Resumo: As vantagens que a tecnologia proporciona à sociedade atual foram incorporadas também pelo âmbito laboral. Os e-mails passaram a figurar na relação de emprego enquanto instrumentos de trabalho, por isso surgiu a indagação acerca da possibilidade de fiscalização ou não do correio eletrônico do empregado pelo empregador. Importam para a discussão posta o direito à intimidade do empregado, uma vez que é direito fundamental e desdobramento do princípio da dignidade humana, e o poder diretivo do empregador, tido como fundamental para a diferenciação da relação jurídica de emprego das demais relações de serviço. Na falta de legislação própria, aplica-se os argumentos doutrinários e jurisprudenciais para a solução do conflito entre esses valores.
Palavras-Chave: E-mail. Empregado. Empregador. Direito à intimidade. Poder diretivo. Monitoramento.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 O DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE DO EMPREGADO. 2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 2.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS. 2.3DIREITOS DA PERSONALIDADE. 2.4DIREITO À PRIVACIDADE. 2.5DIREITO À INTIMIDADE. 2.6O SIGILO DAS COMUNICAÇÕES E SUA RELAÇÃO COM O E-MAIL. 2.7O DIREITO À PRIVACIDADE NO ÂMBITO LABORAL. 3O PODER DE DIREÇÃO DO EMPREGADOR. 3.1 CONCEITO LEGAL E CARACTERIZAÇÃO DO EMPREGADOR. 3.2 O PODER DIRETIVO. 3.2.1 CONCEITO E DIVISÃO. 3.2.2 FUNDAMENTOS DO PODER DIRETIVO. 3.2.3 PODER DIRETIVO E SUBORDINAÇÃO. 3.2.4 LIMITES DO PODER DIRETIVO. 4A UTILIZAÇÃO DO E-MAIL NO AMBIENTE DE TRABALHO. 4.1 NOÇÃO SOBRE A IMPORTÂNCIA DA INTERNET NO ÂMBITO LABORAL. 4.2 E-MAILPRIVADO E E-MAIL CORPORATIVO. 4.3 A OCORRÊNCIA DE CONFLITOS ENVOLVENDO A UTILIZAÇÃO DO E-MAIL NO AMBIENTE DE TRABALHO. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Com o advento das novas tecnologias, os sistemas informatizados invadiram todos os setores da sociedade, incluso entre eles o âmbito laboral.
Os computadores ingressaram nas empresas assumindo o papel de ferramentas de trabalho, e os e-mails, uma espécie de correio eletrônico, sobressaíram-se como o instrumento tecnológico mais utilizado, pois facilita a comunicação entre as pessoas, o que é de grande valia para os empregadores.
Ganha-se tempo e dinheiro com a maior rapidez no trato com os clientes, fornecedores e contatos diversos que o e-mail proporciona.
Neste quadro, surge o questionamento acerca da possibilidade de monitoramento ou não do e-mail do empregado pelo empregador.
Trata-se do conflito entre dois importantes valores: o do direito à intimidade do empregado e o exercício do poder diretivo do empregador.
No segundo item do trabalho, apresenta-se o direito à intimidade e seus desdobramentos. Na realidade, começa-se a expor um cenário geral, encabeçado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que é a tido como a base axiológica de todo o ordenamento jurídico pátrio.
Em seguida, expõe-se acerca dos direitos fundamentais do homem, colocados como garantias constitucionais de proteção aos caracteres mais importantes que rodeiam uma pessoa, para fazer frente a qualquer lesão ou ameaça de lesão que se origine do Estado ou até mesmo de particulares.
Dentre os direitos fundamentais, localizam-se os direitos personalíssimos, esculpidos no diploma civilista brasileiro e que também têm a benção da Constituição.
Enfim, chega-se ao debate acerca do direito à intimidade, tecendo-se comentários acerca do direito à privacidade, que é posto pela doutrina como gênero do qual o direito à intimidade é espécie e também acerca da garantia à inviolabilidade das comunicações, pois neste tocante faz-se a interrelação com o e-mail, objeto do presente estudo.
Finaliza-se o segundo item com a localização do direito à intimidade no âmbito laboral. Com isso, considera-se encerrada as análise iniciais a respeito do direito do obreiro à intimidade, e passa-se para o estudo acerca do poder diretivo do empregado.
Sobre o poder diretivo do empresário versa o terceiro item do trabalho, que logo se subdivide para apresentar uma noção sobre a definição e caracterização da figura do empregador. Desta figura e do poder atribuído à ela cuida-se durante todo o terceiro tópico.
Segue-se a analisar o poder diretivo sob os ângulos de sua conceituação, divisão, fundamentos, correlação com o instituto da subordinação e, por fim, de seus limites.
Assim, tem-se as informações necessárias sobre os dois valores contrapostos no caso em tela, e, portanto, inicia-se o quarto item do trabalho.
Após breves comentários acerca da importância da internet no âmbito laboral, estabelece-se uma necessária distinção entre a situação de monitoramento do e-mail particular e do corporativo do empregado pelo empregador, identificando-se o posicionamento que vem se solidificando sobre o assunto.
Muito se deve à doutrina e à jurisprudência para nortear os estudos sobre a possibilidade de o empregado ter seu correio eletrônico monitorado pelo empregador, pois a legislação pátria é omissa e em nada se refere diretamente, concretamente a tal situação.
Com isso, passa-se ao confronto entre os dois valores em jogo, com a exposição da literatura que se tem a respeito, bem como de posicionamentos judiciais, pois, como dito, são eles que cuidam da abertura dos caminhos, uma vez que a lei disso ainda não cuidou.
2 O DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE DO EMPREGADO
Na problemática do direito ou não do empregador ao monitoramento do e-mail do empregado, impende discutir-se acerca do direito fundamental do obreiro à intimidade.
Contudo, antes de adentrar ao tema, algumas noções introdutórias sobre a dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e da personalidade serão apresentadas como base essencial à compreensão do direito à intimidade, eis que este se encontra inserido dentre aqueles.
2.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana está prevista no título I da Constituição Federal de 1988[1], que traz os princípios fundamentais do Estado brasileiro, e está elencada no inciso III, do art. 1°, dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito.
