos públicos notórios

A definitividade do prenome, como dito anteriormente, foi flexibilizada com a nova redação dada ao art. 58 da LRP, modificada pela Lei nº 9.708/1999. Anteriormente, a aludida Lei era peremptória ao declarar neste mesmo artigo a imutabilidade do nome.

Pois bem, em face dessa flexibilização, agora o prenome é passível de substituição por apelidos públicos notórios.

Por apelidos públicos notórios pode-se entender como sendo aquele prenome diverso do que está registrado no assento de nascimento do indivíduo, aquele em que é reconhecida determinada pessoa no meio social em que vive, muitas vezes nem se sabe sobre a incoerência existente entre ele e o que está consignado no assentamento.

Um exemplo servirá para tornar claro, a ideia: “Luana” foi registrada com o prenome de Luciana, entretanto este não é usado e é do conhecimento de todos que Luana é o seu prenome, é por meio dele que ela é identificada no trabalho, na faculdade, na família, entre os amigos, etc.

No exemplo citado acima, ela poderá optar por substituir o primeiro prenome pelo apelido “Luana”, pode acrescentá-lo antes do primeiro prenome ou pode ainda intercalá- lo entre o prenome e o nome de família.

Normalmente as personalidades ligadas à televisão, política, esportes adotam apelidos públicos notórios, por ser dessa maneira que são reconhecidos nacionalmente e até internacionalmente, é o caso, por exemplo, de: Maria da Graça Meneghel, que passou a se chamar, Maria da Graça Xuxa Meneghel e Luis Inácio da Silva, que passou a se chamar Luis Inácio Lula da Silva;

Não é outra a propensão dos Tribunais:

RETIFICACAO DE ASSENTO CIVIL. PRENOME DUPLO. EXCLUSAO DE UM. POSSIBILIDADE. A regra da imutabilidade do prenome não mais vige, diante da nova dicção do art. 58, caput, da Lei de Registros Públicos (com redação dada pela Lei nº 9.708, de 18.11.98), segundo o qual o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos e notórios. Diante disso, não existe óbice a que a pessoa postule a retificação do seu registro civil a fim de excluir prenome composto (Maria Conceição) para torná-lo simples (Maria), pelo qual é conhecida no meio social em que vive, máxime quando da pretensão requerida não se vislumbra qualquer intuito fraudulento de causar prejuízo a outrem. Apelo conhecido e provido. [60]

Por isso, em sintonia com o exposto até agora, é possível afirmar que a imutabilidade do nome, ainda que relativa, visa resguardar a segurança jurídica, mas desde que se comprove, como no presente caso em tela, que não há intuito fraudulento, se assim o for, não há obstáculo algum para o indeferimento do pleito.

d) Autorização para enteado ou enteada adotar o nome de família de padrasto ou madrasta

De autoria do Deputado Federal, Clodovil Hernandes, a Lei nº 11.924/2009, alterou o art. 57, da Lei nº 6.015/1973, inserindo mais um parágrafo, o oitavo, cujo teor autoriza o enteado ou a enteada a adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta.

O procedimento previsto é relativamente simples, o enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º do artigo já citado acima, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.

Percebe-se que existem dois requisitos a serem preenchidos: o primeiro, requerimento do enteado ou da enteada, o segundo, a expressa concordância da madrasta ou padrasto.

Interessante notar, que não há a supressão dos apelidos de família do requerente, apenas será acrescido ao seu nome de família primitivo o apelido de família de sua madrasta ou padrasto.

A intenção do legislador foi consentir que aqueles que se sentem acolhidos como filhos pelos companheiros de seus pais possam efetivamente desfrutar do prazer de carregar o sobrenome de quem muitas vezes é muito mais presente que seus pais biológicos.

Por outro lado, os pais biológicos não poderão se sentir desvalorizados, pois em nada afetará a mencionada averbação no tocante à filiação, sucessão.

e) Proteção à vítima e à testemunha

Mais uma possibilidade de alteração do nome civil encontra-se positivada na LRP, cuida-se do Parágrafo Único, do artigo 58. Oriunda da Lei nº 9.807/1999, a proteção à vítima e à testemunha, determinou a inclusão deste supracitado parágrafo, o qual prevê a substituição do nome em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Parquet.

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Entre todas as medidas de proteção elencadas por esta Lei, somente esta será comentada, por razões óbvias, apenas ela diz respeito à mudança de nome.

