Introdução
A teoria do adimplemento substancial, embora não tão suficientemente abordada pela doutrina, é uma solução jurídica utilizada pela jurisprudência, ainda que tímido e omisso o direito positivo.
Como inexiste previsão legal expressa, bem como uma fórmula para a sua aplicação, cabendo a sua definição no caso concreto (princípio da concretização), daí a curiosidade e o interesse pelo tema, especialmente quanto aos seus fundamentos e limites.
Na verdade, a aplicação da doutrina do adimplemento substancial é uma exceção à regra geral de que o pagamento deve se dar por completo (princípio da integralidade ou não-divisibilidade).
Ao contrário do direito brasileiro, a sua previsão legal no direito de alguns países é um facilitador inquestionável. Contudo, as transformações no direito obrigacional pátrio, especialmente com uma perspectiva civil-constitucional, e a introdução de novos princípios contratuais e cláusulas civis gerais, influenciaram a aplicação da teoria do adimplemento substancial, dentro do contexto de oxigenação e modernização que o texto constitucional deu ao Direito Civil.
Relevante é a preocupação com o tema, já que a referida doutrina importa numa exceção às regras jurídicas tradicionais patrimonialistas, que prevêem a imposição das sanções legais e contratuais rígidas para aquele que não cumpre a obrigação assumida, violando, assim, o princípio da pontualidade (correspondência ou identidade).
A potencial insegurança jurídica causada pela incidência da teoria, com o conseqüente incremento ao descumprimento contratual, perde vez, contudo, ao caráter concreto e funcional da teoria, justificando, assim, a sua incidência.
Enfim, o adimplemento substancial é uma exigência dos princípios e cláusulas contratuais gerais que norteiam o direito privado, em nada divergindo dos demais princípios liberais, já que a ideologia constitucional – heterodoxa - exige a compatibilização de princípios de conteúdo diverso (que estão em permanente tensão), em consonância com as regras do Estado de Direito.
A doutrina do adimplemento substancial se insere no contexto das transformações sociais, econômicas e éticas sofridas pela ordem civil-constitucional, dentro de uma preocupação concreta-funcional.
1.Das mutações do Direito.
Não há mais como ignorar a influência do direito constitucional no Direito Civil. Contudo, é o Direito Civil que mais se aproxima do cotidiano do cidadão, regulando as relações jurídicas do nascimento até depois da morte. Daí se entender que o Código Civil é a “Constituição do Direito Privado e do homem comum”. Como já dizia Gustav Bohmer, em 1950, “o Direito Público passa, o Direito Privado permanece”.
O direito privado tem sofrido grandes transformações, preservando a sua essência individualista - liberdade e a autonomia privada -, mas orientando-se, também, para realizar melhor equilíbrio social e buscar novas preocupações éticas, sobrepondo o interesse coletivo (onde se incluiu a harmonia social), aos interesses individuais.
É tarefa do direito corrigir situações injustas a que conduziu, quando imperava na órbita política e econômica somente o liberalismo. Modernamente, o direito tende para a socialização e a moralização, com a inserção de um conteúdo mais humanístico, justo, solidário, social e ético, sem fugir de sua função econômica.
O direito civil clássico, de inspiração individualista, onde predominava a tutela dos que tinham poder (pai de família, proprietário, patrão, credor e testador), foi substituído por um ordenamento em que os valores são outros, exigindo a necessidade de harmonização dos interesses em conflito e em estado de tensão.
Daí a necessidade de se encarar a teoria do adimplemento substancial contratual na nova ordem jurídica, levando-se em conta a função transformadora e primordial do direito de realização da justiça.
2.Do adimplemento.