Nos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet, “a previsão no texto constitucional acaba por ser imprescindível, muito embora por si só não tenha o condão de assegurar o devido respeito e proteção à dignidade”. [2]
Pela própria posição no texto constitucional, enunciada no primeiro artigo na MagnaCharta, aufere-se a importância de tal valor para o ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, sua conceituação é de difícil realização, pois seu alcance é vasto. Os doutrinadores tentam defini-la, ainda que árdua seja esta tarefa.
Para Marcelo Novelino, a dignidade humana é tida como o núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, que irá informar a criação, a interpretação e a aplicação de toda a ordem normativa constitucional, sobretudo, o sistema de direitos fundamentais.[3]
José Afonso da Silva ao doutrinar acerca da dignidade da pessoa humana diz ser esta o “valor constitucional supremo, que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.[4]
Sarlet, ao conceituar, também admite a dificuldade em definir o valor constitucional supremo.
[...] reconhecemos a dificuldade (que acreditamos não seja exclusivamente nossa) de obter uma definição consensual, precisa e, acima de tudo, universalmente válida do que seja, afinal de contas, a dignidade da pessoa humana, a não ser a circunstância – ainda assim resultado de uma opção racional – de que se cuida da própria condição humana (e, portanto, do valor próprio reconhecido (atribuído) às pessoas no âmbito de suas relações intersubjetivas) do ser humano e que desta condição e de seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídico-constitucional decorre um complexo de posições jurídicas fundamentais. [5]
O reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelas Constituições em diversos países ocidentais tiveram um vertiginoso aumento após a Segunda Guerra Mundial, como forma de reação às práticas ocorridas durante o nazismo e o fascismo. Isso para evitar a redução do homem à condição de mero objeto. Sobre isso, discorre Alexandre de Moraes:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.[6]
A positivação da dignidade da pessoa humana faz com que ela deixe de ser apenas um valor moral para se converter em um valor tipicamente jurídico, passando a se revestir de normatividade.
Para a maioria dos jusfilósofos, a dignidade da pessoa humana não é um direito fundamental, não é um atributo criado pelo ordenamento jurídico, e sim um atributo ou uma qualidade intrínseca do ser humano, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. O simples fato de ser humano pressupõe a dignidade, independente de qualquer outra característica. “A dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas”.[7]
Em complemento, cita-se ainda os ensinamentos de Sarlet:
[...] justamente pelo fato de que a dignidade vem sendo considerada (pelo menos para muitos e mesmo que não exclusivamente) qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e certos de que a destruição de um implicaria a destruição do outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim o deveriam) em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito. [8]
Apesar de não ser um direito fundamental, a dignidade da pessoa humana possui uma relação de mútua dependência com eles, pois ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais surgiram como uma exigência da dignidade de proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa humana, somente por meio da existência desses direito a dignidade poderá ser respeitada e protegida.
A dignidade da pessoa humana serve como fundamento dos direitos fundamentais, os quais existem para proteger a dignidade humana, pois são imprescindíveis para uma vida digna. Assim, dificilmente haverá violação à dignidade humana sem violar algum direito específico do título II da Constituição Federal.
[...] desde logo há de se destacar que a íntima e, por assim dizer, indissociável – embora altamente complexa e diversificada – vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui, por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo. [9]
Deve-se ter em mente que todos os direitos fundamentais derivam da dignidade da pessoa humana, porem, com intensidades distintas, a exemplo dos direitos de igualdade, vida e liberdade, que são ligados diretamente, ou seja, de 1º grau; e os direitos trabalhistas, que se ligam indiretamente (derivações indiretas), ou seja, são de 2º grau.
Finalmente, a dignidade da pessoa humana apesar de ser considerada um valor constitucional supremo, não é uma norma suprema (o próprio princípio da unidade já veda hierarquia entre as normas constitucionais). Numa eventual ponderação, deve a dignidade humana ter um peso maior, de forma que para que ela seja afastada deve haver uma série de outros fatores e princípios que justifiquem o seu afastamento.
2.2. DIREITOS FUNDAMENTAIS
Como dito no tópico anterior, a dignidade da pessoa humana é a base dos direitos fundamentais, ou ainda, os direitos fundamentais existem para concretizar a dignidade humana, dando ao ser humano a proteção aos direitos mínimos[10] para que se tenha uma existência digna, limitando a atuação do Estado e de particulares que atente contra quaisquer dos direitos contidos neste núcleo mínimo.
Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a no caso de direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana.[11]
Quanto à nomenclatura, Silva aponta divergência dentre os estudiosos jurídicos, que apresentam variadas expressões para designar os direitos fundamentais: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem. [12]
No entanto, para o citado autor, a expressão mais adequada é a última apresentada, direitos fundamentais do homem, pois esta traz consigo a ideia de fundamental enquanto “situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e às vezes nem mesmo sobrevive”, além de a expressão “do homem”, no sentido de pessoa humana, indicar que “a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados”.[13]
Silva ainda aponta alguns caracteres dos direitos fundamentais que valem a pena ser elencados. Eles são históricos, pois surgiram com a revolução burguesa e evoluíram com o passar do tempo; são inalienáveis, não possuindo valor econômico e sendo indisponíveis; são imprescritíveis, pois nunca deixam de ser exigíveis; e, por fim, são ainda considerados irrenunciáveis, mesmo que não exercidos.[14]
George Marmelstein, refere-se a outros caracteres, indicando-os como facilitadores da proteção e efetivação jurídica dos direitos fundamentais. São de aplicação imediata, ou seja, são diretamente vinculantes e plenamente exigíveis, conforme preleciona a própria Constituição no §1º do artigo 5º. Possuem hierarquia constitucional, o que significa ter o escudo da constitucionalidade contra qualquer norma que atente contra eles, podendo estas, inclusive, ser declaradas inconstitucionais. E, por fim, são clausulas pétreas, não podendo ser abolidas do ordenamento pátrio, nem mesmo por emendas constitucionais, por forcao do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição. [15]
A Constituição traz em seu título II os direitos e garantias fundamentais, dividindo-os em direitos e deveres individuais e coletivos (capítulo I), direitos sociais (capítulo II), direitos de nacionalidade (capítulo III), direitos políticos (capítulo IV) e direitos relacionados aos partidos políticos (capítulo V).
