Resumo: O Direito do ambiente pode ser entendido como o complexo de princípios e normas coercitivas reguladoras das atividades humanas que afetam a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações. Seu status de direito fundamental é reconhecido no direito pátrio. Uma das formas de proteger as áreas ambientais ocorre através da criação das Áreas de Preservação Permanente (APP), cuja regulamentação encontra-se no Código Florestal, inclusive na nova legislação - Lei Federal nº 12.651/2012 - que promoveu a revisão do Código Florestal Brasileiro. Nesta lei, constata-se um regime jurídico específico de proteção das APP, determinando quando essas áreas podem sofrer supressão ou intervenção e em que situações pode o Poder Público declarar áreas como APP. No entanto, em zonas urbanas nas quais o proprietário busca edificar em áreas situadas em APP - justificando sua conduta no direito à propriedade, baseando-se na autorização do Poder Público Municipal, na localização em área urbana consolidada ou ainda pela descaracterização da APP (dada a inexistência de função ambiental do bem) - surge o conflito entre o direito fundamental à propriedade, como pilar da sustentação da vida em sociedade, e o direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado, como garantia das presentes e futuras gerações, fazendo-se necessário a obrigação de compatibilização de princípios, avaliados sob a ótica da razoabilidade e proporcionalidade. Nesse seara, este artigo analisa decisões judiciais acerca dessa situação e a resolução dada nos casos concretos, focando em uma análise crítica destes conflitos, dada a necessária preservação do meio ambiente, bem como a segurança aos moradores e a preservação da função socioambiental da propriedade, necessárias à sustentação da vida social.
Palavras-chave: Direito Fundamental ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, Área de preservação permanente (APP) em zonas urbanas, Função socioambiental da Propriedade, Direito de edificar.
1 INTRODUÇÃO
Direito do ambiente pode ser entendido como o complexo de princípios e normas coercitivas reguladoras das atividades humanas que, direta ou indiretamente, possam afetar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações (cf. MILARÉ, 2004, p.134).
A Constituição Federal de 1988 erigiu o meio ambiente ao status de direito fundamental, reconhecendo no direito a um meio ambiente sadio a extensão do direito à vida[1]. O direito ao meio ambiente equilibrado também é reconhecido internacionalmente, pelas Conferências das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano de 1972, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, e mais recentemente, no Rio+20, que reafirma os esforços para assegurar a promoção de um futuro economicamente, socialmente e ambientalmente sustentável para o nosso planeta e para as gerações presentes e futuras[2].
Para assegurar a fruição desse direito, o constituinte determinou ao Poder Público, dentre outras obrigações, “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção” (art. 225, §1º, III da CF/88).
Está assentado entre os doutrinadores pátrios que esses espaços territoriais a serem protegidos, também denominadas “áreas ambientalmente protegidas” são a) as unidades de conservação previstas na Lei Federal 9.985/2000 – Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; b) as áreas de preservação permanente (APP), previstas no Capítulo II da Lei. 12.651/2012 – Código Florestal e c) a áreas rurais de reserva legal, previstas no Capítulo IV da Lei Federal nº. 12.651/2012 (cf. LARCHER, [2010?]).
Neste contexto, o presente artigo tem por escopo abordar a complexidade das áreas urbanas que se enquadram na definição de APP e a permissão do exercício de propriedade nessas áreas cujos projetos foram aprovados pela autoridade municipal ou em áreas que já se encontram consolidadas[3], descaracterizando a APP e, consequentemente, eliminando a exigência legal de preservar aquela área com sua vegetação natural. Utilizar-se-á, como metodologia, a análise de julgados, bem como a revisão bibliográfica do tema.
