1.INTRODUÇÃO:
Limitando a autocomposição e restringindo a casos especificados em lei a possibilidade de autotutela, o Estado reservou a si o direito de diluir os conflitos de interesses ocorridos na vida em sociedade, criando o monopólio da atividade Jurisdicional. Através dessa sua função substitui a atividade que ordinariamente era reservada às partes para, através do processo, alcançar a pacificação da sociedade. Assim, é lícito asseverar que o escopo primário do processo é a paz social.
De outra parte, por sua natureza e desiderato, pode-se destacar que é no processo penal onde mais se acentua o conflito de interesses entre a pretensão punitiva do Estado e a liberdade do cidadão. De um lado se posiciona o Estado, através de seus agentes, no afã de levar a efeito sua pretensão punitiva quando da ocorrência de uma conduta esquematizada em um modelo legal. No pólo oposto, o cidadão com sua defesa técnica almeja incessantemente se alforriar da imputação que lhe é feita.
Atividade-monopólio, realizada através do processo, para se desenvolver validamente, sem traumas desnecessários à liberdade do cidadão, cumpre obsequiar regramentos de coloração constitucional, que limitam a ingerência do Estado na esfera íntima do cidadão. Essas normas que condicionam a atividade estatal de persecução penal categorizam-se em duas espécies: regras e princípios. Portanto, temos que norma é sinônimo da expressão genérica da qual derivam as regras e princípios. No escólio insuperável de Gomes Canotilho[1]: “As regras e princípios são duas espécies de normas”.
A distinção colocada resulta de que a ordem jurídica, no pensamento Kelseniano, conforma um sistema de normas e princípios que se situam em distintos patamares, conforme o seu maior ou menor grau de abstração ou concreção, em um ordenamento jurídico de estrutura escalonada (stufenbau)[2]. Na posição inferior se encontram as normas que se orientam a disciplinarem fatos específicos reveladores da conduta humana e suas consequências. Portanto, aquelas normas portadoras de maior grau de concreção e menor grau de abstração. De outra banda, se encontram as normas dotadas de maior grau de abstração, não orientadas a descrever condutas, possuindo acentuado nível de indeterminação e maior raio de alcance, exercendo relevante função no que pertine a harmonia do sistema.
As primeiras, tendo em mira o maior grau de concreção, têm eficácia restrita às situações específicas as quais se dirigem. São chamadas de normas-disposição ou regras. As segundas, destacando-se pelo seu maior teor de abstração, são identificadas como princípios ou normas-princípio, no escólio de Luís Roberto Barroso[3], não obstante vaticine que se encontra superada a distinção aqui proposta.
É sobre os princípios ambientados na constituição que projetam reflexo no processo penal que se pretende examinar no presente estudo.
Há uma distinção entre princípio constitucional aplicado ao Direito Processual e princípio processual-constitucional. O primeiro é um princípio de natureza política que foi primeiro inserido em Cartas Constitucionais, para, só após, ser estendido ao Direito Processual. Já o princípio processual-constitucional é justamente o oposto. É o princípio elaborado pela ciência processual e, devido a sua reconhecida importância política, passou a ocupar lugar nas Constituições Federais[4].
O constitucionalismo moderno surgiu no século XVIII, como forte aliado da burguesia contra o absolutismo do Estado. Por suas mãos passou a ser mais difundida a positivação de princípios em textos constitucionais. Volvendo, no entanto, a um tempo remoto constata-se que coube a Magna Carta de 1215, imposta pelos barões ingleses ao Rei João Sem Terra, a adoção pela vez primeira, ainda que com contornos incipientes, tratar da idéia de princípios em um texto normativo.
Sabe-se, porém, que aquele histórico documento destinava-se a privilegiar apenas a nobreza inglesa de sua época, tanto que escrito em latim, a fim de que os plebeus que desconheciam a língua não tivessem acesso ao seu conteúdo. Posteriormente, algumas declarações americanas também se reportaram à noção de princípio. Estas como a Magna Carta de 1215, no entanto, não foram documentos portadores de caráter universal. Todavia, com a eclosão da revolução francesa de 1789, sob a influência do pensamento ilustrado, a declaração francesa conseguiu definitivamente positivar, em texto daquela índole e de caráter universal, princípios que se enraizaram mundo afora como verdadeiras conquistas da humanidade, haja vista que pretendia a outorga de direitos a todo homem, independentemente de sua cidadania.