A finalidade dessa Lei é garantir a integridade física e psicológica dos indivíduos que colaboraram voluntariamente para a elucidação da investigação policial ou processo criminal. [61]

Em casos extremos poderá haver até a mudança do nome completo, com vistas a promover a segurança do protegido pelo programa. Nesses casos extremos, a petição dirigida ao juiz deverá ser bem fundamentada e este ouvirá previamente o Ministério Público, determinando, em seguida, que o procedimento tenha rito sumaríssimo e corra em segredo de justiça.

Vale ressaltar, que é o único caso em que é permitido mudar completamente o nome inteiro, pois nas demais hipóteses a permissão se restringe apenas ao prenome ou à correção de eventuais erros, assim como o acréscimo de apelidos de família.

Cumpre salientar que conforme expressa disposição do parágrafo 1º, do artigo 2º, as medidas de proteção poderão ser dirigidas ou estendidas ao cônjuge ou companheiro, ascendentes, descendentes e dependentes que tenham convivência habitual com a vítima ou testemunha, conforme o especificamente necessário em cada caso. O que se leva a crer que a alteração do prenome também pode atingir aos parentes mencionados.

A intenção do legislador foi acabar com a impunidade, oferecendo proteção em troca de informações privilegiadas.

Destarte, verifica-se que a LRP não comporta dispositivo específico que permita sequer a alteração do prenome, quem dirá do sexo dos que se submeteram a cirurgia de redesignação de sexo. Eventuais pedidos de retificação de registro civil formulados por disfóricos, deverão se socorrer a analogias, ante o silêncio da legislação vigente.

3.2 Projeto de Lei nº 70/1995

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 70/1995, que admite a mudança do prenome e sexo mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à intervenção cirúrgica destinada à redesignação de sexo. Altera as disposições do Decreto-Lei nº 2.848/1940 (Código Penal) e a Lei nº 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos).

O projeto de Lei foi proposto pelo então na época Deputado Federal José Coimbra (PTB/SP), em 22/02/1995, há exatos 16 anos. Atualmente a retrocitada proposta encontra-se pronta para pauta no Plenário da Câmara dos Deputados. [62]

A redação original da proposta visava alterar dois dispositivos, o art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848/1940 e o art. 58 da Lei nº 6.015/1973, que passariam a vigorar da seguinte forma:

Art. 129. ...............

Exclusão do crime

§ 9º Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica. [63]

Caso esse projeto de Lei venha a ser aprovado, algum dia, verifica-se que essa disposição virá, embora que tardia, apenas para sedimentar o que há tempos a doutrina e jurisprudência vêm entendendo, com a determinação expressa no corpo da Lei não haverá mais espaços para discussões acerca da licitude ou ilicitude da cirurgia.

A morosidade do legislador é gritante, o que era para ser o nono parágrafo do art. 129 do Código Penal, caso venha a ser incorporado ao Diploma Penal, será o de número doze, tendo em vista que o Diploma Penal já conta atualmente no dispositivo relativo às lesões corporais com onze parágrafos.

Por sua vez, a Lei dos Registros Públicos teria modificada a redação do art. 58, caput, bem como a inclusão de mais alguns parágrafos:

Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.

§1º Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.

§2º Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.

§3º No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao registro de nascimento e no respectivo de identidade ser a pessoa transexual. [64]

O Projeto de Lei peca pela pecha da inconstitucionalidade material, seu conteúdo, mais especificamente no que se refere à inscrição da expressão “transexual” no assento de nascimento não se coaduna com os princípios e garantias insculpidos na Lei Maior.

Em suma, o parágrafo 3º vai de encontro frontalmente às diretrizes e garantias fundamentais elencados na Constituição.

Permitir a averbação do estado anterior do requerente no assentamento e reproduzi-lo nos demais documentos que identificam o indivíduo é ferir os direitos assegurados constitucionalmente a todos, quais sejam: à intimidade e à vida privada.

Justamente por esse motivo e para que essa proposta não malogre, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, emendou o Projeto duas vezes. A primeira para sanar a inconstitucionalidade material, a segunda, visando aperfeiçoar ainda mais o que já se tinha proposto.

Com base no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, que tutela a intimidade e vida privada da pessoa a CCJC ao emendar o projeto pela primeira vez, propôs que o § 3º fosse substituído pelo seguinte: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”. [65]

Dessa forma, a mácula da inconstitucionalidade estaria afastada possibilitando a conformação das referidas Leis infraconstitucionais como o disposto na Lei Maior, assim como também permitirá que os disfóricos tenham sua situação jurídica resguardada, não o sujeitando a situações que o exponham a ridículo perante o meio social.