2 ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
Conforme dispõe o Código Florestal, Lei 12.651/2012, em seu art. 3º, inciso II, Área de Preservação Permanente – APP é a “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
No seu art. 4º, incisos I a XI, estão definidas quais são as áreas consideradas APP[4]. Essa espécie de APP, criada pelo art. 4º, é denominada área de preservação permanente ex lege. A existência de APP também pode advir da iniciativa dos proprietários ou de ato do Poder Público, com as funções descritas no art. 6º do Código Florestal[5]. Importante frisar que no próprio artigo 4º, caput, estabeleceu-se a obrigatoriedade de as APP serem consideradas em áreas urbanas, não havendo alterações em relação à legislação florestal anterior (Lei 4.771/65).
No art. 8º da Lei. 12.651/2012 estão descritas as possibilidades legais de supressçao ou intervenção de tais áreas:
A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei.
Nota-se que o legislador não deixou margem de discricionariedade ao administrador público competente para autorização das intervenções em APP, uma vez que definiu categoricamente os conceitos de “utilidade pública”, “interesse social” e “baixo impacto ambiental” no art. 3ª da referida legislação.
Conforme o caput do art. 4º resta claro que as APP abrangem também o espaço urbano[6]. Portanto, a partir da publicação e vigência da Lei nº. 12.651/2012 há, além da definição legal de APP, a previsão de quando as mesmas podem sofrer supressão ou intervenção, bem como em quais situações pode o Poder Público declarar APP.
Extrai-se do entendimento jurisprudencial e doutrinário que, em se tratando de competência concorrente, cabe à União, nos termos do artigo 24, §1º da CF/1988, editar normas gerais e aos demais entes da federação, editar normas suplementares (§2º), defluindo do sistema que as normas suplementares de Estados e Municípios deverão se conjugar com as normas gerais federais (LARCHER, [2010?]). Neste sentido, a lição de Fernando Reverendo Vidal Akaoui (2000):
“(...) de uma análise conjunta dos artigos 24, inciso VI e seu §2º, artigo 30, II e artigo 225, todos do Texto Maior, somente podemos chegar à conclusão de que, sendo dever do Poder Público defender e preservar o meio ambiente, nem a União, e nem os Estados poderiam, dentro de sua competência concorrente, editar norma que viesse a prejudicar os ecossistemas essenciais, assim como não poderia fazê-lo o Município, dentro de sua competência suplementar”.[7]
Ademais, afirma Paula de Bessa Antunes que, o “respeito aos limites e princípios estabelecidos pelo Código Florestal deve ser interpretado como a impossibilidade legal de os municípios tornarem mais flexíveis os parâmetros estabelecidos na lei federal [8]."
Por isso, a legislação federal deve ser respeitada pelos Estados e Municípios, que somente poderão aumentar as exigências federais, e não diminuí-las, conforme os arts. 23 (VI e VII) e 24 (VI e §2º) da CF (cf. MACHADO, 2011).
3 DIREITO À PROPRIEDADE versus DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
A questão polêmica que será tratada neste tópico diz respeito a decisões judiciais acerca de loteamentos urbanos nos quais há áreas enquadradas como APP, em que se avalia a possibilidade de construir um empreendimento que já fora autorizado pelo órgão municipal, (inclusive com legislação municipal que autorizou o empreendimento indiretamente, ou seja, não enquadrando determinada região como APP, em oposição à norma geral), discutindo-se a existência de área urbana consolidada e possível descaracterização da existência de APP na mesma.