O principal efeito das obrigações é gerar para o credor o direito de exigir do devedor o cumprimento da prestação, e para este o dever de prestar, na forma, tempo e condições pactuadas (princípio da correspondência, identidade ou pontualidade). O Código Civil, ao tratar dos efeitos das obrigações, prevê os meios necessários e idôneos para que o credor possa obter o que lhe é devido, compelindo o devedor a cumprir a obrigação. Cumprida a obrigação, esta se extingue. O fim colimado pelo legislador é a extinção da obrigação.
As obrigações têm um ciclo vital: nasce de suas diversas fontes, como a lei, o contrato, declarações unilaterais, atos ilícitos e outras fontes; vivem e desenvolvem-se, por meio de suas várias modalidades (dar, fazer, não fazer); e, finalmente, extinguem-se.
Nascem as obrigações para ser cumpridas, mas, no exato momento em que se cumprem, extinguem-se. O adimplemento, apresentando-se como verdadeiro modelo jurídico (conjunto de regras e princípios), é o modo natural de extinção de toda relação obrigacional. Por isso, constitui matéria que se aprecia no capítulo relativo à extinção das obrigações. Mas é correto estudar o adimplemento no capítulo dos efeitos do vínculo obrigacional; é a sua sede própria e idônea. Dentre outras razões justificativas dessa localização, sobressaem a necessidade de dar maior clareza à teoria do inadimplemento e a possibilidade de sistematizar o estudo com rigor lógico, reduzindo-se todos os efeitos da relação obrigacional a três ordens, conforme digam respeito: a) ao adimplemento; b) ao modo pelo qual se realiza; c) ao inadimplemento.
A obrigação já nasce com a finalidade de se extinguir. Essa é uma das diferenças das obrigações (direito pessoal patrimonial) e dos direitos reais. Estes últimos têm caráter de permanência (maior estabilidade dos direitos reais em relação aos direitos pessoais obrigacionais). A obrigação têm caráter de efemeridade. Cumpre a obrigação seu papel de fazer circular a riqueza e, uma vez cumprida, exaure-se, ainda que outra obrigação idêntica venha a surgir posteriormente entre as mesmas partes.
Quando nada existe de anormal, de patológico, no cumprimento da obrigação, extingue-se ela pelo pagamento. O pagamento é, pois, o meio normal de extinção das obrigações. Pagamento significa cumprimento ou adimplemento da obrigação. A extinção de uma obrigação tem como conseqüência a liberação do devedor.
De acordo com a doutrina, em sentido lato, pagamento designa a execução satisfatória da obrigação (solução, adimplemento, resolução, implemento e cumprimento); em sentido restrito, indica certo meio de extinção da obrigação, significando a execução voluntária e exata, por parte do devedor, da prestação devida ao credor, no tempo, forma e lugar previstos no título constitutivo.
O vocábulo adimplemento expressa melhor a idéia de execução satisfatória, evitando confusão, por não ser palavra corrente na linguagem comum. Por outro lado, o termo inadimplemento emprega-se insubstituivelmente para nomear a falta de cumprimento.
No entanto, utiliza-se mais correntemente a expressão pagamento, que na linguagem vulgar é satisfação de dívida pecuniária. Se alguém deve certa quantia, cumpre a obrigação, pagando-a, mas não se chama pagamento o adimplemento de obrigação de fazer, ou de não-fazer. Para alguns, o pagamento seria, pois, espécie do gênero cumprimento. Tecnicamente, porém, pagar é solver.
As diversas expressões podem ser indiferentemente usadas para designar a extinção da obrigação pelo modo natural. Adimplemento, solução, cumprimento, pagamento, execução, traduzem solutio. Trata-se da solutio, solução do velho direito.
Adimplemento é o exato cumprimento da obrigação pelo devedor. De regra, o interesse do credor atende-se com o cumprimento da obrigação pelo devedor, mas pode ser satisfeito do mesmo se terceiro paga a dívida. Eis porque o adimplemento é o principal modo de satisfazer o interesse do credor de determinada relação obrigacional, exaurindo-lhe a pretensão.
