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A teoria do adimplemento substancial

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5.A teoria do adimplemento substancial no direito estrangeiro.

Ao contrário do direito brasileiro, em alguns países há previsão legal expressa da aplicação da teoria do adimplemento substancial.

No direito italiano, o art. 1.455 do Código Civil estabelece que o contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes tem escassa importância, resguardado o interesse da outra. Caracterizado o inadempimento de scarsa importanza, fica  vedado o pedido de resolução.

Assim dispõe o art. 1.455 do Codice Civile: “(Importanza dell´inadempimento). Il contratto non si può risolverese se l´inadempimento di uma delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all´interesse dell´altra (1522, 1525, 1564, 1565, 1668, 1901)”. 

Caberá ao juiz italiano, com fundamento no referido artigo, com base no critério de boa-fé objetiva, verificar a gravidade do inadimplemento e o interesse concreto do co-contratante na exata e tempestiva prestação. Se este ainda se mantém na prestação defeituosa, não terá sido grave o inadimplemento. Somente o será se quebrar o equilíbrio contratual, fazendo com que a parte adimplente sofra sacrifício além do limite razoável aos riscos inerentes ao negócio.

Assim, se for caso de adimplemento substancial, em decorrência de ter sido satisfeita a substância da prestação, não haverá comprometimento do sinalagma, já que por ter sido reconhecido como substancial, apresenta interesse para o credor.  

No direito português, o art. 802, nº 2, do Código Civil (“Impossibilidade parcial”), exerce função semelhante ao art. 1.455, do Codici Civile italiano, onde o credor não pode resolver o negócio se o cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância.

Assim expressa o artigo 802º, do Código Civil de Portugal: “1. Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização. 2. O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância”. 

Por sua vez, a teoria do adimplemento substancial, no direito alemão, está inserida a partir da cláusula geral da boa-fé inserta no § 242 do BGB e, especificamente, do § 320, II, também do BGB (Código Civil alemão).

A jurisprudência do direito francês, através da interpretação do art. 1.184 do Código Civil (Code), pode fazer com que sejam produzidos efeitos semelhantes ao da doutrina do adimplemento substancial. 

Na Espanha, há uma tendência para a manutenção do vínculo contratual, já que se exige um incumprimento substancial para o êxito da ação resolutiva.

O direito argentino, com base na boa-fé objetiva (art. 1.198 do Código Civil argentino), tem entendido que nem todo descumprimento origina a resolução do contrato, pois apenas aquele que o impede de lograr o fim tutelado pelo ordenamento jurídico e proposto pelos interessados ao utilizá-lo. 

Como visto, o direito estrangeiro permite, ora expressamente, ora implicitamente, a teoria do adimplemento substancial, que é, antes de mais nada, uma doutrina concreta-ética-funcional. 


6.O adimplemento substancial no direito brasileiro

A teoria do adimplemento substancial, assim como em outros países, não é difundida suficientemente na doutrina, inexistindo relativa quantidade de obras específicas a respeito do tema. Todavia, tal fato não impede a aplicação da teoria do adimplemento substancial entre nós, que pode ser obtido através da conjugação entre alguns artigos do Código Civil, especialmente do princípio da boa-fé objetiva, do equilíbrio contratual, dos critérios de razoabilidade, além das normas e princípios constitucionais, sem falar no caráter funcional da teoria.

Uma das razões pelas quais não há uma abrangente discussão doutrinária pode ser explicada pela ausência de previsão legal do adimplemento substancial.  

Não obstante a pouca atenção doutrinária sobre a teoria, existem vários precedentes jurisprudenciais aplicando a teoria do adimplemento substancial, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, como se vê:

“Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido” (REsp 272.739-MG; 4ª Turma/STJ; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; j. 01.03.2001; DJU, 02.04.2001).

Ou ainda:

“Seguro. Inadimplemento da segurada. Falta de pagamento da última prestação. Adimplemento substancial. Resolução. A companhia seguradora não pode dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, por três razões: a) sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no contrato, sendo inadmissível que apenas rejeite a prestação quando ocorra o sinistro; b) a segurada cumpriu substancialmente com a sua obrigação, não sendo a sua falta suficiente para extinguir o contrato; c) a resolução do contrato deve ser requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento, suficiente para a extinção do negócio. Recurso conhecido e provido” (REsp 76.362-MT; 4ª Turma/STJ; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; j. 11.12.95; DJU, 01.04.96).

No mesmo sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: REsp 469.577 (pequeno valor da dívida do contrato de alienação fiduciária frente ao valor do bem essencial à atividade da devedora); REsp 343.698-SP (abusividade de cláusula contratual que suspende os efeitos do contrato de seguro-saúde pelo atraso de só uma prestação); REsp nº 439.625 (comprador perde ou não carro da marca Fiat, adquirido em 36 parcelas, tendo pago apenas 23).

A aplicação da doutrina do adimplemento substancial pressupõe, segundo Anelise Becker,[10] a compreensão da relação obrigacional como uma ordem de cooperação entre as partes e não mais uma rígida polarização entre elas.

Transformar o juiz não mais num mero aplicador da lei, mas num concretizador da justiça será uma das conseqüências da aplicação da teoria, cujo alcance está cada vez mais sendo ampliado na ordem jurídica civil-constitucional.


Conclusão.

