Quando criou a PEC 37, o Deputado Federal Lourival Mendes, delegado de polícia de carreira, não imaginou que sua propostase tornaria símbolo da corrupção e ineficiência do Estado, que incentivaria uma reação popular sem precedentes no país. Ao ocupar as ruas exigindo respeito e compromisso dos órgão públicos, os brasileiros proclamaram que não aceitam mais as tenebrosas transações na cúpula dos poderes,que, como a PEC 37, só visam atender interesses corporativistas e pessoais. A “primavera brasileira” mostrou que é preciso fazer uma reforma política urgente. Um dos temas a serem discutidos: algumas categorias de servidores públicos que exercem atividade estatal típica podem se “distrair” com a movimentação política? Vejamos.
É vedado aos juízes dedicar-se à atividade político-partidária, de modo que não podem se filiar a partidos políticos e nem se candidatar a cargos eletivos. Em 2004, por meio daEmenda Constitucional nº 45, estendeu-se essa proibição aos promotores de Justiça. Tudo para garantir a isenção destas autoridades.
Nesse processo de resguardo da imparcialidade judicial e ministerial, o legislador se esqueceu de uma categoria poderosa, que, tal qual juízes e promotores, exerce parcela importante do poder estatal: a polícia.
Há alguma dúvida de que o vínculo entre a polícia e a política, com todas as mazelas desse sistema, pode ser tão ou mais pernicioso do que o ativismo político do Judiciário? De fato, o juiz só pode atuar quando provocado por terceiros. Ele não condena nem absolve sem uma prévia instigação investigatória e acusatória feita por outros órgãos. Na área criminal, quem decide o quê, quando e como se investiga, é o delegado. Inobstante o Ministério Público, com a Constituição de 1988, tenha conseguido velar por mais igualdade na apuração criminal, é a polícia que ainda tem uma superestrutura para investigar… ou se omitir.
Ora, juízes e promotores são responsáveis pela fiscalização das eleições, mas quem investiga os crimes eleitorais? A própria polícia. Portanto, proíbe-se ao juiz que se imiscua na política, mas não a vedam àqueles que definem o objeto investigatório a ser julgado.
Com um contingente armado e acesso privilegiado a vários locais, parte dessa categoria tem entrado para valer na movimentação política e agido de forma consistente no Congresso para alargar ainda mais seu poderio. Nesse mister, os interesses da população nem sempre ficam em primeiro plano.
Exemplo disto é o recém aprovado PLC 132, que, confundindo a polícia com o Judiciário, atribui o poder de “livre convencimento” e a garantia de “imparcialidade” ao delegado. Com isso, garante que ele faça, deixe de fazer e decida o que quiser, sem dar satisfações a ninguém. Ocorre que essa figura “imparcial” é nomeada por um diretor de polícia, que foi escolhido por um secretário de Estado, que foi ungido por um governador. Na esfera federal, segue-se essa correlação hierárquica. Assim, ao conferir faculdades típicas de juiz a agentes do Poder Executivo, o projeto de lei viola a independência dos poderes, pois equipara comandados do governo à autoridade judicial. Adeus, controle.
É fato que a Presidente da República, Dilma Roussef, ao sancionar a Lei 12.830/13, vetou as garantias da “imparcialidade” e do “livre convencimento”. Porém manteve a parte em que se dificulta que o delegado seja “afastado da investigação”, equiparando-o ao promotor de Justiça. Ocorre que o Ministério Público, por suas atribuições constitucionais, tem independência funcional e não se subordina a nenhum poder. O delegado, porém, sujeita-se ao governo. Assim, a pretexto de dar independência à polícia, a Lei garante livre atuação às forças políticas e econômicas que eventualmente estejam no comando.
Enquanto esses grupos agem sem resistências no parlamento, abre-se espaços para travessuras ainda mais megalomaníacas. Tome-se, por exemplo, a célebre PEC 37, que pretendia conferir o monopólio da investigação aos delegados, equiparando-os à polícia dos três únicos países no mundo a proibir a investigação pelo Ministério Público: Quênia, Uganda e Indonésia (nenhum deles é exemplo de democracia).
