3 .O caráter de tribunal de exceção do Tribunal de Nuremberg
“- O que foi Hiroshima? Não foi sua experiência médica? Os EUA teriam jogado bombas tão facilmente sobre a Alemanha como o fizeram no Japão? Acho que não. Para a sensibilidade americana, uma criança caucasiana é muito mais humana do que uma japonesa.
- Nós estávamos em guerra com o Japão, um país que nos atacou sem provocação. Vocês assassinaram milhões de seus próprios cidadãos.
- E os cidadãos americanos descendentes de japoneses, que foram colocados em custódia preventiva em seus próprios campos de concentração?
- Isso foi errado.
- Por que o mesmo não ocorreu com os cidadãos americanos descendentes de alemães e italianos?
- Eu disse que isso foi errado!
- E os negros em seu exército? Eles tem permissão para comandar tropas em combate? Podem se sentar nos mesmos ônibus que os brancos? As leis de segregação em seu país e as leis anti-semitas no meu não são diferentes apenas quanto ao grau?[35]
A criação, instalação, funcionamento e consequências do Tribunal de Nuremberg suscitaram, desde as negociações para sua constituição até hoje, inúmeras questões controversas quanto à sua natureza, aos seus procedimentos e à sua eficácia.
A primeira é talvez a mais constantemente lembrada e discutida, qual seja, a de que o Tribunal possuía um caráter eminentemente de exceção, posto que consistia num instrumento para aplicar uma forma de punição pelos vitoriosos sobre os vencidos, sem respeitar princípios básicos do Direito e, principalmente, sem oferecer à defesa dos réus qualquer chance. Ou, nas palavras de Hermann Goering, o Tribunal comprovaria que “O vencedor será sempre o juiz, e o vencido será sempre o acusado.”[36]
3.1 Conceito de tribunal de exceção
Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior assim conceituam a ideia de tribunal de exceção:
“O conteúdo jurídico do princípio pode ser resumido na inarredável necessidade de predeterminação do juízo competente, quer para o processo, quer para o julgamento, proibindo-se qualquer forma de designação de tribunais ou juízos para casos determinados.
[…] Nesse sentido, Pontes de Miranda aponta que a 'proibição dos tribunais de exceção representa, no direito constitucional contemporâneo, garantia constitucional: é direito ao juízo legal comum', indicando vedação à discriminação de pessoas ou casos para efeito de submissão a juízo ou tribunal que não o recorrente por todos os indivíduos.[37]”
Mais adiante, complementam:
“O princípio, contudo, não veda a existência de juízos especializados, desde que guardado o caráter generalizador da norma que os criar, que só ofenderá o princípio em estudo no caso de, por via transversa, buscar a submissão de situações ou pessoas predeterminadas à competência desses novos órgãos.[38]”
Já Alexandre de Moraes complementa essa definição:
“O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão julgador.[39]”
Em seguida, Moraes ressalta que a instituição de um tribunal de exceção fere de morte o Estado de Direito, visto que “sua proibição revela o status conferido ao Poder Judiciário na democracia.[40]”
Em suma, caracteriza-se como tribunal de exceção aquele criado a posteriori às condutas que por ele serão apreciadas, com jurisdição e regras próprias, com caráter temporário e/ou excepcional, e que, fundamentalmente, se opõe à ordem constitucional do país em que vigora. Em razão dessa criação e constituição excepcional, os procedimentos de um tribunal de exceção são sempre suspeitos (quando não flagrantemente) de cercearem a defesa dos acusados.
3.2.Jurisdição e competência do Tribunal de Nuremberg
O Tribunal de Nuremberg foi criado por um tratado, o Acordo de Londres, firmado entre as Quatro Potências em 8 de agosto de 1945, ou seja, exatos três meses após a rendição incondicional da Alemanha. Toda a base organizacional, desde os limites de sua jurisdição até os detalhes procedimentais dos julgamentos, foram acordados entre as Quatro Potências por meio de negociações, sem limitarem-se a suas próprias normas jurídicas internas.
Inquestionável, ademais, que o Tribunal de Nuremberg foi criado única e exclusivamente para julgar os acusados pelos crimes naquela oportunidade estabelecidos. Sua jurisdição não se alongava no tempo nem no espaço, pois, de acordo com o art. 1º do Estatuto, o Tribunal tinha competência apenas para julgar “os grandes criminosos de guerra do Eixo europeu”. Dessa forma, não possuía competência para julgar crimes cometidos posteriormente ou que não se relacionassem à conduta alemã sob o regime nazista.