Segundo Martins, os direitos fundamentais não se esgotam no artigo 5º, e nem devem. “A Constituição não pode especificar todos os direitos, nem mencionar todas as liberdades. A lei ordinária, a doutrina e a jurisprudência completam a obra”. Isso ocorre porque a vida social muda e o tempo exige o reconhecimento de novos direitos e garantias. [16]
O conteúdo dos direitos fundamentais é exibido por Marmelstein com a divisão em ético e normativo. O conteúdo ético é inegável aos direitos fundamentais a partir do momento em que eles são considerados os valores básicos da sociedade, tendo como base axiológica a dignidade da pessoa humana. Já quanto ao conteúdo jurídico, são considerados direitos fundamentais aqueles estatuídos pela Constituição. Não há, portanto, direitos fundamentais decorrentes da lei. [17]
Doutrinariamente, os direitos fundamentais ainda possuem uma classificação diversa da trazida pelo texto constitucional, baseada em gerações, ou seja, numa ordem cronológica que indica a época em que tais direitos passaram a ser reconhecidos constitucionalmente.
A autoria da teoria que divide os direitos fundamentais em gerações é conferida a KarelVazak, que em 1979 proferiu a aula inaugural da Décima Sessão do Instituto Internacional dos Direitos Humanos,em Estraburgo, entitulada “Pour lês droits de l’homme de latroisièmegeneration”, e utilizoua expressão gerações.
Vazakreferiu-se ainda ao lema da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade para estabelecer as três primeiras gerações dos direitos fundamentais. Ao referir-se a este assunto em sua obra, Paulo Bonavides afirma:
[...] o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade. Com efeito, descoberta a fórmula de generalização e universalização, restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteúdos materiais referentes àqueles postulados. Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em substituição da universalidade abstrata e, de certo modo metafísica daqueles direitos, contida no jus naturalismo do século XVIII.[18]
Desta feita, são considerados direitos de 1ª geração os direitos civis e políticos, que realçam o princípio da liberdade; direitos de 2ª geração, os econômicos, sociais e culturais, que enaltecem o princípio da igualdade, visando diminuir as desigualdades; e os de 3ª geração são os direitos de solidariedade ou fraternidade, a exemplo do direito ao desenvolvimento ou progresso, direito a um meio ambiente equilibrado e outros direitos difusos.
Originalmente, foram apresentadas essas três gerações de direitos fundamentais. No entanto, Bonavides criou mais duas, são elas: direitos de 4ª geração, que se referem aos direitos de proteção às minorias, a exemplo dos que tutelam a democracia, a informação e o pluralismo; e os direitos de 5ª geração, que se referem à paz. Ressalte-se que outros autores apontam como direitos de 5ª geração aqueles concernentes à informática e à cibernética, desviando-se do pensamento de Bonavides, autor que trouxe para o Brasil a teoria das gerações dos direitos fundamentais.[19]
Impende destacar ainda que as gerações não se excluem, mas se somam. Por este motivo, alguns doutrinadores, preferem denominar como dimensões, e não como gerações, a fim de retirar a conotação de sucessão e consequente exclusão de direitos trazida pelo termo gerações, o que é falso. Nesse sentido, Willis Santiago Guerra Filho se manifesta:
[...] ao invés de “gerações” é melhor se falar em “dimensões de direitos fundamentais”, nesse contexto, não se justifica apenas o preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos “gestados” em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos de geração sucessiva, assumem outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada – e, consequentemente, para melhor realizá-los.[20]
Apesar da discussão doutrinária, a maioria dos autores permanece utilizando o vocábulo original empregado por Vazek, ou seja, gerações de direitos fundamentais.
Depois de todo o explanado, parece ser pertinente a reflexão de Martins, sobre os direitos fundamentais na atualidade: “Parece que hoje, o maior problema dos direitos fundamentais não é tanto o de justificá-los ou fundamentá-los, mas de protegê-los para que não sejam violados. É preciso também que eles tenham eficácia e sejam garantidos”. [21]
O presente trabalha trata de tema na seara trabalhista, cujos direitos específicos localizam-se na 2ª geração e se relacionam com o princípio da igualdade, exigindo do Estado uma atuação positiva a fim de coibir abusos contra os direitos sociais. No entanto, abordar-se-á mais a fundo os direitos à intimidade e à vida privada do empregado, que apesar de serem classificados como direitos de 1ª geração, ligados ao princípio da liberdade, não deixam de ser aplicáveis aos trabalhadores, pois, como já explanado, as gerações não se excluem, mas se somam.
2.3. DIREITOS DA PERSONALIDADE
Conceitua-sedireitos da personalidade como aqueles que conferem às pessoas a proteção das características mais relevantes de sua personalidade e, sem os quais, esta se tornaria algo insuscetível de realização, tendo sua existência impossibilitada. São direitos subjetivos, cujo conteúdo se identifica com os valores e bens essenciais da pessoa humana, abrangendo aspectos morais, intelectuais e físicos. [22]
Segundo a doutrina clássica de Orlando Gomes, direitos da personalidade assim são definidos:
Sob a denominação de direitos da personalidade compreendem-se osdireitos personalíssimos e os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana que a doutrina moderna preconiza e disciplina no corpo do Código Civil[23] como direitos absolutos, desprovidos, porém, da faculdade dedisposição. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte dos outros indivíduos.[24]
Carlos Alberto Bittar define os direitos da personalidade como sendo direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.[25]
A teoria dos direitos da personalidade é relativamente nova, no sentido de haver um reconhecimento formal pelos ordenamentos jurídicos dos direitos atinentes à pessoa humana, no entanto suas bases remontam a tempos longínquos.