A Ação Civil Pública nº 562.01.2011.029034-3, julgada pelo TJ-SP, diz respeito à apuração realizada pelo Ministério Público sobre fatos ligados ao deslizamento de terra na área do morro Santa Terezinha, município de Santos, relacionados ao processo de edificação com supressão de vegetação do topo e encosta (área enquadrada como APP) num lote localizado em condomínio particular. A decisão judicial pautou-se pela ponderação entre o direito à propriedade e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Da sentença extrai-se que (este trecho foi retirado da sentença?) “apesar da supressão de vegetação em APP afrontar a legislação ambiental, o imóvel que está sendo construído localiza-se em área de perfil urbano ocupada desde 1925 (área consolidada, portanto), bem como a prefeitura municipal autorizou à época a edificação e afirmou que o lote (região Z4) não estava inserido em APP (em oposição ao determinado na legislação federal). Ademais, os réus afirmaram a inexistência de APP, dado a falta de função ambiental. A partir dessa interpretação, trata-se de bem de uso privado, e não de uso comum, destinando o lote para edificação, ainda que em época posterior à aquisição. Extrai-se da sentença:
É evidente que o postulado do direito ambiental a preconizar a ausência de direito adquirido para a formação do dano ao ambiente é importante, todavia não pode ser conduzido a patamar absoluto, devendo ser utilizado com o tempero necessário para não inviabilizar a vida em sociedade (TJSP, Ação Civil Pública nº 562.01.2011.029034. JD 01/08/2012. Diário da Justiça Eletrônico - Caderno Judicial - 1ª Instância - Interior - Parte III São Paulo, Ano V - Edição 1240, p.760-763).
A falta de função ambiental da propriedade, segundo o magistrado, inviabiliza a aplicação do Código Florestal. Não obstante a descaracterização de APP, o relator, baseado na medida de proporcionalidade, ponderação principiológica e em atenção ao princípio do desenvolvimento sustentável, exigiu do condomínio formas de prevenção e compensação de eventuais danos passados e futuros.
Em contrapartida, há argumentos que prestigiam a tutela do meio ambiente, frente ao risco de dano irreparável ocasionado pela ocupação/edificação irregular, como no julgado a seguir:
No Agravo nº 2011.001374-0/0000-00, a 4ª Turma Cível do TJ-MS determinou que os agravantes se abstivessem de utilizar as edificações levantadas às margens do Rio Miranda, de sua propriedade, denominada Rancho dos Batatais, como também de proceder qualquer intervenção, seja reforma ou ampliação, além de eventual limpeza da vegetação local, sob pena de multa pecuniária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) em caso de descumprimentos. Diz o relator, litteris:
A verossimilhança do alegado pelo Ministério Público Estadual está respaldada pela existência, nos autos, de elementos probatórios inequívocos quanto às irregularidades existentes no imóvel, que denotam o dano ambiental causado à área de preservação permanente e, também, no art. 225 da Constituição Federal, que assegura a todos o direito ao meio ambiente equilibrado, e no art. 1.228, §1º, do Código Civil, que impõe ao proprietário o respeito à função socioambiental da propriedade, com a preservação do equilíbrio ecológico.
(...)
A Procuradoria-Geral de Justiça bem expôs em seu parecer, conforme se verifica a seguir:
“Importa registrar, inicialmente, que o “Rancho de Pesca” Batatais situa-se em Área de Preservação Permanente – APP, vez que fora edificado dentro do leito sazonal do Rio Miranda, consoante se infere da leitura do laudo elaborado pelo PROMAP – Engenharia Consultoria Rural e Ambiental Ltda., oportunamente citado pela Promotoria de Justiça de primeiro grau.
A instabilidade do terreno aliada ao uso direto do solo causou erosões que vão de forte a muito forte na margem do rio com impactos negativos de difícil reversão. (f. 21 – autos originais)” (TJMS. Agravo nº 2011.001374-0/0000-00, 4ª Turma Cível. Rel. Des. Josué de Oliveira. Julgado em 12/04/2011).
Apesar dos agravantes argumentarem que não podiam ser recriminados nem penalizados com a proibição de uso de sua propriedade, uma vez que o título primitivo do imóvel em comento foi outorgado pelo Município de Miranda-MS para incrementar o turismo de pesca na Cidade e que a outorga do título pelo Município é anterior ao ano de 1965, sendo que se trata de pesqueiro construído no início da década de 60, antes do advento do Código Florestal, os magistrados privilegiaram o princípio da proteção ao meio ambiente, respaldados no fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação presente no fato de que, se não fossem tomadas medida imediatas, o dano ambiental poderia tornar-se irreversível. Nesse caso, optou-se pelo reconhecimento, no caso em concreto, do maior interesse, qual seja, proteger o meio ambiente.