No que tange à segunda emenda, depreende-se que a mesma tem a finalidade precípua de apenas aperfeiçoar o que já havia sido disposto no Projeto de Lei original. Assim, a CCJC apresentou também a ideia de criação de mais um parágrafo ao art. 58 da Lei nº 6.015/1973, seria o quarto parágrafo, cuja redação seria nos seguintes termos: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”. [66]

Como se vê, o Projeto de Lei é bastante relevante, e quando for aprovado, se for aprovado, terá como função apaziguar os pontos controvertidos dessa questão, encerrando de vez o processo de manutenção a marginalização dos disfóricos.

3.3 Estatuto da Diversidade Sexual

Cuida-se de grande inovação na seara jurídica, o Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual, que foi elaborado pela Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O referido Estatuto, como não poderia deixar de ser, abrangeu em suas disposições os direitos dos disfóricos.

Ao todo, são 111 artigos que conferem direitos aos homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais, bem como deveres para a toda sociedade e poder público.

Além de apontar políticas públicas que atendam satisfatoriamente esta parcela da população, há inclusive, a indicação dos dispositivos da legislação infraconstitucional que precisam ser mudados.

A Comissão é composta por membros de notável saber jurídico que são autoridades com relação à matéria, o que faz do anteprojeto um trabalho sério e de alta credibilidade. É presidida por Maria Berenice Dias (RS), integrada por Adriana Galvão Moura Abílio (SP); Jorge Marcos Freitas (DF); Marcos Vinicius Torres Pereira (RJ) e Paulo Tavares Mariante (SP). Tendo como membros consultores: Daniel Sarmento (RJ); Luis Roberto Barroso (RJ); Rodrigo da Cunha Pereira (MG) e Tereza Rodrigues Vieira (SP). [67]

Louvável a proposta elaborada pela Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados (OAB): logo no art. 1º, pode-se vislumbrar claramente a finalidade de sua criação, qual seja: promover a inclusão de todos, combater a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero e criminalizar a homofobia, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos.

O art. 4º traz o rol de princípios que norteiam a interpretação e aplicação do estatuto, tais como: dignidade da pessoa humana, igualdade e respeito à diferença, direito à livre orientação sexual, reconhecimento da personalidade de acordo com a identidade de gênero, direito à convivência comunitária e familiar, liberdade de constituição de família e de vínculos parentais, respeito à intimidade, à privacidade e à autodeterminação e direito fundamental à felicidade.

O capítulo VII, é dedicado exclusivamente à disforia de gênero, contém 12 artigos que regulamentam, entre outras disposições, o direito à livre expressão da identidade de gênero, assegurando o livre acesso à procedimentos médicos, cirúrgicos e psicológicos, tanto particulares, como custeados pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

O estatuto avança em muitos pontos, um dos mais interessantes diz respeito à adequação sexual, permitindo que seja iniciada a partir dos 14 anos de idade, ressalvando-se, contudo, que deverá haver indicação terapêutica por equipe médica e multidisciplinar de hormonoterapia e de procedimentos complementares não-cirúrgicos. Ademais, consoante previsão constante do art. 38, as cirurgias de redesignação sexual podem ser realizadas somente a partir dos 18 anos de idade.

Devido à relevância da adequação do prenome e do sexo para os invertidos sexualmente, cabe transcrever os artigos relativos à tal disposição:

Art. 39 - É reconhecido aos transexuais, travestis e intersexuais o direito à retificação do nome e da identidade sexual, para adequá-los à sua identidade psíquica e social, independentemente de realização da cirurgia de transgenitalização.

Art. 40 - A sentença de alteração do nome e sexo dos transexuais, travestis e intersexuais será averbada no Livro de Registro Civil de Pessoas Naturais.

Parágrafo único - Nas certidões não podem constar quaisquer referências à mudança levada a efeito, a não ser a requerimento da parte ou por determinação judicial.

Art. 41 - Quando houver alteração de nome ou sexo decorrente de decisão judicial é assegurada a retificação em todos os outros registros e documentos, sem qualquer referência à causa da mudança. [68]

O anteprojeto do Estatuto é muito moderno, pois permite que haja a retificação do nome e da identidade sexual mesmo antes da realização da cirurgia. Com todo o respeito ao brilhante trabalho em questão, cumpre ressaltar, que tal disposição poderá despertar naqueles mais conservadores uma certa polêmica, visto que pode ser que se considere um pouco precipitada a supracitada retificação.