Tais propostas desconhecem que o grande problema no país é exatamente a falta de investigação, pois, apesar dos avanços tecnológicos e dos meios de comunicação, permanecem os despachos burocráticos inúteis e pouco resultado (leva-se anos para se realizar a oitiva de uma única testemunha). Muitos bons delegados se preparam para a função, mas são reduzidos a meros despachantes, causando uma justa insatisfação na categoria.Ignoram, ainda, que a criação do Ministério Público independente em 1988 foi um alento para o próprio aperfeiçoamento da polícia. Na nova ordem constitucional, a investigação não é um direito, é um dever do Parquet, consistente na obrigação de realizar investigações completas e buscar todos os elementos necessários para uma decisão justa, incluindo aquelas favoráveis ao acusado (LênioStreck). Em consequência, pessoas e grupos antes intocáveis passaram a responder por seus atos. A própria polícia cresceu em importância, já que policiais ganharam, com o Ministério Público, a garantia de que pressões políticas não serão suficientes para conter uma investigação. Muitos policiais colaboram em sigilo com investigações diretas do Ministério Público, numa união que resultou em alguns dos mais duros golpes ao crime organizado nos últimos anos. A independência do Ministério Público aliada à estrutura policialpode ter um “padrão FIFA” (aproveitando a expressão da moda).
Por isso, é falsa a impressão de que todos os delegadosapoiam iniciativas corporativistas como a PEC 37. Os investigadores sérios, e a polícia brasileira está repleta deles, sabem que a polícia não existirá como uma virgem vestal intocável e autossuficiente, e nem se iludem com a ideia de que se trata de uma disputa entre promotores e delegados. Ambos, por carregarem o pesado (e perigoso) fardo de enfrentar a criminalidade, estão no mesmo barco. O que está em jogo é a própria democracia, ameaçada por um grupo de descontentes.
Isso leva a refletir se a atuação política de setores da polícia tem sido prejudicial à sociedade, que, flagelada pela violência (urbana e rural) e sitiada por mares de corrupção, espera mais do parlamento. O grito das ruas evoca a união de parlamentares, promotores e policiais para se avançar na prática investigatória, criando mecanismos para que a polícia e o Ministério Público investiguem mais e melhor. E que se admitam que outros órgãos, em nome da eficiência e especialidade, também investiguem, tendo-se em mente que encontrar culpados e não constranger inocentes é o real desafio da investigação democrática. Cumpri-lo não é fácil. Abusar e exceder é uma tentação, pois são séculos de história nessa escola. Engatinhamos na busca do ideal.Perder tempo com propostas legislativas vazias é debochar da paciência e inteligência da população brasileira, que “acordou”, como se lê nos gritos de ordem dos protestos.
Dormindo parecem estar os políticos, que ainda não perceberam que seu próprio umbigo não é o centro do mundo. Ora, em plena semana dos protestos, a Presidente do país sancionou a aludida Lei 12.830/13, que, ampliando uma titulação monárquica incompatível com uma República, determina que o delegado deve doravante ser tratado por “excelentíssimo”. Convenhamos, esse pronome de tratamento, também envergado por juízes e promotores, é uma bobagem que já deveria ter sido abolida há muito. O mesmo tratamento formal que se dá ao cidadão (senhor e senhora) é o apropriado para qualquer autoridade, do juiz ao presidente do país.
A reforma política deveria enfrentar a questão da atividade político-partidária. Se considerarema elegibilidade de policiais conveniente, então é um contrassenso proibir que juízes e promotores também disputem eleições. Neste caso, pelo menos estabelecer-se-ia maior equilíbrio democrático no processo legislativo (dos males, o menor).
E, como sonhar não faz mal, reitera-se pedido feito alhures (“Chega de Excelências,senhores!”, Folha S. Paulo, 16/7/2007) para que o tratamento nobiliárquico seja abolidopara todas as autoridades.