Vários foram os pensamentos doutrinários e filosóficos que influenciaram a construção de tal teoria, podendo ser destacados o da religião cristã, pelo fato de ter estabelecido fortes ideais morais e a concepção de dignidade humana. Conforme a doutrina de Sarlet, embora não pareça correto creditar ao cristianismo a “exclusividade e originalidade quanto à elaboração de uma concepção de dignidade da pessoa humana”, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento encontram-se referências dizendo que “o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus”, e dessas alusões se extrai que “o homem é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento” [26]
Também dá-se crédito, dentre outras filosofias, àda Escola de Direito Natural, que disseminou a ideia da existência de direitos inatos à natureza humana e ainda anteriores à formação de um Estado político organizado e a um ordenamento jurídico positivo; e também aos filósofos do Iluminismo, que valorizavam o indivíduo em face do Estado, revolucionando toda uma época.[27]
Textualmente, diversos diplomas marcaram a evolução desses direitos, dentre osquais destacam-se o Bill ofRights dos Estados americanos,de 1689, cujo artigo 8º dispunha: “excessivebailshallnotberequired, norexcessive fines imposed, nor cruel andunusualpunishementsinflicted”[28]; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que, em seu artigo 8º prelecionava: “La Loi ne doitétablir que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peutêtre puni qu'envertu d'une Loiétablie et promulguéeantérieurementaudélit, et légalementappliquée”[29]; e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, cujo artigo 3º estabelecia: “tout individu a droit à lavie, à laliberté et à lasûreté de sapersonne”.[30]
Pode-se dizer que esta última foi o grande marco da teoria dos direitos da personalidade, que teve sua construção iniciada nos tribunais franceses, em meados do século XX, como consequência da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Dentre outras, esses textos evidenciaram a preocupação do legislador em reconhecer direitos aos homens em uma esfera pública e política, protegendo-o contra o absolutismo e o totalitarismo estatal, que reinavam naquela época (pós-segunda guerra mundial).
Aintenção desses textos, inicialmente, era a proteção dos indivíduos e seus direitos face ao Estado, assim como atutela legislativa dos direitos da pessoa humana se deu, primeiramente, também na esfera pública. Contudo, por não haver um sistema protetivo desses bens face aos particulares, tais normas passaram a ser aplicáveis também na seara do direito privado. [31]
Corroborando com o acima explanado, tem-se as palavras de Gilbert Robert Lopes Florêncio, que aponta:
Historicamente, a preocupação da pessoa humana contra as agressões do Poder Público vem de longa data, refletida mais recentemente, na Declaração dos Direitos do Homem, de 1979, e posteriormente, em 1948, em texto das Nações Unidas, da mesma forma denominado. Uma vez reconhecidos esses direitos no âmbito do direito público, crescente tornou-se a necessidade de também serem reconhecidos na esfera privada, na defesa dos homens diante das ameaças e agressões advindas de outros homens. [...] a história mostra que foi a jurisprudência, diante da lacuna deixada pelas legislações nos mais diversos países, que promoveu o amparo dos direitos da personalidade.[32]
Quanto à natureza jurídica dos direitos da personalidade, são eles enquadrados, pela doutrina, na categoria dogmática dos direitos subjetivos, muito embora recebam um tratamento jurídico especial se confrontados com os demais direitos da mesma categoria.[33]
Esta diferenciação se dá, principalmente, em virtude do objeto que visam proteger(os valores e bens essenciais inerentes ao ser humano) do que decorre uma tutela jurídica de natureza dúplice, integrada pelos níveis constitucional e de legislação ordinária, consequentemente permeada por diversas esferas do direito positivo.[34]
Dessa forma, no ordenamento jurídico brasileiro, a proteção dos direitos da personalidade realiza-se em dois níveis:o constitucional, com princípios que organizam e disciplinam a organização da sociedade, abrigando os direitos da personalidade no artigo 5º, X, especificamente[35]; e o da legislação ordinária, que desenvolve e concretiza os princípios constitucionais.[36]
Em sede constitucional encontram-se princípios e direitos fundamentais atinentes à promoção e defesa da personalidade, dos quais podem ser citados como exemplo o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), os direitos à vida, à liberdade e à igualdade (art. 5º, caput), assim como os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X). Tais princípios e direitos constitucionalmente garantidos norteiam a legislação infraconstitucional que disporá sobre a matéria. Neste sentido, dispõe Tepedino:
A posição da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da República (Constituição Federal, art. 1°, II e III), juntamente com as garantias de igualdade material (art. 3°, III) e formal (art. 5º), condicionamo intérprete e o legislador ordinário,modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte e marcam a presença, em nosso ordenamento, de uma cláusula geral da personalidade.[37] [grifo do autor].
Já na seara da legislação ordinária, pode-se citar como o diploma que tutela os direitos da personalidade o Código Civil de 2002, que dedica todo seu capítulo II para agasalhar os direitos da personalidade, com exatos onze artigos. Os dois primeiros cuidam da natureza e da tutela desses direitos, enquanto os demais tratam de específicos direitos da personalidade.
Florêncio sustenta que “com o advento do Novo Código Civil, complementou-se a proteção já outrora conferida pela Constituição Federal, conferindo a todos nós importante ferramenta no resguardo daquilo que nos é mais caro, em suma, a dignidade humana”. [38]
O próprio texto civilista já enumera duas características dos direitos da personalidade: a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade. São tidos como irrenunciáveis porque não é consentido ao seu titular abdicar deles, ainda que tal pretensão tenha, eventualmente, o fim de promover a manutenção da subsistência do sujeito. E a intransmissibilidade significa que não podem ser alheados por ato entre vivos, tanto gratuito como oneroso, e que, por serem de natureza personalíssima, exaurem-se com a morte de seu titular; há, porém, entendimento segundo o qual alguns direitos e interesses respeitantes à personalidade subsistem post mortem, dando ocasião a que sejam transmissíveis por sucessão causa mortis. Ainda conforme o texto legal, possuem também a característica de impossibilidade de limitação voluntária de seu exercício.
Tais características consagradas legalmente são fruto de construção doutrinária, que ainda aponta outros caracteres dos direitos da personalidade: são também gerais, absolutos, extrapatrimoniais e imprescritíveis.[39]
São considerados gerais porque são conferidos a todos, ou seja, o único requisito para titularizá-los é o fato de ser pessoa humana. São absolutos porque possuem oponibilidade erga omnes (contra todos), impondo à coletividade, e não somente a algumas pessoas, que os respeitem. Os direitos da personalidade são, igualmente, extrapatrimoniais, em virtude de que não estão sujeitos a qualquer avaliação econômica, muito embora de sua violação possa advir efeitos pecuniários. Por fim, os direitos da personalidade são também imprescritíveisporque, primeiro, ainda que o titular se abstenha de exercê-los durante um longo período, poderá sempre utilizá-los; segundo, porque a pretensão ressarcitória não se extingue em virtude da convalescença de eventual lesão a tais direitos.