Por outro lado, todas as dúvidas que poderiam existir com relação à retificação do prenome serão dissipadas, o dispositivo é claro e uma vez aprovado dentro dos ditames da lei não há porquê não ser cumprido. O conteúdo do art. 41 condensa boa parte da posição sufragada por este trabalho, ou seja, o direito ao esquecimento do estado anterior, a preservação da intimidade e vida privada daquele que possui o sexo morfológico diferente do biológico, bem como o respeito pela dignidade humana.

As questões reflexas como alistamento militar, direito previdenciário não foram esquecidas pelo Estatuto, todas elas possuem um capítulo próprio que as tratam com todas as minúcias a que são dignas.

No tocante ao direito à educação, merece destaque o art. 59 do Estatuto da Diversidade Sexual:

Art. 59 - Os estabelecimentos de ensino devem coibir, no ambiente escolar, situações que visem intimidar, ameaçar, constranger, ofender, castigar, submeter, ridicularizar, difamar, injuriar, caluniar ou expor aluno a constrangimento físico ou moral, em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de gênero. [69]

É de fundamental importância essa proteção conferida aos invertidos sexualmente, pois o abandono da escola, exatamente por não suportar a discriminação traz inúmeras consequências negativas para a vida adulta, bem como evita que esses indivíduos sejam literalmente banidos da convivência social por serem diferentes.

O direito ao trabalho foi assegurado no capítulo XI do Estatuto que, em linhas gerais garante o acesso ao mercado de trabalho a todos, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero. Indo mais além, veda qualquer ato discriminatório no ingresso, na admissão ou com relação à promoção, na esfera pública ou privada, em razão da orientação sexual ou identidade de gênero do profissional.

No tocante à demissão, se ficar constatado que esta se deu por motivos relacionados à identidade de gênero ou orientação sexual, configura-se por expressa disposição do anteprojeto como discriminação.

Já está mais do que na hora de dar um basta a exclusão social a que são submetidos esses indivíduos, o referido anteprojeto traça todas as coordenadas necessárias para a inclusão social daqueles que vivem a margem da sociedade, que se diz “democrática”.

O art. 80 prevê a tramitação em segredo de justiça das demandas que tenham por objeto os direitos decorrentes da orientação sexual ou identidade de gênero, mais uma vez prestigiou o princípio da dignidade humana e o respeito aos direitos fundamentais à intimidade e privacidade das pessoas.

Por fim, o anteprojeto não só confere direitos aos homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, visa também punir aqueles que desrespeitem o sujeito em razão de sua condição sexual, e para isso, traz no seu bojo quatro condutas típicas e antijurídicas:

Crime de homofobia

Art. 100 - Praticar condutas discriminatórias ou preconceituosas previstas neste Estatuto em razão da orientação sexual ou identidade de gênero.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

§ 1º - Incide na mesma pena toda a manifestação que incite o ódio ou pregue a inferioridade de alguém em razão de sua orientação sexual ou de identidade de gênero. [70]

A primeira conduta, denominada de crime de homofobia, visa combater a intolerância e a violência contra aqueles que possuem a orientação sexual diferente ou que apresentam o conflito de identidade, punindo severamente aquele que praticar condutas discriminatórias ou preconceituosas. De acordo com o artigo acima mencionado, percebe-se que o princípio da igualdade foi a principal baliza usada pela comissão para elaboração do tipo penal.

No contexto social que estão inseridos os disfóricos, a violência também se faz muito presente no cotidiano e foi pensando nisso que o anteprojeto criou a próxima figura típica e antijurídica:

Indução à violência

Art. 101 - Induzir alguém à prática de violência de qualquer natureza motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, além da pena aplicada à violência. [71]

A luta contra a violência e a impunidade é uma constante na vida desses sujeitos. A grande maioria que agride, por qualquer forma de violência, acredita que não lhes acontecerá nada, porque a sociedade fecha os olhos e se cala quando o problema é com aquele que vive marginalizado, que é esquecido pelas autoridades e pelos próprios concidadãos.

