Notícia veiculada no site do Jornal Hoje, da TV Globo, informa que um pai registrou um Boletim de Ocorrência contra sua ex-esposa, alegando que ela pratica maus tratos contra a filha de 6 anos de idade, que pesa 55 kg, enquanto, nessa idade, uma criança normal deveria pesar, em média, 20 kg (http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2012/08/pai-registra-boletim-de-ocorrencia-porque-filha-esta-acima-do-peso.html).
No ano de 2008, nos EUA, autoridades do Condado de Cuyahoga, que tem Cleveland como sede, decidiram tirar a guarda de uma mãe cujo filho de 8 anos pesava 90 kg, por não conseguir fazer com que ele emagrecesse. Nesse caso, uma criança com idade de 8 anos deveria pesar em média 27 kg.
A questão da obesidade infantil tem despertado a atenção de autoridades médicas e da sociedade em geral, e, ao que parece, o Estado começa a ser chamado a se pronunciar sobre esse importante tema.
No final de 2011, a Fundação Procon-SP, após apurar denúncias do Instituto Alana, que desenvolve atividades ligadas ao consumo infantil, aplicou uma multa de mais de R$3 milhões ao McDonald’s, por vincular a oferta de lanches a brinquedos, o que, segundo argumenta, cria uma lógica de consumo distorcida nas crianças, consequentemente favorecendo o agravamento desse quadro de obesidade inantil, já que as crianças, atraídas pelos brindes, consumiram mais alimentos inadequados à uma dieta saudável.
Segundo estatísticas, atualmente cerca de 11% das crianças brasileiras são obesas – número que está se aproximando da taxa norte-americana -, que é de 17%; um número considerado alto pelos médicos. Mas, essa questão é assunto de Estado ou deve ficar adstrito à esfera dos pais?
A rigor, nosso ordenamento jurídico não prevê qualquer tipo sanção estatal nos casos em que os pais permitem aos filhos consumir esse ou aquele tipo de alimento. O art. 227 da Carta Fundamental estatui que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao joven, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
É cediço que a atuação do Estado, nesses casos, é implementada por programas, haja vista a natureza das normas constitucionais que versam sobre o tema (normas programáticas). Em outras palavras, significa dizer que não há como as instituições governamentais interferirem de maneira direta no âmbito familiar, até mesmo porque a própria Constituição Federal, bem como a lei civil, tratam do exercício do pátrio poder. Sobre o tema, JOSÉ AFONSO DA SILVA discorre com propriedade:
“A paternidade responsável, ou seja, a paternidade consciente, não animalesca, é sugerida, Nela e na dignidade da pessoa humana é que se fundamenta o planejamento familiar que a Constituição admite como um direito de livre decisão do casal, de modo que ao Estado só compete, como dever, propiciar recursos educacionais e científicos para o seu exercício. A Constituição não se satisfaz com declarar livre o planejamento familiar. Foi mais longe, vedando qualquer forma coercitiva por parte de instituições sociais ou privadas” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 775).
Nesse sentido, o Estado possui, então, função sócio-educativa complementar, através, por exemplo, da definição dos cardápios das escolas públicas, cumprindo sua parte dentro das diretrizes constitucionais. Em linguagem popular, seria como dizer aos pais algo como: “Senhores pais, aqui na minha ‘área’ os seus filhos vão comer o que eu oferecer, pois, com isso, queremos evitar que eles sejam obesos.” Ou seja, na esfera de atuação direta do Estado, este é livre para definir sua “política alimentícia”. Dessa forma, fica evidente que o Estado, em regra, não possui legitimidade para interferir nese tipo de questão.
Contudo, parece-nos que esse panorama está prestes a mudar. A não interferência estatal, a nossos olhos, não é absoluta, devendo o Estado intervir quando a negligência parental revelar-se prejudicial à criança, como ocorre nesses casos. Advirta-se, entretanto, que essa intervenção somente se legitima em casos excepcionais, em que a sua saúde da criança é colocada em risco extremo, como ocorre quando a criança suporta um peso que excede em mais de 100% do que o considerado normal. E ainda: deve ser cabalmente comprovado que a situação da criança possui relação direta com a negligência dos pais ou de algum deles.
Resumidamente, em nossa opinião, é tanto questão de paternidade responsável quanto de Estado. Falhando os pais, deve o Estado intervir, pois a dignidade humana é superprincípio fundante da República, sendo cediço que os direitos existenciais são indisponíveis, merecendo ampla proteção, e, além disso, há algum tempo a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais vem ganhando força. Assim, a liberdade dos pais não pode chagar ao ponto de impedir a força estatal, de modo a sacrificar os legítimos interesse da criança, previstos no art. 227 da CF/88.
Finalmente, registre-se que estas são apenas breves reflexões sobre o tema, o qual possui considerável amplitude.