No julgamento da Apelação Cível nº 5004049-71.2011.404.7208, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região concluiu que se deve compatibilizar o direito à propriedade em zona urbana e o direito ao meio ambiente equilibrado. Diz a relatora:
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal que requer condenação do apelado por dano ambiental decorrente de "ocupação e destruição irregular de floresta protetora de mangue, área de preservação permanente, segundo o código florestal. A sentença foi de improcedência, considerando tratar-se de zona urbana sem indícios de mangue a ser protegido, restando afastada, lastreado em afirmação técnica, a alegação de que a área é de preservação permanente (TRF-4. AC 5004049-71.2011.404.7208/SC. 3ª Turma. DJ 30/01/2013 Relatora: Des. Federal Maria Lúcia Luiz Leiria).
A relatora enfatizou a informação técnica pericial, na qual se constatou que na atualidade o ecossistema do local está prejudicado de forma irreparável, devido situar-se numa região de ocupação urbana consolidada, onde as principais características fisionômicas foram alteradas, bem como, o habitat natural foi completamente modificado pela antropização ocorrida e principalmente devido ao desvio e canalização do Rio que na região tinha seu leito. Dessa forma, considera-se a descaracterização da APP e consequente aplicação do Código Florestal.
A desembargadora destaca ainda:
O entendimento ora proferido não desconhece a possibilidade de áreas protegidas em centros urbanos. Nestas situações, se efetivamente constatada a violação de lei por parte do cidadão, é passível a condenação a restauração do meio ou, ainda, a substituição da condenação de fazer por condenação pecuniária, questões sempre analisadas casuisticamente. Entretanto, enfatizo, não é este o caso dos autos.
(...)
Os relatos colhidos no laudo pericial confirmam que a ação antrópica há muito descaracterizou o manguezal, sendo que os remanescentes situados na área aterrada pelo autor eram de pouca intensidade e vigor devido à urbanização da vizinhança.
(...)
Desta forma, não é possível responsabilizar o autor pela retirada de vegetação perpetrada pelos seus antecessores, sem participação relevante do novo proprietário nos atos de desmatamento. Pensar o contrário seria legitimar, por exemplo, que aquele que comprasse uma casa de praia fosse obrigado à demolição em ação civil pública, pois os antigos proprietários, em alguma época, retiraram a restinga para a edificação.
No caso, tendo em vista tratar-se de área com ocupação consolidada, nenhum efeito surtirá ao meio ambiente a retirada de apenas uma edificação isolada, haja vista que o entorno do local está todo edificado.
Conclui a relatora:
Trata-se de zona urbana higidamente ocupada, e não vislumbro tenha o réu procedido a dano ambiental compatível com as pretensões veiculadas pelo Ministério Público Federal e pelo IBAMA. Embora pacífico o entendimento de que a obrigação de reparar dano ambiental é propter rem, a mesma jurisprudência destaca que tal determinação deve ser aplicada com razoabilidade. Qualquer entendimento em sentido contrário relegaria a todos os proprietários de imóveis de todas as cidade litorâneas o dever de restabelecimento do status quo, o que é reconhecidamente inviável. O equilíbrio entre o meio ambiente saudável para as atuais e futuras gerações e o direito à moradia e à existência digna destas mesmas atuais e futuras gerações deve e pode ser compatibilizado. A sentença proferida nestes autos anda nesta esteira, motivo pelo qual a mantenho (TRF-4. AC 5004049-71.2011.404.7208/SC. 3ª Turma. DJ 30/01/2013 Relatora: Des. Federal Maria Lúcia Luiz Leiria).
Outro julgado da 3ª Turma do TRF-4, que também se norteou pela razoabilidade nos casos em que a APP não mais pode ser caracterizada em zona urbana consolidada, na qual as edificações atenderam às exigências legais à época, foi na Apelação Cível nº 2003.72.00.004185-0 de 04/10/2006.