Pesquisas recentes apontam para um número alarmante de violência praticada contra homossexuais, lésbicas, travestis e transexuais, bem como corroboram a necessidade de ser criado um tipo penal como o descrito acima:

Resultados de recente estudo sobre violência realizado no Rio de Janeiro, envolvendo 416 homossexuais (gays, lésbicas, travestis e transexuais) revelaram que 60% dos entrevistados já tinham sido vítimas de algum tipo de agressão motivada pela orientação sexual, confirmando assim que a homofobia se reproduz sob múltiplas formas e em proporções muito significativas. Quando perguntados sobre os tipos de agressão vivenciada, 16,6% disseram ter sofrido agressão física (cifra que sobe para 42,3%, entre travestis e transexuais), 18% já haviam sofrido algum tipo de chantagem e extorsão (cifra que, entre travestis e transexuais, sobe para 30,8%) e, 56,3% declararam já haver passado pela experiência de ouvir xingamentos, ofensas verbais e ameaças relacionadas à homossexualidade. Além disso, devido a sua orientação sexual, 58,5% declararam já haver experimentado discriminação ou humilhação tais como impedimento de ingresso em estabelecimentos comerciais, expulsão de casa, mau tratamento por parte de servidores públicos, colegas, amigos e familiares, chacotas, problemas na escola, no trabalho ou no bairro. [72]

Os dados expostos acima são uma reprodução fidedigna da dura realidade enfrentada por essa população, a violência se manifesta desde o xingamento até as formas mais extremas, como agressão física e até mesmo assassinatos. Isso ocorre porque esses indivíduos exteriorizaram publicamente sua real identidade sexual ou orientação sexual.

Atento a esta realidade, o Estatuto da Diversidade Sexual criminalizou especificamente este tipo de conduta, no afã de combater a vulnerabilidade social que atinge essa população.

Qualquer forma de discriminação é degradante, andou bem a Comissão quando estatuiu a penalização no segmento trabalho e relações de consumo, porquanto, é próprio da natureza dessas relações que um dos polos seja mais frágil e se torna ainda mais, em se tratando de homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais. Para equilibrar essas relações foram elaborados dois tipos penais, cujas sanções punem com o rigor necessário:

Discriminação no mercado de trabalho

Art. 102 - Deixar de contratar alguém ou dificultar a sua contratação, quando atendidas as qualificações exigidas para o cargo ou função, motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

§ 1º - A pena é aumentada de um terço se a discriminação se dá no acesso aos cargos, funções e contratos da administração pública.

§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem, durante o contrato de trabalho ou relação funcional, discrimina alguém motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.

Discriminação nas relações de consumo

Art. 103 - Recusar ou impedir o acesso de alguém a estabelecimento comercial de qualquer natureza ou negar-lhe atendimento, motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 104 - Todo o delito em que ficar evidenciada a motivação homofóbica terá a pena agravada em um terço. [73]

Esse anteprojeto, se aprovado, será de grande valia não só para aqueles que apresentam a disforia de gênero, como também para todos os outros que também sofrem com a invisibilidade jurídica. Pode-se dizer que o objetivo primordial do Estatuto, é resgatar a cidadania e fortalecer o direito à dignidade e o respeito à diferença.

Para que isso seja possível, o Estatuto da Diversidade Sexual propõe uma série de mudanças, desde artigos da Constituição Federal até a legislação infraconstitucional, como por exemplo, o Código Civil, Código Penal, Consolidação das Leis Trabalhistas, Legislação Previdenciária, acrescendo e suprimindo dispositivos de modo que o microssistema seja o mais completo possível, não comportando lacunas.

Tendo em vista que inúmeros Projetos de Leis versaram sobre o assunto, mas nenhum logrou êxito em ser aprovado, já está na mais do que hora de ser aprovada uma legislação específica, capaz de tutelar de modo eficaz os que são vítimas do silêncio da lei.

Ademais, faz-se bom lembrar que o Anteprojeto de Lei foi entregue à OAB Federal, em 23 de agosto de 2011, faltando percorrer os demais trâmites processuais preestabelecidos para a criação de leis.

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Sobre as autoras
Andréa Paula da Cruz

Bacharela em Direito em Caruaru (PE).

Renata de Lima Pereira

Advogada. Mestra em Direito Privado pela UFPE. Professora de Direito Civil e Empresarial da Estácio/Recife e ASCES/Caruaru.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Andréa Paula ; PEREIRA, Renata Lima. Disforia de gênero e suas repercussões jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3605, 15 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24437. Acesso em: 23 nov. 2024.

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