Uma ressalva deve ser feita quanto ao disposto na primeira parte do artigo 11, do Código Civil. Quando diz: “Com exceção dos casos previstos em lei...”, não se refere a qualquer tipo de restrição na proteção dos direitos da personalidade por parte das legislações ordinárias. Entender tal dispositivo desta forma é negar a vontade do legislador, que enuncia logo adiante, no artigo 12, a possibilidade de reclamar perdas e danos caso haja lesão ou ameaça a algum direito da personalidade. Neste sentido, doutrina Danilo Doneda:
A reserva presente no artigo: "Com exceção dos casos previstos em lei..." há de ser devidamente ponderada,atendendo a valores constitucionalmente relevantes. De forma alguma se abre para a possibilidade de limitar a tutela por atos legislativos ordinários, o que inclusive não se enquadra no espírito dos dispositivos aqui examinados. A tutela dos direitos da personalidade, deveser integral, garantindo a sua proteção em qualquer situação. O artigo 12 responde a esta necessidade de ampliação da tutela com um mecanismo que já vinha sendo utilizado para minimizar ou evitar danos à personalidade, que é a tutela inibitória. Esta tutela faz-se acompanhar, no enunciado do artigo, de um meio já tradicional de tutela dos direitos da personalidade, que é a responsabilidade civil. É também reconhecida a possibilidade de outras sanções, previstas em lei, incidirem sobre o ofensor. Na verdade, a experiência estrangeira vem demonstrando a dificuldade de oferecer à personalidade uma tutela eficaz somente por meio dos meios de tutela ditos "tradicionais". O desenvolvimento tecnológico e a atual dinâmica social criam uma demanda de proteção à pessoa humana que deve ser realizada com novos instrumentos e por todo o ordenamento.[40]
Desde as origens da teoria dos direitos da personalidade até hoje tais direitos continuam a ser tutelados, enaltecendo-se a característica da irretroatividade dos direitos do homem, ou seja, pode-se tutelar mais do que antes, mas nunca menos. Ademais, não se pode estabelecer um número fechado de direitos da personalidade para serem acobertados pela legislação. A sociedade evolui, e com ela novos direitos surgem. A esse respeito, doutrina Pietro Perlingieri:
A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações.[41]
Dentre os direitos da personalidade, também direito fundamental e intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, que interessa especificamente para o presente trabalho, está o direito à intimidade, inserido dentro do direito à privacidade, para o qual se voltam as atenções do próximo tópico.
2.4. DIREITO À PRIVACIDADE
Como explanado anteriormente, o direito à privacidade é tutelado constitucionalmente, enquanto direito fundamental, no artigo 5°, X; bem como na legislação infraconstitucional, especificamente pelo Código Civil de 2002, enquanto direito da personalidade, no artigo 21; não se deve olvidar que ambas as previsões têm como objetivo atender ao valor constitucional supremo da proteção à dignidade da pessoa humana.
Apesar de haver previsão de proteção tanto no topo da esfera normativa, qual seja, na Constituição, quanto na legislação ordinária, os direitos da personalidade são frequentemente desrespeitados, sobretudo o direito à intimidade e à vida privada, uma vez que a sua violação, por vezes, é de difícil verificação, enaltecendo-se a necessidade de maior guarita. Assim preleciona Doneda:
A proteção da privacidade é um dos temas maisdelicados na matéria dos direitos da personalidade, istopelo potencial de ofensas à personalidade ter crescido abruptamente com o desenvolvimento tecnológico etambém pela dificuldade dos instrumentos de tutela tradicionais do ordenamento realizarem adequadamente esta proteção. O novo Código dá mostras disto, ao prever que o juiz "adotará as providências necessárias" paraimpedir a violação da privacidade.Não deve entender-se que a proteção da privacidadenão se possa fazer também por via da responsabilidade civil - ela é mais um instrumento que pode e deve ser utilizado. Apenas é patente a dificuldade em se utilizar este instituto quando o dano é tão dificilmente demonstrável, como em tantos casos de violação da privacidade, apesar de evidentea antijuridicidade pelo desrespeito à pessoa e à sua dignidade.Ao clamar pela criatividade do magistrado para que tome asprovidências adequadas, o Código dá mostras danecessidade de uma atuação específica de todo oordenamento na proteção da privacidade da pessoa humana, que seja uma resposta eficaz aos riscos que hoje corre.[42]
Inicialmente, deve-se elucidar que o direito à intimidade e à vida privada são espécies do gênero direito à privacidade, que é um direito conexo ao direito à vida, e ainda tem como espécies a proteção da honra e da imagem da pessoa. A este respeito, Silva esclarece:
A Constituição declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art.5º, X). Portanto, erigiu, expressamente, esses valores humanos à condição de direito individual [direito fundamental], mas não o fez constar do caput do artigo. Por isso, estamos considerando-o um direito conexo ao da vida. Assim, ele figura no caput como reflexo ou manifestação deste.[43]
Quanto à terminologia do direito à privacidade, por conta do dispositivo constitucional indicar as quatro espécies do direito à privacidade (intimidade, vida privada, honra e imagem) como direitos diversos, apartados, prossegue a doutrinar o referido autor:
O dispositivo põe, desde logo, uma questão, a de que a intimidade foi considerada um direito diverso dos direitos à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, quando a doutrina os reputava, com outros, manifestação daquela. De fato, a terminologia não é precisa. Por isso, preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou. Toma-se, pois, a privacidade como o “conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”. [...] A doutrina sempre lembra que o Juiz americano Cooly, em 1873, identificou a privacidade como o direito de ser deixado tranquilo, em paz, de estar só: Righttobealone.[44]
Passa-se agora à breve análise dos significados das espécies do direito à privacidade. Contudo, antes, faz-se necessária uma advertência trazida por Silva, no sentido de diferenciar os direitos à honra e à imagem dos demais, motivo pelo qual se fará exposição em apartado dos referidos direitos.