2.Conceito de Princípio:
Para Luis Diez-Picazo, “a ideia de princípio deriva da linguagem da geometria, ‘onde designa as verdades primeiras’ (...). Exatamente por isso são ‘princípios’, ou seja, ‘porque estão ao princípio’, sendo ‘as premissas de todo um sistema que se desenvolve more geométrico”[5].
A constitucionalista Carmem Lúcia Antunes Rocha, em festejado trabalho acerca do temário, acentua que: “No princípio repousa a essência de uma ordem, seus parâmetros fundamentais e direcionadores do sistema normado”[6].
Em palavras que granjeou homenagem da doutrina, Celso Antônio Bandeira de Melo escreveu:
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais...”[7].
Inspirado nas lições dos estimados doutrinadores citados pode-se concluir que princípios são normas jurídicas que traduzem a essência, as bases, o alicerce ou núcleo ideológico de um sistema.
3.Classificação dos Princípios:
Partindo-se do pressuposto que o espectro de ação dos princípios varia de acordo com o seu maior ou menor grau de abstração, pode-se constatar que a influência ou relevância dos princípios é fator decisivo em sua classificação. Assim, temos que os princípios constitucionais, de acordo com sua ordem de abstração, são classificados em: a) princípios constitucionais fundamentais ou estruturantes; b) princípios constitucionais gerais; c) princípios constitucionais especiais ou setoriais.
Os princípios constitucionais fundamentais são aqueles que revelam os fundamentos da organização política estruturantes do Estado. São de conteúdo eminentemente político, porquanto traduzem as opções político-ideológicas do Estado em um dado momento. São dotados do maior grau de abstração. Constituem na lição de Luís Roberto Barroso[8] “o núcleo imodificável do sistema, servindo como limite às mutações constitucionais”.
Por sua vez, os princípios constitucionais gerais são desdobramentos dos princípios fundamentais, de índole garantista, tendo raio de ação em toda ordem jurídica, servem para limitar o Poder do Estado. São seus exemplos os princípios da legalidade, igualdade, isonomia, juiz natural etc.
Os princípios constitucionais setoriais ou especiais são portadores do maior grau de concreção e menor grau de abstração, à medida em que são autônomos ou derivados dos princípios gerais, tem raio de aplicabilidade restrito ou limitado a um conjunto de normas versantes acerca de uma temática, título ou capítulo da Constituição. São seus exemplos: princípio da anterioridade em matéria tributária; o princípio da impessoalidade administrativa, em matéria de Administração Pública; princípio da legalidade penal, legalidade tributária, princípio da livre concorrência e o princípio da defesa do consumidor na ordem econômica etc.
4.Funções dos princípios:
Lançadas as ideias primeiras, impõe-se agora destacar qual a razão de ser dos princípios, sua função sistêmica.
É sabido que o sistema normativo constitucional, malgrado reflita a presença da concepção política dominante naquele momento, carrega em seu bojo normas que não traduzem aquela concepção majoritária. Daí destaca-se a função dos princípios como sendo normas que cuidam de compatibilizar as várias concepções ideológicas reinantes, visando harmonizar o sistema, a fim de que o mesmo não se desagregue. Por outro lado, fincam as ideias básicas e valores fundamentais do Estado, embasando suas decisões políticas. Condicionam, de outra parte, a atuação dos Poderes do Estado, limitando sua ingerência na esfera íntima de liberdade do cidadão.
Realizada a sistematização inicial, impõe-se conhecer os princípios hauridos da Constituição que projetam sua aplicabilidade no Direito Processual Penal, condicionando a atividade estatal de dizer o direito e o instrumento que lhe confere concreção.
5.Princípio do devido processo legal:
Remonta a Magna Carta de 1215 a adoção do princípio do devido processo legal. Aquele documento histórico mencionou pela vez primeira o princípio no seu art. 39, utilizando-se da locução per legem terrae e, posteriormente, substituída por law of the land, ou seja, lei da terra. Essa expressão importava, antes de tudo, na vinculação dos direitos às regras comuns por todos aceitas, decorrentes de precedentes fáticos e judiciais[9].
O princípio só recebeu a locução que lhe consagrou em 1354, na Inglaterra, sob o reinado de Eduardo III, através de lei que cunhou a expressão na fórmula due process of law. Dali ganhou foros nas colônias americanas, sendo adotado em várias de suas constituições. Posteriormente a independência dos Estados Unidos, no ano de 1791, é que foi incorporado à sua legislação através das emendas 5ª e 14ª da Constituição Americana de 1787.