Tratava-se, portanto, de um tribunal ad hoc, ou seja, criado especificamente para uma ocasião e objetivo específicos, e que somente existiria enquanto esse objetivo não fosse alcançado, in casu, o sentenciamento dos acusados.
Anos depois, quando o julgamento de Adolf Echmann[41] levantou questão semelhante, a filósofa Hannah Arendt, ao traçar um paralelo desse julgamento com o de Nuremberg, concordou que o caráter de exceção deste lhe era ínsito, uma vez que o Tribunal e os julgamentos que proferiu “eram internacionais apenas no nome, sendo de fato cortes dos vitoriosos[42]”, ressaltando que “a autoridade de seu julgamento, duvidosa em qualquer caso, não foi corroborada quando a coalizão que ganhou a guerra e se lançou nessa empresa conjunta se rompeu, para citar Otto Kirchheimer, 'antes que secasse a tinta dos julgamentos.[43]”
Georg Schwarzenberger também classifica como ad hoc o Tribunal, alertando que sua excepcionalidade servia aos interesses das Quatro Potências, pois tornava-o uma lei da qual “na condição de vitoriosos, alguns dos vencedores foram capazes de se auto-excluir.”[44].
Já Gonçalves abraça as críticas tecidas por Celso Albuquerque Mello, ao apontar o inquestionável caráter de exceção do Tribunal, uma vez ter ele sido “extinto após ter proferido o julgamento.”[45]
Um dos juízes titulares do Tribunal, o francês Donnedieu de Vabres, concordou com essa visão, alguns anos após o encerramento dos trabalhos do Tribunal:
“O Tribunal Militar Internacional é uma jurisdição ad hoc, na qual a instituição é posterior às infrações as quais ele recebeu a missão de reprimir. As incriminações são vagas, e as penas quase inteiramente deixadas à apreciação discricionária dos juízes.[46]”
Curioso notar, ademais, conforme diz Gonçalves, que o Tribunal de Nuremberg, em sua criação e funcionamento, se assemelhava tecnicamente aos tribunais específicos criados pelos nazistas durante o Terceiro Reich, tribunais esses que o próprio Indiciamento denunciava como criminosos e ilegais, ao tipificar os crimes contra a humanidade sob a Acusação Número 4:
“Cortes especiais foram estabelecidas, a fim de executar a vontade dos conspiradores; agências e departamentos favorecidos do Estado e do Partido tiveram permissão de operarem ao largo até mesmo da lei nazista, e para esmagar todas as tendências e elementos que eram considerados 'indesejáveis'”.[47]
Dentre esses tribunais nazistas, denominados de “cortes especiais (Sondergericht)”, aos quais Nuremberg poderia ser comparado, o mais famoso certamente fora o Tribunal do Povo (Volksgerichtshof), que, entre 1934 a 1945, executou milhares de opositores ao regime de Hitler, e cujo funcionamento o ilustre historiador Ian Kershaw descreve como um “torpe arremedo de julgamento legal, em que a sentença de morte era uma certeza desde o início” e onde os acusados tinham limitada chance de se defenderem e de cujas sentenças inexistia direito à apelação.[48]
O próprio Tribunal, todavia, por meio de seus juízes, atacou esse argumento, ao justificar a si próprio como resultado do exercício soberano concedido às Quatro Potências pela rendição incondicional da Alemanha:
“A elaboração do Estatuto foi o exercício do poder legislativo soberano pelos países aos quais o Reich alemão rendeu-se incondicionalmente; e o direito inquestionável desses países de legislar quanto aos territórios ocupados foi reconhecido pelo mundo civilizado. O Estatuto não se trata de um exercício arbitrário de poder da parte das nações vitoriosas, […].”[49]
A justificativa exarada pelo Tribunal se apoiava na noção da debellatio, assim conceituada pelo professor de direitos humanos israelense Eyal Benvenisti:
“[...] se um Estado inimigo desintegrou-se totalmente, e nenhum outro poder dá continuidade à luta em benefício do soberano derrotado, então a ocupação transfere a soberania. Como dito por Ernst Feilchenfeld, 'Se um beligerante conquista todo o território de um inimigo, a guerra está terminada, o Estado inimigo deixa de existir, as regras quanto a sucessão de Estado referentes a anexação completa aplicam-se e não há mais espaço para regras concernentes a mera ocupação.”[50]
Na visão do Tribunal, tendo as Quatro Potências dissolvido o governo alemão e passado a exercerem autoridade legal sobre a Alemanha, por meio da “Declaração Referente à Derrota da Alemanha e Assunção de Autoridade Suprema pelas Potências Aliadas” de 5 de junho de 1945, possuíam elas pleno poder legislativo, autorizando-as a criar o Tribunal como se este estivesse sendo criado pelo próprio Poder Legislativo alemão.