O direito à preservação da honra e da imagem, como o do nome, não caracteriza propriamente um direito à privacidade e menos à intimidade. Pode mesmo dizer-se que sequer integra o conceito de direito à vida privada. A Constituição, com razão, reputa-os valores humanos distintos. A honra, a imagem, o nome e a identidade pessoal constituem, pois objeto de um direito, independente, da personalidade.[45]
O Código Civil também assim considera, a notar-se pela disposição dos referidos direito em artigos diferenciados daquele que prevê a inviolabilidade da vida privada.
O direito à honra significa a tutela da dignidade pessoal refletida na consideração do outro e no sentimento da própria pessoa. Trata-se da reputação do indivíduo perante o meio social em que vive (honra objetiva) ou na estimação que possui de si próprio (honra subjetiva). Convém lembrar que a ofensa que enseja reparação civil é aquela que fere a honra objetiva. [46]
O direito à imagem resguarda os traços físicos da figura humana sobre um suporte material qualquer, protegendo-os de captação e difusão sem o consentimento do indivíduo. Novelino, ao doutrinar sobre o assunto, recorda que a proteção a este direito é “autônoma em relação à honra, sendo ilícita a utilização da imagem se o consentimento de seu titular, salvo quando houver justa causa”. [47]
Ao presente trabalho interessam especificamente a espécie intimidade, que se encontra dentro da esfera de proteção do direito à vida privada, e deste possui distinção tênue, como se passa a expor.
A diferença entre as citadas espécies é mínima, portanto, traz-se à baila os ensinamentos esclarecedores de Moraes:
Os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, podendo, porém, ser diferenciados por meio da menor amplitude do primeiro, que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto vida privada envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc.[48]
No mesmo sentido são os posicionamentos de Silva, que assim dispõe: “Não é fácil distinguir vida privada e intimidade”. [49]
Marcelo Cardoso Pereira reforça o posicionamento apresentado:
Os conceitos de intimidade e de vida privada são indetermináveis, “flutuantes” segundo o comportamento da pessoa e a influência de alguns aspectos externos. Não há como negar a existência de um vínculo entre vida privada e intimidade. Aquela abrange esta.[50]
Silva conclui que vida privada, em última análise, integra a esfera íntima da pessoa, sendo repositório de segredos e particularidades do foro moral e íntimo do indivíduo. “A vidainterior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus amigos”, é este o conceito de vida privada nos termos que a Constituição considerou inviolável. [51]
Quando protegeu a vida privada, quis o constituintegarantir à pessoa o direito de viver a própria vida, de ter resguardadas informações que o sujeito não deseja ver divulgadas para a sociedade, como é o exemplo da orientação sexual.[52]
Com o advento da internet, preservar a vida privada tem-se tornado tarefa árdua, pois os limites da rede mundial de computadores são desconhecidos, e o seu controle é dito como impossível. Não se consegue controlar o que é “jogado” na rede.
Nesta seara, pode-se ter em mente o que foi dito no início do tópico “direito à privacidade”, quando mostrou-se que a reparação civil, em alguns casos, não é suficiente para tutelar a lesão ou ameaça ao direito à vida privada, sendo necessário valer-se na criatividade do magistrado para melhor proteger os direitos da personalidade frente às novas situações que o mundo moderna apresenta, como é o caso da problemática da internet.
2.5. DIREITO À INTIMIDADE
Conforme explanado anteriormente, o direito à intimidade é corolário do princípio da dignidade humana, é direito fundamental, é direito da personalidade, é direito à privacidade e integra o núcleo mínimo abrangido pelo direito à vida privada.
Percorreu-se todo esse caminho doutrinário para bem localizar a importância do direito à intimidade dentro ciência jurídica.
Ao tutelar a intimidade, o legislador garantiu o direito que a pessoa tem de ser deixada em paz, de guardar para si seus sentimentos, pensamentos e emoções. Tutelou-se o mundo intrapsíquico, compreendendo as esferas do confidencial e do segredo. [53]
Ao abranger as esferas do confidencial e do segredo, Silva indica que a intimidade abrange a inviolabilidade de domicílio, o sigilo da correspondência e o segredo profissional. [54]
Especificamente, interessa ao presente trabalho uma análise acerca do sigilo de correspondência e sua relação com a possibilidade de monitoramento do e-mail pelo empregador. Sobre isso, discorrer-se-á adiante.
2.5.1. O SIGILO DE COMUNICAÇÕES E SUA RELAÇÃO COM O E-MAIL
Aduz Marmelstein que o princípio geral da intimidade e da privacidade é que protege o indivíduo contra a devassa indevida de seus dados pessoais, demonstrando, assim, a íntima relação entre o direito à intimidade e a inviolabilidade das comunicações. [55]
O sigilo das comunicações é previsto no artigo 5º, XII, da Constituição Federal, e diz: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Desta forma, o dispositivo protege a liberdade de comunicação.
Interceptação das comunicações consiste na intromissão ou interrupção por parte de terceiros sem o conhecimento de um (ou de ambos) dos interlocutores. A interceptação é feita por um terceiro que não está participando da comunicação, por isso não se confunde com a gravação clandestina.[56]
O direito de ver salvaguardadas as correspondências possui ligação direta com o direito à privacidade, esculpido no artigo 5°, X. Neste tocante, esclarecedoras são as palavras de Evani Longo:
A inviolabilidade da comunicação é uma inovação introduzida naConstituição Federal de 1988.O sigilo de dados contemplado pela norma constitucional vigente é correlato ao direitofundamental à privacidade (art. 5º, X). O indivíduo tem o direito de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que a ele só épertinente e que diz respeito ao modo de ser exclusivo no âmbito de sua vida privada.[57]
Silva trata o sigilo de correspondência como matéria de segurança das comunicações pessoais, inserida, assim, dentro do direito à segurança, previsto no caput do art. 5º. E prossegue a discorrer sobre a inviolabilidade do inciso XII, nos seguintes termos:
Ao declarar que é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, a Constituição está proibindo que se abram cartas e outras formas de correspondência escrita, se interrompa o seu curso e se escutem e interceptem telefonemas. [...] A suspensão, sustação ou interferência no curso da correspondência, sua leitura e difusão sem autorização do transmitente ou do destinatário, assim como as interceptações telefônicas fora das hipóteses excepcionais autorizadas no dispositivo constitucional, constituem as formas principais de violação do direito protegido. [...]. [58]
Interessante notar que o referido dispositivo constitucional ao tempo em que tutela a comunicação epistolar, telegráfica, de dados e telefônica, também prevê a possibilidade de violação a tais direitos, caso sejam confrontados com outros e para servirem a investigação criminal ou instrução processual penal. Assim preleciona Moraes:
Entende-se que nenhuma liberdade pessoal é absoluta, sendo possível, respeitados certos parâmetros, a interceptação das correspondências e comunicações telegráficas e de dados sempre que as liberdades públicas estiverem sendo realizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. [59]
No mesmo sentido doutrina Novelino: “O termo inviolável não significa a impossibilidade absoluta de violação, mas a necessidade da existência de motivos suficientemente fortes a justificá-la (princípio da convivência das liberdades públicas)” [grifo do autor]. [60]
Assim, ainda que tais direitos sejam fundamentais, poderão sofrer restrições em sua defesa, restrição esta que se encontra prevista no próprio texto constitucional, como visto.