Eis as palavras proferidas no seguinte acórdão:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EDIFICAÇÃO MULTIFAMILIAR. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DEMOLIÇÃO. INVIABILIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. DANO E DESEQUILÍBRIO ECOLÓGICO. SENTENÇA EXTRA PETITA. REDUÇÃO AOS TERMOS DO PEDIDO. 1. É regra a supremacia do meio ambiente, mesmo nas situações em que haja efetiva configuração do fato consumado. Contudo, esta diretriz pode ser relativizada, como no caso concreto, quando verificado que a paralisação e demolição da obra não surtirá benefício algum ao meio ambiente e, ainda, que o dano ambiental é bastante reduzido (supressão de restinga em imóvel com medidas perimetrais de 30,00m de frente a leste e 60,00m nas laterais). 2. Várias circunstâncias inibem seja determinada a demolição da edificação como medida reparatória do meio ambiente, mesmo considerando haver sido ela construída em área de preservação permanente (300 metros a partir da linha preamar média), a saber: a) está ela situada em loteamento de há muito urbanizado e ocupado; b) o histórico de ocupação da área revela que a implantação do loteamento ocorreu no ano de 1991, atendendo, presumivelmente, as regras urbanísticas e ambientais vigentes à época, dentre as quais, importante que se registre, não se inscrevia a Resolução n. 303 do CONAMA, que empresta sustentação jurídica à tese da associação autora, e que foi editada somente em 13/05/2002; (...) d) não há evidências de ameaça ao equilíbrio ecológico, (...) 3. O empreendimento foi licenciado pelos órgãos competentes, tendo, inclusive, a FATMA expedido Licença Ambiental Prévia. (TRF4, AC 2003.72.00.004185-0, TERCEIRA TURMA, DJ 04/10/2006. Relator Luiz Carlos de Castro Lugon) (grifamos).
A questão que desafia o Ministério Público é a que diz respeito à expedição de autorizações pelo poder público municipal para construção de edificações novas em loteamentos antigos, assim entendidos aqueles aprovados antes da Lei Federal 7511/1986, que ampliou a APP ao longo dos cursos d’água com até 10 metros de largura para 30 metros (LARCHER, [2010?]), metragem que prevalece até os dias de hoje, com a edição de Lei 12.651/2012, ou mesmo naqueles loteamentos aprovados em desconformidade com a legislação de regência.
Neste conflito, caracterizado pelo embate entre o direito fundamental à propriedade, como pilar da sustentação da vida em sociedade, e o direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado, este como garantia das presentes e futuras gerações, surge a obrigação de compatibilização de princípios, avaliados sob a ótica da razoabilidade e proporcionalidade. Conforme os ensinamentos de Alexy (2000, p. 152 e ss.) a colisão de princípios não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade e sua subseqüente tirada do mundo jurídico. Há que se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância, atribuída à luz dos elementos fáticos do caso concreto. Nesse sentido, a aplicação dos princípios se dá, precipuamente, mediante ponderação de valores ou ponderação de interesses, estabelecendo-se o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos.
O direito de propriedade está garantido pela Constituição Federal (art. 5º, XXII). Conforme Machado (2011, p. 829), na história das constituições brasileiras e na vida das instituições públicas e privadas nunca se aboliu o direito de propriedade. No entanto, a propriedade não é um direito individual que exista para se opor à sociedade. É um direito que se afirma na comunhão com a sociedade.
A Constituição Federal de 1988 afirma: “a propriedade atenderá sua função social” (art. 5º, XXIII); “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, §2º). Há também no seara da saúde (art. 200, VIII) e na ordem econômica (art. 170) a exigência da função social também está presente. O Código Civil Brasileiro /2002, no seu artigo 1.228, §1º, exige para o exercício do direito de propriedade sua finalidade sócio-econômica de modo a preservar a flora, fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico. Por isso, pode-se inferir que o direito de propriedade não é absoluto. Estar em consonância com sua função sócio-ambiental é elementar. É nesse diapasão que se pode entender a razoabilidade que deve permear as decisões judiciais atinentes à temática tratada.