O juiz titular americano, Francis Biddle, ao comentar isoladamente, seis meses após o fim do julgamento, a criação do Tribunal, seguiu a mesma linha de raciocínio: “É uma lei aceita em qualquer lugar a que permite aos vencedores estabelecerem tribunais, com leis, jurisdição e procedimentos definidos, nos territórios que eles conquistaram e ocuparam.”[51]
Quincy Wright, especialista em Direito Internacional e consultor do promotor Jackson durante o julgamento em Nuremberg, também sustentou a legalidade do Tribunal, baseado numa assertiva semelhante, considerando o fato de que os acusados estavam sob custódia das Quatro Potências:
“Todo Estado possui, porém, autoridade para julgar qualquer pessoa sob sua custódia que cometa crimes de guerra, conquanto essas ofensas ameacem sua segurança. Acredita-se que essa jurisdição é ampla o bastante para cobrir a jurisdição provida pelo Estatuto. Se cada signatário do Estatuto pode exercer tal jurisdição individualmente, eles podem concordar em estabelecer um tribunal internacional para exercer a jurisdição conjuntamente. O contexto das declarações do Tribunal sugerem que este intencionou essa limitação.”[52]
Wright continua seu pensamento, justificando a criação do Tribunal pelo fato de que as Quatro Potências que ocupavam a Alemanha possuíam a competência para tanto, tendo como limitação somente “os princípios fundamentais da justiça, os quais até mesmo um conquistador deve observar em relação aos habitantes do território anexado.”[53]
Hans Kelsen também entendeu que a noção de debellatio, ratificada pela dissolução do Estado alemão pelas Quatro Potências, justificava a criação do Tribunal. Para ele, a rendição incondicional da Alemanha em 8 de maio de 1945 possibilitava aos vencedores aplicarem a debellatio e dissolverem o Estado soberano alemão, tornando-os os verdadeiros sucessores da nação. Dessa forma, a criação do Tribunal configurava uma medida tomada pelo próprio Estado alemão: “Um tratado internacional, do qual as Quatro Potências ocupantes, na capacidade de soberanos sobre o território ocupado e sua população, são as partes contratantes, é equivalente a um tratado concluído com a Alemanha.”[54]
Arendt, por sua vez, entendeu que, malgrado Nuremberg fosse realmente uma corte de exceção, havia uma justificativa aceitável para tal:
“[...] o julgamento na corte dos vencedores era talvez inevitável no fim da guerra (ao argumento do magistrado Jackson sobre Nuremberg: 'Ou os vitoriosos julgam os vencidos ou teremos de deixar os vencidos julgar a si mesmos', deve-se acrescentar o compreensível sentimento dos Aliados de que eles, 'que tinham arriscado tudo, não podiam permitir neutros' [Vabres])[55]”
Ademais, a opinião pública à época não pareceu importar-se com a aparente “justiça dos vitoriosos” imposta em Nuremberg. Susane Karstedt, após estudar algumas pesquisas de opinião realizadas durante os anos seguintes ao julgamento, opinou que a realização destes pelas nações vitoriosas “livrou as emergentes e ainda fracas forças democráticas [da Alemanha pós-guerra] da tarefa altamente explosiva de julgar a antiga liderança nazista […] e também contribuiu para o fato dos alemães sentirem-se livres da responsabilidade de julgarem as atrocidades [...]”[56]
Mas Kelsen advertia que, para que esse entendimento fosse verdadeiramente capaz de afastar qualquer contestação à legitimidade do Tribunal, as Quatro Potências deveriam “fazer uma declaração considerando-as como exercendo soberania conjunta sobre o território alemão e sua população, com base na debellatio completa da Alemanha, e, consequentemente, considerar o governo militar estabelecido por elas como o legítimo sucessor do último governo alemão.”[57]
É de se notar, todavia, que, conforme Benvenisti aduz, jamais as Quatro Potências fizeram uma declaração nesse sentido. Muito pelo contrário, elas sempre consideraram-se tão somente ocupantes do território da Alemanha derrotada. Outrossim, os governos da Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental, estabelecidos em 1949, foram desde sempre considerados os verdadeiros sucessores legítimos do Terceiro Reich.[58]
A defesa mais contundente em afastar a noção de juízo de exceção do Tribunal foi aquela feita pelo promotor norte americano Robert Jackson em seu discurso inicial perante o Tribunal:
“Este Tribunal, conquanto seja novo e experimental, não é produto de especulações abstratas, nem é criado para justificar teorias legalistas. Este inquérito representa o esforço prático de quatro das nações mais poderosas, com o apoio de 17 outras, em utilizar a lei internacional para enfrentar a maios ameaça de nossos tempos – a guerra agressiva.