Por sua vez, o conceito do inadimplemento da obrigação consiste na falta da prestação devida ou no descumprimento, voluntário ou involuntário, do dever jurídico por parte do devedor. É o não-cumprimento da obrigação, no tempo, lugar e forma devidos.
Em sede de inadimplemento, leciona Fortunato Azulay[1] que a questão mais importante e dificultosa não é o problema do inadimplemento absoluto a gerar perdas e danos (art. 389 do Código Civil vigente; art. 1.056 do CC de 1916), mas o da mora, com soluções várias e onde, além da possibilidade de purgação, do caso fortuito e força maior, os juízes vão pesquisar a boa-fé do inadimplente para eximí-lo da obrigação ou diminuir o grau de sua responsabilidade.
A mora, segundo Paulo Luiz Netto Lôbo,[2] “é o atraso ou falta do adimplemento, no tempo, lugar e forma previstos, por ato ou omissão imputável ao devedor ou ao credor. O decorrer do tempo, o atraso em se fazer o adimplemento, é o tempo da mora. As conseqüências pela mora são impostas a quem deu causa. Daí, classificar-se em mora do devedor e mora do credor”.
O inadimplemento é absoluto quando a obrigação não é cumprida no prazo e nem pode mais ser cumprida por impossibilidade imputável ao devedor ou por imprestabilidade da prestação ao credor.
Apesar de apresentarem algumas diferenças, tanto a mora como o inadimplemento constituem formas de violação contratual, podendo-se afirmar que a mora é espécie de inadimplemento. A distinção doutrinária decorre das formas de violação contratual, já que na mora existe a possibilidade de purgação ou emenda, enquanto que, no inadimplemento, por ser fato irrecuperável, incide o pagamento das perdas e danos.
A nova ordem conceitual introduziu a teoria da confiança (Treu und Glauben), segundo a qual as partes não mais ocupam posições antagônicas, mas devem proceder no sentido de cooperar com a outra para o fim de adimplemento.
No Brasil, a teoria da confiança encontra grande ênfase com o Código de Defesa do Consumidor e com o Código Civil vigente. É uma teoria ética, estando em perfeita consonância com um dos princípios norteadores do Código Civil (o princípio da eticidade), contexto no qual a doutrina do adimplemento substancial se insere.
3.O princípio do favor debitoris.
De acordo com o princípio do favor debitoris, a parte mais débil da relação obrigacional deve ser tutelada, de modo que o cumprimento do contrato seja o menos oneroso possível para o devedor hipossuficiente.
Registre-se que tal disparidade de tratamento não viola a isonomia contratual, pois a igualdade deve ser vista não no plano das liberdades formais, mas sim no campo das liberdades materiais. Assim, consiste em tratar desigualmente os desiguais, refletindo a evolução da doutrina contratual. Inicialmente presa aos ditames liberais da força obrigatória dos contratos, a relação jurídica obrigacional sofre radical transformação com a intervenção estatal para proteção da parte mais débil. Frise-se, ainda, que os negócios jurídicos celebrados no mundo moderno caracterizam-se como contratos de adesão, devendo ser interpretados contra a parte que o redigiu, orientação já conhecida desde os romanos, como o instituto do favor debitoris.
A boa-fé contratual deve levar em conta a diversidade das partes, sendo importante para apuração ou não da existência de vício de consentimento. Até porque o consentimento de uma parte, se em situação de desigualdade, não basta para garantir a justiça do contrato.
Além dos vícios do consentimento na formação da obrigação – erro, dolo e coação - o negócio jurídico sujeita-se a ser anulado quando constatada a lesão, imprevisão ou a quebra da base do negócio. A liberdade de contratar submete-se aos limites do respeito mútuo, entre iguais, e, mais ainda, à superação do princípio pacta sunt servanda, toda vez que se evidencia o desequilíbrio das partes, em função da tutela dos desfavorecidos, acentuada na regra favor debitoris .