Foi exatamente nos Estados Unidos da América onde o princípio ganhou maior conotação científica. Conseguiram os americanos descortinar, ao lado de sua concepção tradicional – due process of law – nitidamente instrumental, sua outra face de natureza substantiva – substantive due process. Naquela, de feição estritamente processual, confere-se às partes a oportunidade de alegar e provar de acordo com a lei. Esta, de natureza substantiva, destina-se ao controle dos atos normativos do Poder Público quando em desacordo com a Law of de land ou não obsequiando o devido processo legal, deixam de apresentar certa justificação racional. Daí decorre que a atividade legislativa tem que se orientar no sentido de produzir leis consentâneas com o interesse público, traduzindo esse agir no princípio da razoabilidade. Toda lei que não consultar ao interesse público deve ser controlada pelo Poder Judiciário, porquanto viola o princípio da razoabilidade. Na perspectiva, Sobressai-se a importância do Poder Judiciário no controle da constitucionalidade das Leis e dos atos dos demais Poderes no afã de submetê-los aos ditames da razoabilidade.
Nessa concepção, adverte o Prof. Marco Antônio Marques da Silva: “O devido processo legal não se destina tão somente ao interprete da lei, mas já informa a atuação do legislador, impondo-lhe a correta e regular elaboração da lei processual penal”.[10]
Em razão de sua amplitude o Prof. Nelson Nery Júnior assevera que: “Em nosso parecer bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies”.[11]
Em conclusão, tem-se que hordiernamente o princípio do devido processo legal deve ser analisado sob duplo enfoque: um do ponto de vista do direito processual que se revela através do extenso rol de garantias explícitas e implícitas albergadas na Constituição que condicionam validade e regularidade do processo, sendo o mesmo tanto mais justo quanto guarde homenagem àquelas garantias. De outro parte, sob a lente da concepção do substantive due process, o princípio em exame direciona-se a exigir dos Órgãos do Poder Público que, em seu agir, pautem suas atividades obsequiando-se o critério de razoabilidade, porquanto os atos do Poder Público só se afiguram consentâneos com a law of the land quando mirem no interesse Público.
6. Princípio do Contraditório:
Em outra passagem já se disse que o processo mais do que simples método de composição de conflitos representa a concepção político-ideológica dominante em dado momento. Nos Estados de aspirações democráticas percebe-se que o processo é reflexo de sua concepção política.
Tem-se, portanto, que no Estado democrático o processo penal necessariamente deverá se desenvolver em contraditório com a efetiva participação dos seus sujeitos.
No particular, inolvidável é a lição de Cândido Rangel Dinamarco: “O processualista moderno adquiriu a consciência de que, como instrumento a serviço da ordem constitucional, o processo precisa refletir as bases do regime democrático, nele proclamadas; ele é, por assim dizer, o microcosmos democrático do Estado de direito, com as conotações da liberdade, igualdade e participação (contraditório), em clima de legalidade e responsabilidade”.[12]
Em verdade, o contraditório é a projeção da concepção democrática do Estado na relação processual, de sorte a reclamar a dialética processual no escopo de alcançar a verdade real. Nesse contexto é que o processo penal democrática se desenvolve por cooperação das partes, podendo-se afirmar que não há processo penal sem dialética. Como adverte Giovanni Conso, “entende-se o contraditório penal como um “colóquio” ou como um “diálogo” entre as partes na presença do Juiz.”[13]
A essência do contraditório reside no binômio: necessidade de informação – possibilidade de reação. Emblemática, no particular, é a liça consagrada de Joaquim Canuto Mendes de Almeida para quem: “(...) O essencial ao processo é que as partes sejam postas em condições de se contrariarem. O contraditório é, pois, em resumo, ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”[14].
Daí decorre que necessariamente a parte deverá tomar conhecimento da imputação que lhe é feita a fim de que possa oferecer sua resistência. “O direito à informação é indispensável para que se dote o processo do conteúdo dialético característico do princípio acusatório”[15]. Não basta, porém, a simples impugnação ao fato imputado. Impõe-se que a resistência seja levada a efeito em contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente que se dê às partes a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível que lhe sejam proporcionados os meios para que tenham condições reais de contrariá-los, tanto que a resposta escrita, prevista nos art.396 e 396-A, com redação da Lei nº 11.719/2008, é obrigatória. Liga-se, aqui, o contraditório ao princípio da paridade de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, que as duas partes estejam munidas de forças similares[16].