[…]
Infelizmente, a natureza desses crimes é tal que a acusação e julgamento devem ser feitos pelas nações vitoriosas sobre seus antagonistas derrotados. O escopo global das agressões cometidas por esses homens deixou poucos neutros. […]
[…]
A verdadeira parte reclamante neste Tribunal é a Civilização.”[59]
Para Jackson, portanto, a natureza dos crimes cometidos pelos réus impedia qualquer outro tipo de julgamento que não um imposto pelos vencedores, até porque eram vencedores, nesse caso, toda a humanidade. As Quatro Potências não atuavam em Nuremberg como vencedores strictu sensu, mas sim como representantes da humanidade, e o julgamento em si emanaria princípios a serem seguidos universalmente.
Segundo Henry T. King, o princípio da jurisdição universal, mencionado por Jackson e utilizado pelos defensores do Tribunal, “é a antítese da soberania nacional integral.” Para ele, o Tribunal julgava “crimes tão odiosos que tornam-se crimes não somente contra as vítimas, mas contra toda a humanidade.”[60]
Durante um dos julgamentos posteriores ao Julgamento dos Principais Criminosos de Guerra Nazistas (mais especificamente, o chamado “Julgamento dos Reféns, ou Caso List), os juízes expressaram a base desse princípio, conforme ele fora estabelecido em Nuremberg:
“[...] um crime internacional é um ato reconhecido universalmente como criminoso, e que é considerado uma grave questão de interesse internacional, não podendo ser deixado, por alguma razão válida, sob a jurisdição exclusiva do Estado que teria controle sobre ele sob circunstâncias normais.”[61]
Durante o julgamento de Eichmann, em 1962, o princípio da jurisdição universal foi melhor esmiuçado pelos juízes israelenses. Para eles, os nazistas equiparavam-se aos piratas perante as leis internacionais tradicionais, na condição de hostis humani generis. Dessa forma, “os crimes […] não apenas possuem um caráter internacional, mas seus efeitos danosos e assassinos foram tão envolventes e alastrados que sacudiram as fundações da comunidade internacional”[62]
Arendt, mesmo crítica à utilização do princípio em comento no caso de Eichmann, concordou quanto ao caráter internacional dos crimes nazistas, ao definir o genocídio do povo judeu como um “ataque à diversidade humana enquanto tal, isto é, uma característica do 'status humano' sem a qual a simples palavra 'humanidade' perde o sentido.”[63]
De qualquer forma, as Quatro Potências decidiram fulminar imediatamente qualquer alegação que pusesse em dúvida a jurisdição do Tribunal, ao elaborar o art. 3º do Estatuto: “Nem o Tribunal, nem seus membros ou seus substitutos poderão ser discutidos pela promotoria ou pelos réus ou seus defensores.”[64]
3.3.A independência e imparcialidade dos juízes
Uma das características de tribunais de exceção é, indubitavelmente, a suspeita que sempre recairá sobre a independência e imparcialidade dos juízes.
Os juízes do Tribunal de Nuremberg, todavia, eram oriundos das nações vencedoras da guerra, compatriotas de muitas das vítimas das atrocidades alemãs. Dificilmente poder-se-ia considerá-los imparciais ante os réus e os crimes de que eram acusados.