Leciona Orlando Gomes[3] que, “no campo dos negócios bilaterais, a autonomia da vontade consubstancia-se na liberdade de contratar. A lei não estabelecia maiores restrições à celebração e ao conteúdo dos contratos. As partes eram livres para contrair as obrigações que entendessem, exigindo-se apenas o consentimento isento de vícios. Contraída a obrigação, por declaração de vontade, havia que ser cumprida a todo preço (pacta sunt servanda). Em conseqüência da própria evolução econômica e por influência de novas doutrinas, o campo da autonomia da vontade reduziu-se consideravelmente. Limitações enérgicas antepuseram-se ao poder de suscitar efeitos jurídicos mediante declaração negocial. Em diversos contratos, a liberdade de estipulação das cláusulas foi extremamente sufocada. O princípio da intangibilidade dos efeitos das convenções sofre numerosas exceções. A própria relatividade da sua eficácia cede diante de novas necessidades. Proclama-se, à vista dessas transformações, a decadência do princípio da autonomia da vontade”.
No campo do direito processual o princípio também tem aplicação. Daí asseverar Cândido Rangel Dinamarco que a lei busca um equilíbrio para a solução dos conflitos, constituindo como limite político para salvaguardar o devedor. Portanto, constitui também limite político à execução o disposto no artigo 620, do Código de Processo Civil (princípio da menor onerosidade), além do conjunto de disposições que gravitam em torno da idéia fundamental de torná-la tão suportável quando possível ao devedor e ao seu patrimônio. Pode-se mesmo dizer que existe um sistema de proteção ao executado contra excessos, um favor debitoris inspirado nos princípios da justiça e da eqüidade, que inclusive constitui uma das linhas fundamentais da história da execução civil em sua generosa tendência de humanização.
Sobre esse fundamento, parte da doutrina começou a desenvolver a idéia de que o devedor poderia apresentar ao juiz algum defeito grave do título executivo, que evitasse a formação do processo, sem a necessidade de opor embargos, uma vez que esse é o pior caminho para o executado.
O direito português, por exemplo, tem acompanhado a tendência de tutela do devedor:
I – Nos termos do artigo 2º da Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27 de Setembro de 1968 (Convenção de Bruxelas), o réu que tenha domicílio no território de um dos Estados contratantes deve ser demandado nos tribunais desse país. II – A Convenção de Bruxelas optou, assim, pelo princípio do favor «debitoris», embora, em matéria contratual, tenha facultado ainda ao credor accionar o réu em tribunal do Estado em que, segundo o contrato, a prestação deva ser cumprida. III – Foi, pois, correcta a propositura em tribunal português, da comarca da sede da sociedade devedora, de acção em que uma sociedade francesa pretendeu obter a condenação daquela no pagamento do preço de fornecimento que lhe prestara.
(Bol. do Ministério da Justiça, 471, 339 – Supremo Tribunal de Justiça)
Era reconhecido a regra do favor debitoris, como lembra Waldirio Bulgarelli,[4] também nos arts. 122 e 123, do antigo Código Comercial, “presumindo-se que quem se onera o faz pelo menos possível, ao que também se relaciona a regra da Lei Uniforme de Genebra que dispôs nos títulos de crédito, havendo divergência dos valores mencionados na cártula, deve-se adotar o menor valor”.
Enfim, o princípio do “favor debitoris” refere-se a um princípio geral de Direito que tutela o devedor. Tal regra possui a finalidade de proteger a parte, presumidamente, mais frágil na relação jurídica.
Já estava presente no art. 903, do antigo Código de Processo Civil de 1939, quando era interpretada como fundada no princípio do favor debitoris, a regra que concedia ao sujeito passivo um benefício especial "para evitar o agravamento que, normalmente, a execução já lhe causa". Comentando o velho diploma processual, José Frederico Marques considerava o benefício legal como inspirado "em elevado princípio de justiça e eqüidade".