Marmelstein aponta que a jurisprudência tem abrandado a rigidez do inciso XII e flexibilizado a garantia do sigilo das comunicações escritas para autorizar a sua quebra em situações que não se enquadram na ressalva constitucional. [61]
De acordo com o STF, o sigilo epistolar não pode servir como escudo protetivo para salvaguardar práticas ilícitas. Quando a Constituição consagrou a inviolabilidade das correspondências ela queria proteger o individuo perante o Estado e os demais particulares, mas essa inviolabilidade não pode chegar ao ponto de acobertar crimes.
A jurisprudência vem mostrando que a restrição ao sigilo de comunicação pode realmente acontecer, como no caso da comunicação dentre dos presídios, em que o diretor do estabelecimento prisional, em nome da segurança pública, pode abrir as correspondências dos presos.[62]
Os Correios também podem abrir correspondências quando há, por exemplo, suspeita de crimes ambientais, mesmo sem autorização judicial. Ou também quando se tratar de artefatos que podem colocar a vida de pessoas em perigo. A correspondência pode ser violada, portanto, em nome de outros princípios constitucionais.
A própria Constituição anda estabelece outras situações nas quais pode haver quebra do sigilo de correspondência, como é o caso do estado de defesa (art. 136, §1º, I, “b”, CF), e do estado de sítio (art. 139, III, CF).
Trata a presente discussão monográfica, especificamente, de comunicação realizada através de e-mail. Para tanto, emerge o questionamento acerca da natureza jurídica do e-mail, se pode ou não se equiparar a correspondência e, assim, ser acobertado pela norma constitucional do art. 5°, XII.
Inicialmente, cumpre observar a lei 6538, de 22 de junho de 1978, que dispõe sobre os serviços postais no Brasil. A referida legislação traz no bojo de seu artigo 7° os itens que são considerados objetos de correspondência, não se incluindo ali o e-mail. [63] As razões são óbvias, afinal, a lei data de 1978, época em que o e-mail não era acessível às pessoas como hoje é. Ademais, fazia apenas sete anos que a correspondência eletrônica havia sido inventada, o que ocorreu apenas em 1971, encontrando-se a ferramenta virtual em estágio de testes e não disponibilizada ao público.
Moreira completa tal pensamento afirmando que o fato de “a internet não pertencer à União nem tampouco ser explorada por uma concessionária de serviço público [como ocorre com os Correios]” em muita influencia para a não inclusão do e-mail no rol do artigo 7°. [64]
Assim, a doutrina diverge e dá ao e-mail naturezas jurídicas diversas.
Há quem ostente poder ser o correio eletrônico equiparado às comunicações escritas pertencente ao rol das correspondências, dos telegramas e dos bilhetes de modo geral, mesmo sem a expressa previsão legal. [65]
Nesta mesma linha de pensamento enquadra-se Marmelstein, ao defender:
Portanto, a melhor interpretação do art. 5º, inc. XII, da CF/88 parece ser esta: (a) regra geral: inviolabilidade das comunicações; (b) exceção: em situações especiais, justificadas pelo princípio da proporcionalidade, é possível a limitação da garantia, no que se refere às comunicações escritas (cartas, telégrafos, e-mails), inclusive, para autorizar a quebra de sigilo por autoridades não judiciárias e para fins não criminais, respeitando-se, vale enfatizar, o princípio da proporcionalidade; (c) exceção da exceção: no caso das comunicações de “viva-voz”, o sigilo é mais forte, pois somente pode ser quebrado por ordem judicial [grifo nosso]. [66]
Há também quem sustente o posicionamento de ser o e-mail um meio de comunicação de dados, com base no conceito e na forma como acontece a comunicação eletrônica.
Tecnicamente falando, o chamado correio eletrônico não é um serviço postal e o depósito de mensagens não é, propriamente, uma caixa postal. Insta ressaltar que, diante do próprio conceito do que seria o correio eletrônico, pode-se concluir que ele é, na verdade, meio de comunicação de dados. A própria informática assim o considera, pois ao enviarmos uma mensagem ela assumirá a configuração de dados e será emitida através de uma rede a outro computador de acesso. Deve-se também observar que, para que a comunicação de dados se concretize, isto é, para que o correio eletrônico seja enviado, é necessária uma rede de transmissão de dados, assim como ocorre com a comunicação telefônica. Para tanto, podem ser usadas as linhas telefônicas de voz (Inicialmente, o serviço utilizado para comunicação de dados era feito pelas linhas telefônicas de voz (linhas analógicas), mais conhecida como linha dial up ou acesso discado), linhas-tronco, rede digital, rede de fibra óptica, rede de TV a cabo etc.[67]
Corrobora com essa linha de pensamento Martins, ao proferir que “o sigilo de comunicação de dados, como o e-mail, é também inviolável. Entretanto, essa regra não pode ser entendida de modo absoluto, principalmente diante da má-fé do empregado” [68].