Importante ressaltar, outrossim, que o juiz titular americano, Francis Biddle, o juiz titular soviético, Iona T. Nikitchenco, e os juízes titular e substituto franceses, Donnedieu de Vabres e Robert Falco, respectivamente, atuaram nas negociações do Acordo de Londres e do Estatuto do Tribunal, ou seja, tiveram participação na construção do Tribunal do qual agora tomavam parte como juízes.
Muitos críticos, à época e depois, levantaram a questão do porque juízes neutros não foram escolhidos para o julgamento. Gonçalves nota que “Por mais dignos e retos em seus julgamentos que fossem, não haveria um elemento psicológico subjetivo que poderia influenciar-lhes no julgamento daqueles que eram acusados de terem provocado um tão avassalador conflito contra suas nações?[65]”
Mais adiante, Gonçalves desenvolve sua crítica:
“Os magistrados (…) seriam, em razão de seus cargos, tecnicamente 'desnacionalizados' ou 'supranacionais'. (…) [cabendo] ao juiz apenas os interesses da Justiça, deixando de lado quaisquer outras considerações de ordem nacional ou política. (…) Muito depois de Nuremberg ainda se perguntava por que o Tribunal não fora composto também por membros de países neutros, ou apenas por estes, ou ainda porque dele não pode participar a própria Alemanha, que dispunha de magistrados de reputação internacional. Sem dúvida, caso houvesse participação de árbitros neutros, o veredicto de Nuremberg seria menos questionável.”[66]
Os advogados de defesa, em 19 de novembro de 1945, protocolaram uma petição ao Tribunal, questionando a suposta imparcialidade dos juízes, por terem estes sido apontados pelo mesmo poder que criara o Estatuto, que formava a promotoria e que delineara os crimes que eram ali examinados. O Tribunal indeferiu essa petição dois dias depois, sob alegação de que essa tese consistia em ataque à jurisdição do Tribunal e, assim, violadora do art. 3º do Estatuto.[67]
Já Lazard, todavia, manifestou um pensamento em vigor à época, no tocante à suposta imparcialidade de juízes de nacionalidades diversas. Para ele, ao indagar se seria possível colocar juízes alemães ou neutros no Tribunal:
“Toda a justiça alemã era nazista. É evidente. Teria por conseguinte sido preciso procurar, nos campos de concentração alemães, juízes da oposição detidos há mais de dez anos. Ter-se-ia encontrado algum? E ninguém se pouparia a dizer que se vingavam hoje dos seus senhores de ontem.
Não teria sido necessário haver pelo menos alguns neutros ao lado dos Aliados? Esta observação é em princípio exata, mas praticamente sem alcance. Não há neutralidade que resista. Teria sido preciso não ser homem para não manifestar durante cinco anos nem simpatia, nem reprovação” [68]
Ainda que o aspecto subjetivo da imparcialidade dos juízes seja fonte de eterna controvérsia, a análise do aspecto objetivo, das ações dos juízes, possibilita uma conclusão quanto a essa questão.
À primeira vista, pode-se crer que os homens que julgaram os réus em Nuremberg estavam ali a serviço de seus países.
Smith procurou traçar um perfil da independência de cada juiz, analisando suas ações antes e durante o julgamento. Quanto aos juízes americanos, opinou que:
“Não havia nada de que Biddle mais gostasse do que de uma oportunidade para mostrar que era dono do próprio nariz, e há sinais de que Washington não queria meter-se com qualquer um de seus dois representantes. (…) os juízes eram de tal forma independentes que o Ministério da Guerra nem sequer vislumbrava o que pensavam, e o próprio Jackson teve de recorrer a rumores e a insinuações para avaliar-lhes a posição.[69]”
Sobre os juízes britânicos:
“Nas deliberações, associaram-se com mais constância às posições assumidas pela Promotoria do que o fizeram os juízes norte-americanos, mas, por outro lado, esforçaram-se por manter, mais que no caso dos norte-americanos, distância social e pessoal do grupo britânico dos promotores.[70]”
Pode-se inferir, assim, que os juízes americanos e britânicos atuaram em Nuremberg livres de qualquer influência de seus governos, tanto pelo temperamento dos próprios juízes quanto pelas atitudes dos governantes.