De igual modo, não o é no processo civil. Ali, contenta-se com a simples oportunidade de resistência. Isso porque a defesa no processo civil é apenas um ônus. Não há para o demandado o dever de se defender. O que é imprescindível é que lhe seja assegurado a possibilidade de reação. Fala-se[17] assim que vigora no processo de índole civil o princípio da bilateralidade da audiência, bastando tão-somente a citação inicial válida, tanto que não opondo resistência, desde que a demanda verse sobre direitos disponíveis, opera-se a confissão ficta quanto à matéria de fato.
6.1- O contraditório nas constituições brasileiras:
Analisados os textos das Constituições brasileiras, percebe-se que o princípio do contraditório não figurou nas Constituições de 1824, 1891 e 1934. Somente a partir da Constituição de 1937 é que o princípio do contraditório ancorou no direito constitucional brasileiro. Positivado pela vez primeira, passou definitivamente a integrar o rol de garantias constitucionais do direito pátrio, assim é que se mantém desde a Constituição de 1937 até a Constituição de 05.10.88.
Na norma Ápice de 1988 encontra-se desenhado com a seguinte redação: “ aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Por essa redação dissipou-se dúvida suscitada na doutrina que imaginava o contraditório apenas no processo penal. Agora, com a clarividência da dicção constitucional, não há mais razão de ser da indagação, porquanto o texto esclarece a aplicabilidade do princípio do contraditório e ampla defesa a qualquer processo judicial ou administrativo.
Dissipada a dúvida outrora existente, questiona-se atualmente a aplicabilidade do princípio do contraditório em sede de inquérito policial. Pode-se afirmar que parte majoritária da doutrina desaconselha sua aplicação em sede investigatória. É que a constituição reservou a incidência do princípio apenas aos processos judiciais e administrativos. Rigorosamente, não há, na fase investigatória, processo judicial ou mesmo administrativo. Como se sabe, o inquérito policial se desenvolve através de atos administrativos da autoridade que lhe preside. Porém, esses atos não guardam qualquer organização lógica ou cronológica fixada em lei. Daí que não se pode atribuir aquela atividade investigatória o status de processo, que tem na organização de seus atos uma de suas características mais marcantes.
Não obstante esse pensar, há quem defenda a aplicabilidade do contraditório na fase do apuratório. Nesse sentido, Rogério Lauria Tucci[18], citado por Scarance Fernandes, sustenta a necessidade de um contraditório efetivo e real em todo o desenrolar da persecução penal, e na investigação inclusive, para maior garantia da liberdade e melhor atuação da defesa.
Não obstante a autoridade do citado autor, não me parece estar com a inteira verdade. A adoção do princípio do contraditório efetivo na fase investigatória certamente iria ser esvaziada a instrução. Bem verdade que não se pode negar a possibilidade de atuação da defesa técnica já no ensejo da investigação, notadamente a fim de salvaguarda a liberdade do investigado. Porém, não se deve dizer tenha o direito de ser intimada de todos os atos que tiverem de ser levados a efeito pela autoridade que preside a investigação criminal e aos mesmos possa desde logo oferecer resistência.
Nas hipóteses nas quais se faz sentir a necessidade de adoção de medidas cautelares no Processo penal, tais como a busca e apreensão domiciliar ou mesmo a prisão de índole cautelar, nos termos do § 3º do art.282, do Código de Processo Penal, com redação conferida pela Lei nº 11.403/2011, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo. Em tais hipóteses, tivesse a autoridade que oportunizar a intimação do investigado ou sua defesa técnica para exercer o contraditório contemporâneo, poderia restar inviável atividade investigatória. Por essa razão, o melhor caminho é realizar a medida de urgência, excepcionalmente, sem a participação do investigado, desde que presentes os requisitos de ordem cautelar, postergando o exercício do contraditório.
Há, contudo, que se pontuar que qualquer produção antecipada de provas, necessariamente, deve-se perquirir quanto a sua viabilidade como medida de cautela. Assim, somente quando positivados o periculum in mora e fummus boni iuris é que se pode admitir a produção antecipada de provas, oportunizando, em seguida, no processo, exercício do contraditório.