Dessa maneira, se o credor infringir qualquer dos dispositivos que garantem ao devedor uma execução mais suave ou se o devedor usar da prerrogativa assegurada em seu benefício, o juiz, na primeira hipótese, não deverá permitir a iniciativa, mandando que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor; e na segunda, autorizar o pedido do devedor.
Naturalmente, quem sofre uma execução já se encontra em dificuldades na gestão de seu patrimônio; por isso, não quer a lei que o processo executivo seja motivo de agravamento desnecessário do quadro de adversidades por que passa o devedor. Forçá-lo, então, a cumprir suas obrigações, ou a saldar o débito, não significa penalizá-lo.
O importante é, em todos os casos, que, qualquer que seja o meio empregado, haja a obtenção do fim pretendido pelo credor, que é a sua reparação, e o menor sacrifício possível para o devedor, desde que razoável o favorecimento e que não cause prejuízo irreparável ao credor.
Dentre outros valores e fundamentos, não se pode negar que a doutrina do adimplemento substancial também está inserida e baseada no princípio do favor debitoris.
4.A teoria do adimplemento substancial.
O adimplemento ruim pode versar sobre parte modesta, diminuta e infinitesimal da prestação. Daí o direito inglês tratar, a respeito, da doutrina da substantial performance, que, para Bernard Gilson teria aplicação ocasional.
Os tribunais do Reino Unido utilizam outro fundamento, embora com idêntica finalidade. Valem-se da distinção entre obrigação principal e acessória (warranty), pois o descumprimento da obrigação acessória não provoca tout curt a resolução. Cômoda parece a subsunção do inadimplemento mínimo em algum dever correlato à obrigação principal, talvez o de lealdade, que permeia a vida do contrato, tergiversando a base de atuação da substantial performance.
Diferente o sistema brasileiro em relação ao ordenamento britânico, cuja medida exata se ostenta imprescindível ao ajustamento e à absorção local da teoria restringente do remédio resolutivo. O inadimplemento, no direito pátrio e no britânico, enseja o desfazimento do pacto, sem embargo da opção pela demanda de cumprimento.
O fundamento da noção de adimplemento substancial, que, para Araken de Assis,[5] se liga à idéia de proibir o não adimplente de postular a prestação alheia, comprova a validez e subsistência de pontos comuns nos dois sistemas jurídicos. A importação da substantial performance se opõe, inicialmente, à natureza do inadimplemento absoluto.
A hipótese estrita de adimplemento substancial (descumprimento de parte mínima), equivale, no direito brasileiro, ao adimplemento insatisfatório. Ao invés de infração a deveres secundários, existe discrepância qualitativa e irrelevante na conduta do devedor. O juiz é que avaliará a existência ou não de utilidade na prestação (art. 956, § único, do Código Civil de 1916).
As situações de adimplemento ruim ou defeituoso e de adimplemento próximo ao almejado ou substantial performance, dependerá a solução da conveniência ou não que resultar, ao credor, do exercício de resolução, ou de outra maneira, dos prejuízos causados pelo comportamento faltoso do devedor.
Portanto, o princípio de que o pagamento deve ser completo (princípio da integralidade) sofre exceção, diante da admissibilidade jurídica da teoria do adimplemento substancial, caso em que o direito de resolução toma feição abusiva, pois seu exercício viria a ferir o princípio da boa-fé, quando ele atua como regra limitadora do direito estrito, sem falar na ofensa à própria função e finalidade do instituto jurídico.
A origem da teoria do adimplemento substancial é a doutrina do substantial performance do direito anglo-americano.
A doutrina da substantial performance foi criada na Inglaterra, no século XVIII, com o caso Boone v. Eyre, de 1779, tendo por base uma distinção que se fazia à época entre os tipos de cláusulas que os contratos poderiam conter e as respectivas conseqüências, de diferentes graus de gravidade, que poderiam advir da infração de uma ou outra.