Em relação aos juízes franceses, porém, Smith não é tão categórico em afirmar sua imparcialidade:
“Os escassos materiais […] relacionados com as ações dos juízes franceses mostram que, num momento determinado das deliberações, Donnedieu de Vabres reconheceu francamente que fora oficialmente notificado dos desejos de seu governo quanto a um aspecto em consideração pelo Tribunal.[71]”
Mas Smith aponta, todavia, as ações objetivas da dupla de juízes franceses, a fim de presumir-se que eram, na medida do possível, imparciais:
“Dada a escassez de material a respeito, seria extrema imprudência chegar, por esse incidente, à conclusão de que Donnedieu de Vabres e Robert Falco eram, comumente, dirigidos por Paris. A melhor luz possível a esse respeito é fornecida pelo comportamento que tiveram durante as deliberações: os argumentos que apresentavam e a maneira por que votavam eram tão independentes que, muitas vezes, discordavam da Promotoria, dos outros juízes e, quase com a mesma frequência, um do outro.”[72]
A grande crítica reside, indubitavelmente, sobre os juízes soviéticos. Nikitchenco era conhecido por ter presidido os Julgamentos de Moscou, que haviam condenado inimigos políticos de Stalin e que foram tudo menos julgamentos legais. Smith indica que ele e Volchkov:
“Comportavam-se, por vezes, como autômatos que, como supunha a maior parte dos observadores ocidentais, só estavam em Nuremberg para cumprir ordens de Stalin. Os soviéticos, e Volchkov em particular, seguiram constantemente uma linha dura, votando pela condenação de todos os réus em todos os itens da acusação e em favor do enforcamento de qualquer possível acusado.[73]”
Importante frisar o comportamento de Nikitchenko durante as negociações para o Acordo de Londres, ocasião em que expressou a seguinte opinião quanto ao julgamento do qual iria participar (fato que, à época, lhe era desconhecido):
“Nós não estamos lidando aqui com o tipo normal de casos em que a questão é de roubo, assassinato ou ofensas menores. Estamos lidando aqui com os principais criminosos de guerra que já foram condenados, e cuja condenação já foi anunciada por ambas as declarações de Moscou e da Criméia pelos chefes dos governos [Aliados] (…) O caso da Promotoria é inquestionavelmente conhecido pelo juiz antes do início do julgamento, e não há, portanto, necessidade de se criar um tipo de ficção de que o juiz é uma pessoa desinteressada que não tem nenhum conhecimento do que aconteceu. Se tal procedimento for adotado, de que o juiz deve ser, supostamente, imparcial, tal levará somente a atrasos desnecessários e oferecerá oportunidade ao acusado de causar atrasos na ação do julgamento.”[74]
Ainda assim, as opiniões radicais dos juízes soviéticos sempre encontraram ao menos uma opinião igual do lado “ocidental”. Smith tenta sumarizar a questão da imparcialidade dos magistrados com a afirmação de que “embora os membros do Tribunal gozassem de diferentes graus de autonomia, e embora cada juiz usasse de forma singular suas prerrogativas, os réus enfrentaram uma Corte surpreendentemente isenta de controle exterior.”[75]
3.4 .As limitações ao direito de defesa
Outra característica dos juízos de exceção é, sem dúvida, a dificuldade dos acusados de defenderem-se propriamente. É do caráter de um tribunal de exceção o julgamento rápido, onde algumas das garantias do acusado são postas de lado em busca de uma justiça rápida e eficiente.
O Tribunal Militar Internacional para a Alemanha era, como seu próprio nome já indica, um tribunal militar. Preferiu-se estabelecer um tribunal desse caráter (ainda que alguns dos seus membros fossem civis) para que, nas palavras de Georg Schwarzenberger, fosse dada ênfase à rapidez do processo, ainda que em detrimento do direito de defesa dos réus.[76] Já para Joseph S. Robinson, major do exército americano e estudioso do Direito, preferiu-se a constituição de um tribunal militar pois “A jurisdição de cortes-marciais não se estende aos atos criminosos de não-combatentes em território ocupado, nem a crimes que são hoje referidos no geral como 'crimes de guerra'.[77] Desse modo, havendo dentre os réus inúmeros civis, e ante a natureza dos crimes pelos quais eram acusados, somente um tribunal militar poderia julgá-los.