De um modo ou de outro, a diferenciação entre e-mail e correspondência postal é patente, sendo tese defendida inclusive pelo ministro do STF, Nelson Jobim, em congresso de Direito Eletrônico na cidade de São Paulo em 2000, como informa Adriana Carrera Calvo. Para o ministro, invasão do e-mail não é violação de correspondência, mas da privacidade, nos termos no artigo 5º, X, da Constituição, diferenciando, assim, carta e correio eletrônico. [69]
Independente da natureza do e-mail, seja ele abarcado ou não pela inviolabilidade de correspondência, é certo que o seu monitoramento fere o direito fundamental à privacidade, pensamento este que se encontra em consonância com o posicionamento de Jobim, supramencionado. Desta forma, passa-se agora à discussão do direito à intimidade, lembre-se que este é um desdobramento do direito à privacidade, no ambiente de trabalho.
2.6. O DIREITO À INTIMIDADE NO ÂMBITO LABORAL
O Código Civil, ao tutelar os direitos da personalidade, traz disposições importantes que remetem a reflexões no âmbito do direito do trabalho, como é o caso do artigo 21, que preleciona ser a vida privada da pessoa natural inviolável, cabendo ao Juiz, a requerimento do interessado, adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma.
Ressalte-se que ao falar em vida privada, o legislador também abrangeu a intimidade, pois esta faz parte daquela, como já dito em tópicos anteriores, além de ser um posicionamento reforçado pela teoria das esferas e dos círculos concêntricos, desenvolvida por juristas italianos e alemães. Tal teoria foi adaptada pelos juristas brasileiros Paulo José da Costa Júnior e José Serpa de Santa Maria, a fim de que os três círculos da tese original se tornassem apenas dois: um que simboliza a privacidade ou intimidade e outro que representa o segredo, a vida privada. [70][71]
Paulo Eduardo Vieira de Oliveira, ao discorrer sobre os direitos fundamentais da pessoa no âmbito trabalhista, enaltece o valor da cidadania, entendida como o“conjunto de prerrogativas e de deveres que traduza a plena integração de uma pessoa no espaço social onde se encontre”, utilizando-se do termo “cidadania sócio-laboral”, para enquadrar a atribuição de tais prerrogativas para o empregado. [72]
Esta expressão utilizada por Oliveira remete à ideia de efetivação dos direitos da personalidade, também direitos fundamentais, para a pessoa do empregado.
A matéria tem relevo jurídico inquestionável e eminente no campo do Direito do Trabalho por dois motivos: por um lado, pela especificidade da prestação do trabalho, cuja inseparabilidade da pessoa do trabalhador torna mais prováveis as ameaças aos seus direitos fundamentais; por outro lado, pela possibilidade de limitação desses mesmos direitos no quadro de vínculo de emprego, que necessita de enquadramento em termos jurídicos. [73]
O referido autor alerta para o fato de que independente da condição de subordinação à qual o empregado é submetido por conta do contrato de trabalho, seus direitos devem manter-se intactos, pois são bens constitucionalmente agasalhados que merecem proteção em qualquer situação.
Já não nos encontramos apenas no plano do contrato de trabalho, mas no plano dos direitos do Homem, da pessoa humana existente dentro de cada trabalhador. A formalização de um contrato de trabalho não implica, de modo algum, em privação de direitos que a Constituição reconhece ao trabalhador enquanto cidadão. Quando uma pessoa é contratada por uma empresa na condição de empregada, esta mantém todos os direitos de que são titulares outras pessoas, outros cidadãos. Assiste-se hoje a uma recomposição constitucional do contrato de trabalho, com acentuação da sua ligação com a pessoa humana do trabalhador e seus respectivos direitos. [74]
Ao mencionar a manutenção dos direitos referentes à cidadania e à própria dignidade humana ainda que no contrato de trabalho, Oliveira refere-se à evolução que o direito do trabalho galgou nos últimos tempos. Antes, na época em que o trabalhador nem sequer podia reclamar boas condições no ambiente de trabalho, não fazia sentido falar em cidadania laboral, pois o empregado não tinha vida, por assim dizer, fora do trabalho. Hoje, os direitos garantidos inicialmente fora do âmbito laboral, são para este arrastados, pois acompanham a pessoa do empregado, enquanto cidadão.
O reconhecimento destes direitos no âmbito laboral tem implicações imediatas no contrato de trabalho: ele permite ao trabalhador invocá-los perante o empregador e determina sua imposição genérica à autonomia privada, bem como a limitação ao mínimo de eventuais restrições que lhes sejam impostas por força do contrato, assegurando-se a salvaguarda do seu conteúdo essencial. Assim, o trabalhador-cidadão tem direito à reserva da intimidade de sua vida privada na empresa, não podendo o empregador colocar no ambiente de trabalho instrumentos de vigilância hoje abundantemente utilizados como câmeras de filmagem, gravadores, câmeras da web, controles de e-mails ou controles similares. [75]
O direito à privacidade é um dos direitos do trabalhador enquanto cidadão que devem ser respeitados, afinal, o contrato de trabalho não pode servir de guarita para abusos por parte do empregador.
Estevão Mallet, ao comentar acerca dos dispositivos do Código Civil que tratam dos direitos à personalidade, indicando suas influências na relação de emprego, assim discorre sobre o artigo 21:
O empregado, quando celebra o contrato de trabalho, não se despoja da sua intimidade, que continua a existir e a merecer tutela e preservação. Há, todavia, uma dificuldade. A intimidade do empregado precisa ser confrontada com o poder diretivo do empregador. Ninguém imaginará que, por ter a sua intimidade preservada no local de trabalho, o empregado fique imune a qualquer fiscalização. Isso descaracterizaria o poder diretivo do empregador e, no fundo, eliminaria a subordinação, fazendo desaparecer o próprio contrato de trabalho. [76]
Tem-se colocado aqui o conflito do monitoramento do e-mail do empregado pelo empregador no local de trabalho. Em campos diametralmente opostos encontram-se o direito do empregado à privacidade, que como já se discorreu é mantido dentro da relação de emprego; e o poder diretivo do empregador, que é um dos requisitos do contrato de trabalho e para o qual as atenções serão voltadas no próximo tópico.
A fim de realizar um estudo mais completo sobre o tema, passa-se neste instante à análise do outro lado da relação de emprego, o lado do empregador, cujo valor que entra em conflito com o direito à intimidade do empregado é o do poder diretivo.