Vige na Common Law a regra segundo a qual o credor pode recusar um pagamento parcial ou que não corresponda aos termos do contrato. Por conseguinte, o adimplemento deve ser integral para que a parte possa reclamar a contraprestação. A aplicação desta regra, em rigoroso formalismo, levou a muitas decisões iníquas, como a do caso Cutter v. Powell, de 1795 (viúva de um marinheiro que não completou a viagem).
Estes tipos de decisões injustas chamaram a atenção das Cortes de Equity que, estabelecendo a doutrina da substantial performance, possibilitaram decisões mais conformes às exigências do princípio da boa-fé objetiva.
Começou-se, então, a cogitar da gravidade do incumprimento para efeitos de outorga da resolução, como forma de proteger a contraparte. A inovação da substantial performance surgiu da inversão do ponto de vista do julgador que, de apreciar a gravidade a partir da inexecução, passou a considerar a execução, a fim de determinar se ela satisfazia substancialmente a totalidade das obrigações estipuladas, apesar de sua imperfeição.
Aplicada esta doutrina, aquele contratante que prestou de forma quase exata (mas não exata) não mais perderia o direito de reclamar o preço, como ocorria na regra da Common Law. Se o adimplemento tivesse sido substancial, ainda que imperfeito, teria direito à contraprestação, resguardado o direito do credor em exigir-lhe o ressarcimento dos prejuízos causados pela imperfeição ou pela parte faltante. Um desvio contratual insignificante não mais justificaria sua resolução e a conseqüente perda de toda a contraprestação pelo devedor que adimpliu inexata, mas substancialmente.
Portanto, uma questão relativa ao adimplemento é a do denominado “adimplemento próximo ao resultado final pretendido pelo credor” ou “substantial performance” da Common Law.
Assim, a teoria do adimplemento substancial foi estabelecida por Lord Mansfield, em 1779, no caso Boone v. Eyre, em que o contrato já havido sido adimplido substancialmente, razão pela qual não se admitiu o direito de resolução, com a perda do que havia realizado o devedor, apenas cabendo direito de indenização ao credor, pois considerou-se, no caso, o direito de resolução como abusivo. Em caso mais recente (1952 – caso Hoenig v. Isaacs), o Lord Denning sustentou que a questão está em saber se o adimplemento total é condição prévia para o pagamento, concluindo que nem sempre assim sucede, dependendo da extensão do inadimplemento.
A doutrina do substantial performance é explicada por Vera Maria Jacob de Fradera[6] “como resultante da aplicação do princípio da boa-fé em sua atuação mais moderna, isto é, criando deveres, possibilitando restringir a regra de o cumprimento ser completo ou integral, admitindo solução diversa”.
Não é por outro motivo que Karl Larenz ensina que não se deve recusar uma prestação oferecida de modo incompleto, mas na qual falta somente uma pequena parte em relação ao todo, e sem que exista interesse, objetivamente fundado, que se oponha à aceitação da parte oferecida.
O adimplemento substancial, conforme definido por Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, constitui “um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização” e/ou de adimplemento, de vez que aquela primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa fé.
No sistema da common law tal princípio é antigo, representando uma substancial performance do contrato, impedindo efeitos negativos a uma parte em benefício de outra:
The performance of all essential terms of a contract so that the purpose of the contract is accomplieshed; however, un important omissions and technical defects may exist in the strict performance of the contract, see 272 S.W. 616, 619; "that performance of a contract which, while not full performance, is so nearly equivalent to what was bargained for that it would be unreasonable to deny the promisee the full contract price subject to the promisor's right to recover whatever damages may have been occasioned him by the promisee's failure to render full performance." 247 So. 2d 72, 75.
Substantial Performance (compliance), in Law Dictionary, 3d. Edition, Barron's, 1991.