Ninguém pode negar, outrossim, que para os advogados de defesa, a tarefa imposta em Nuremberg era colossal, quase impossível. Todos eles eram oriundos de um país onde o princípio do processo legal fora enterrado na lama. Por 12 anos, desde a ascensão de Hitler ao poder, esses advogados não haviam enfrentado um julgamento baseado inteiramente na lei.
Os advogados tinham à frente, primordialmente, o sentimento de aversão que o mundo parecia nutrir pelos alemães. Assim, surgiu um consenso entre eles de que, mais que defender os réus (ainda que tal empresa não fosse de todo impossível), importava mais tentar provar a inocência do povo alemão:
“[...] sofriam os advogados, como todos os alemães, o choque da derrota, e da destruição e tristeza que os cercavam. Selecionados em geral por nutrirem sentimentos antinazistas, ou se terem comportado com frieza em relação ao regime de Hitler, os advogados de defesa alemães, em sua maioria, responsabilizavam os réus pela desgraça própria e pela desgraça do país. Eles estavam tão chocados, e frequentemente tão irritados como a Corte e o público assistente pela revelação de exemplos de fria brutalidade.”[78]
Todavia, como Biddle aponta, os juízes tratavam os advogados de forma radicalmente diferente do modo como eram tratados pela opinião pública, o que os auxiliou no cumprimento de suas funções:
“Após o julgamento ter começado, e conforme prosseguiu por dez meses, o conceito de que todo o procedimento era nada mais do que um elaborado ato de vingança disfarçada desapareceu gradualmente. De acordo com uma previsão do Estatuto, aos réus individuais foi permitida a escolha de seus próprios advogados, e nos poucos casos em que eles não exerceram esse direito, o Tribunal nomeou defensores para representá-los. De início, os réus e seus defensores estavam céticos e até hostis. Mas, gradualmente, conforme eles passaram a perceber que as decisões do Tribunal eram objetivas, frequentemente contrárias às sugestões da Promotoria, essa atitude mudou.[79]
Mesmo assim, a defesa viu-se diante, muitas vezes, de obstáculos praticamente intransponíveis.
3.4.1 As regras procedimentais e os diferentes sistemas jurídicos mesclados em Nuremberg
Uma das primeiras discussões a surgirem entre as Quatro Potências, ainda durante as tratativas quanto à redação do Estatuto, foi a de qual sistema jurídico seria utilizado para o julgamento. Isto porque, os sistemas jurídicos das quatro nações aliadas divergiam entre si profundamente.
Reuniam-se em Nuremberg três sistemas diferentes entre si: o sistema britânico e norte americano, baseado na common law, o sistema francês e o sistema soviético. Conforme relata Gonçalves, o primeiro era habitual à maioria dos juízes e da acusação; já o francês era bastante semelhante ao sistema jurídico alemão e, portanto, favorável à defesa; e o soviético era novíssimo.[80]
Durante as tratativas para a elaboração do Acordo e do Estatuto do Tribunal, os delegados das Quatro Potências (dentre eles Jackson, Nikitchenko e o futuro promotor britânico no julgamento, Lord Maxwell-Fyfe) gastaram bastante tempo debatendo quais aspectos de cada sistema jurídico seria utilizado. Optou-se, por fim, num misto dos procedimentos continentais (francês e alemão, derivados do direito romano-germânico) e anglo-saxão (britânico e norte americano) mas que, ainda segundo Gonçalves, trouxe mais efeitos positivos à Promotoria. Isto se deu fundamentalmente pela opção do contra-interrogatório (cross-examination) dos réus e das testemunhas, técnica bastante difundida no direito anglo-saxão mas inexistente nos sistemas continentais.[81]
É característico dos tribunais militares, conforme diz Robinson, não se aterem a regras de procedimento formais, uma vez não serem estabelecidos formalmente segundo o Direito em vigor no país em questão. Para ele, “[...] as formas e regras [estatuídas no Direito comum] são, quando conveniente, usadas e aplicadas. A falta de obediência a essas normas, todavia, não torna os procedimentos ilegais.”[82]
Assim, sendo Nuremberg um misto dos sistemas continental e anglo-saxão, os advogados não tinham a experiência nem a técnica que os promotores (ao menos os americanos e ingleses) possuíam.