O direito privado evoluiu muito nos últimos tempos, refletindo a transformação econômica, ideológica e política da sociedade ocidental. As desigualdades sociais decorrentes do sistema capitalista e da economia massificada fizeram com que as regras contratuais passassem a ser não apenas um instrumento de proteção das liberdades individuais, mas também de promoção da igualdade e da busca da justiça contratual. 

Os princípios contratuais clássicos que caracterizavam o direito privado, de cunho individualista, tais como o princípio da liberdade contratual, da autonomia da vontade, da obrigatoriedade, embora não tenham deixado de ocupar lugar de destaque, passaram a ter que conviver com outros princípios funcionais e sociais (função social do contrato, boa-fé objetiva e justiça contratual). 

Contudo, as regras de intervenção e dirigismo estatal são excepcionais e pontuais, em obediências às necessidades sociais, para que sejam respeitados os valores e princípios constitucionais, que asseguram a livre iniciativa, o direito adquirido, a propriedade privada e o devido processo legal.

Na verdade, observa-se uma transformação do direito privado, relativizando-o. Prevalecem, ainda, os princípios contratuais clássicos, mas com outro enfoque a possibilitar sejam atingidos os fins sócio-econômicos-funcionais do contrato. 

Por inerente à natureza humana, a regra geral é a liberdade de auto-regulamentação das relações privadas. A intervenção estatal só se justifica de forma excepcional e dentro dos limites do razoável, sob pena de ensejar insegurança jurídica e desestabilizar a ordem social. Há de se levar em conta, ainda, que o contrato também deve cumprir sua função econômica, decorrente da influência que a economia gera no direito.

Embora seja uma doutrina importada, o substantial performance é uma exceção à regra geral de que os contratos devem ser cumpridos integralmente (princípio da integralidade), com prevalência do princípio da conservação do negócio jurídico. O adimplemento substancial é uma construção doutrinária e jurisprudencial que importa num adimplemento contratual tão próximo do cumprimento integral da obrigação, que justificaria a descaracterização da mora, ou, pelo menos, a atenuação de suas conseqüências. 

Numa noção simples, o adimplemento substancial nada mais é do que uma transgressão contratual insignificante e, portanto, incapaz de gerar as conseqüências normais e rígidas da inadimplência. 

A aplicação da doutrina do adimplemento substancial está implícita em nossa ordem jurídica, especialmente pelas inovações decorrentes da Constituição Federal e do Código Civil vigente, fundada numa escala de valores superiores e fundamentais da ordem jurídica civil-constitucional.

Portanto, a amplitude e abrangência da aplicação da teoria deve ser compatível com o ordenamento jurídico, especialmente com o caráter funcional do direito. Por conseqüência, seus limites são os limitadores éticos, sociais e econômicos, levando-se em conta os ditames da justiça social, o equilíbrio contratual, os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, bem como o princípio da economicidade, desde que inseridos no contexto de funcionalização e concretização dos direitos subjetivos privados.

Todavia, aliada à toda construção teórica para ordenar os princípios, é fundamental a utilização da força da argumentação jurídica, como forma de convencimento na busca do ideal de justiça, já que o adimplemento substancial não pode ser instrumento destinado a incentivar o descumprimento contratual e desprestigiar a ordem jurídica estabelecida, mas sim de valorização e preservação da justiça e do equilíbrio contratual.


Referências.

ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

AZULAY, Fortunato. Do inadimplemento antecipado do contrato. Rio de Janeiro: Ed. Brasília/Rio, 1977.

BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol. 9. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 60-61.

BULGARELLI, Waldirio. A tutela do consumidor na jurisprudência brasileira e de “lege ferenda”. Revista de Direito Mercantil. 49/41.

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BUSSATTA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. São Paulo: Saraiva, 2007.

FRADERA, Vera Maria Jacob de. O conceito de inadimplemento fundamental do contrato no artigo 25 da lei internacional sobre vendas, da Convenção de Viena de 1980. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol. 11. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Direito, 1996, p. 59.

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito das obrigações. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.


Notas

[1] AZULAY, Fortunato. Do inadimplemento antecipado do contrato. Rio de Janeiro: Ed. Brasília/Rio, 1977, p. 27.

[2] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito das obrigações. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 82.

[3] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 259.

[4] BULGARELLI, Waldirio. A tutela do consumidor na jurisprudência brasileira e de “lege ferenda”. Revista de Direito Mercantil. 49/41. São Paulo: Revista dos Tribunais.

[5]ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 118.

[6] FRADERA, Vera Maria Jacob de. O conceito de inadimplemento fundamental do contrato no artigo 25 da lei internacional sobre vendas, da Convenção de Viena de 1980. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol. 11. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Direito, 1996, p. 59.

[7] art. 25: “uma violação do contrato cometida por uma das partes é fundamental quando causa à outra parte um prejuízo tal que a prive substancialmente daquilo que lhe era legítimo esperar do contrato, salvo se a parte faltosa não previu esse resultado e se uma pessoa razoável, com idêntica qualificação e colocada na mesma situação, não o teria igualmente previsto”

[8] BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol. 9. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 60-61.

[9] BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol. 9. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 63.

[10] BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol. 9. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 71.

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Sobre o autor
Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz

Advogado e Professor. Mestre em Direito pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. A teoria do adimplemento substancial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3743, 30 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25425. Acesso em: 20 abr. 2024.

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