Em suma, o adimplemento substancial consiste em evitar a desproporção de meios para se exigir uma contraprestação, evitando-se os malefícios de uma resolução quando, do quadro geral da obrigação, se pode divisar um adimplemento suficiente a impedir a ruptura do pacto, entendendo tal adimplemento como se fosse o integral para manutenção do status quo contratual, podendo a parte exigir apenas o restante, sem sacrificar o todo.
Assim, também por tal razão haveria de se ter como abusiva a utilização da resolução do contrato quando, em verdade, foi ele substancialmente cumprido.
Instituto próximo ao adimplemento substancial, mas em posição invertida e exigindo requisitos distintos, contudo, com resultado igual, é o previsto no art. 25, da Convenção Internacional sobre Venda de Mercadorias (Convenção de Viena), de 1980,[7] denominado inadimplemento fundamental do contrato (fundamental breach).
Ensina Anelise Becker,[8] depois de registrar que inexiste fórmula para a determinação do que seja o adimplemento substancial de um contrato, cabendo a sua definição no caso concreto, o que “pressupõe uma mudança no próprio método de aplicação do Direito, ou seja, a superação do raciocínio lógico-subsuntivo pelo da concreção”, conclui que “o inadimplemento ou o adimplemento inútil são causas de desequilíbrio porque privam uma das partes da contraprestação a que tem direito. Por isso se lhe concede o direito de resolução, como medida preventiva. Mas, para que haja efetivamente um desequilíbrio, algo que pese na reciprocidade das prestações é necessário que tal inadimplemento seja significativo a ponto de privar substancialmente o credor da prestação a que teria direito.
A extinção do contrato por inadimplemento do devedor somente se justifica quando a mora cause ao credor dano de tal envergadura que não lhe interessa mais o recebimento da prestação devida, pois a economia do contrato está afetada. Se a falta, por exemplo, é apenas a última prestação de um contrato de financiamento com alienação fiduciária, verifica-se que o contrato foi substancialmente cumprido e deve ser mantido, cabendo ao credor executar o débito. Usar do inadimplemento parcial e de importância reduzida na economia do contrato para resolver o negócio significa ofensa ao princípio do adimplemento substancial.
Então, o princípio de que o pagamento deve ser completo (princípio da integralidade) sofre exceção. Adotando-se a teoria do adimplemento substancial, o direito de resolução toma feição abusiva, pois seu exercício viria a ferir o princípio da boa-fé, quando ele atua como regra limitadora do direito estrito.
Face às considerações expendidas em torno do direito de resolução, previsto no parágrafo único do artigo 1.092, do Código Civil de 1916, observava-se que ele poderia ser exercido: a) em face de um inadimplemento absoluto; b) face à ocorrência de mora, quando houver, com ela, a perda do interesse, para o credor, na prestação; c) face ao decurso de termo fixado como essencial.
Não existe uma fórmula fixa para determinar o que seja adimplemento substancial. Observadas as circunstâncias do caso contrato, cabe ao julgador pesar a gravidade do descumprimento e o grau de satisfação dos interesses do credor (princípio da concretização).
Ensina Anelise Becker[9] que a ausência de parâmetro “implica em um alargamento dos limites do poder judicial na apreciação do caso concreto, o que, por sua vez, pressupõe uma mudança no próprio método de aplicação do direito, ou seja, a superação do raciocínio lógico-subsuntivo pelo da concreção. Apenas este último método, que utiliza parâmetros concretos para a solução de casos concretos, admite um tipo de construção jurisprudencial como o da doutrina do adimplemento substancial. Decorre daí a necessidade de apurarem-se cada vez mais tais parâmetros (standards), pois eles serão os limites para o julgador”.
Enfim, a teoria do adimplemento substancial é uma exceção ao princípio de que o pagamento deve ser completo (integralidade ou não-divisibilidade), predominando o princípio da conservação do negócio jurídico.