Smith sumariza bem os desafios que os advogados enfrentavam quanto às regras procedimentais:
“Em geral, era extremamente difícil para advogados educados na tradição da Europa continental compreender a forma contestatória de julgamento, tão familiar aos anglo-saxões. A ideia que faziam do melhor meio para que o Tribunal chegasse a uma conclusão judiciosa não era o combate irrestrito entre a Promotoria e a defesa, funcionando os juízes como árbitros. Estavam acostumados a um sistema fundado em maior entendimento entre a defesa, a Promotoria e os juízes; em Nuremberg, porém, a defesa e a Promotoria eram inimigos mortais, e os advogados alemães não logravam fugir à impressão de que os outros os tinham na conta de auxiliares dos bandidos. Alguns dos promotores, e muitos dos soldados aliados de serviço em Nuremberg, encaravam com hostilidade não apenas os réus, mas os alemães em geral. (…) lembrava-se sempre aos advogados de defesa, seja em matéria de contatos pessoais, seja no que dizia respeito às instalações postas à disposição dos mesmos, que eram cidadãos de segunda classe, desde que fosse possível considerá-los cidadãos de qualquer espécie.”[83]
Ao optarem pela mescla dos diferentes procedimentos adotados pelos sistemas jurídicos de cada um, as Quatro Potências decidiram, outrossim, abolir talvez a única característica comum a todas: a instituição de uma corte de revisão das sentenças.
O artigo 26 do Estatuto estabelecia que “O julgamento do Tribunal quanto à culpabilidade ou inocência de qualquer Réu deverá expressar as razões em que se basear, será definitivo e não estará sujeita a revisão.”[84]
Fulminou-se, peremptoriamente, qualquer possibilidade de os réus terem suas sentenças revistas por uma instância superior. O que se permitia era apenas que os réus apelassem ao Conselho de Controle dos Aliados para que tão somente suas penas (não a condenação em si) fossem revistas.
Smith relata como três dos réus condenados solicitaram essa revisão, ainda que buscando penas mais honrosas (Jodl e Keitel solicitaram a conversão da pena de enforcamento para a de fuzilamento, e Raeder solicitou a conversão de sua pena de prisão perpétua para execução por fuzilamento). O Conselho simplesmente ouviu o próprio promotor-chefe norte americano Jackson, que opinou pelo indeferimento de todos os pedidos (por não haverem motivos “políticos” para tanto), e acatou in totum toda a fundamentação dele, denegando qualquer tipo de revisão.
3.4.2 A proibição da defesa de cumprimento de ordens superiores – o Princípio do Fuhrer
Estipulou o Estatuto do Tribunal a proibição de utilização de algumas teses de defesa, dentre elas quaisquer teses que utilizassem questões internacionais (procurando vedar, dessa forma, que os advogados trouxessem à baila as diversas condutas das Quatro Potências que enquadravam-se nas definições dos crimes ali julgados)
Mas a proibição mais danosa à defesa era, certamente, a que vinha prevista no art. 8º do Estatuto: “O fato de o réu ter agido em cumprimento a ordem de seu governo ou de seu superior não o eximirá de responsabilidade, mas poderá ser considerado atenuante quanto à punição se o Tribunal entender que a justiça assim o requer.” [85]
Tratava-se aqui de afastar a utilização, pela defesa, do argumento de obediência a ordens superiores. Ressalte-se que essa proibição referia-se tão somente à responsabilização penal dos réus, podendo os juízes aceitarem eventual alegação nesse sentido para atenuar a pena imposta ao condenado.
Mirabete assim define o cumprimento de uma ordem hierarquicamente superior como excludente de culpabilidade:
“Trata-se, segundo a doutrina, de um caso especial de erro de proibição. Supondo obedecer a uma ordem legítima do superior, o agente pratica o fato incriminado.
A dirimente exige que a ordem não seja manifestamente ilegal, uma vez que, se flagrante a ilicitude do comando da determinação superior, o sujeito não deve agir. É possível ao subordinado a apreciação do caráter da ordem […] Assim, deve desobedecê-la se tem conhecimento da ilicitude do fato. […]
Não sendo a ordem manifestamente ilegal, se o agente não tem condições de se opor a ela em decorrência das consequências que podem advir no sistema de hierarquia e disciplina a que está submetido, inexistirá a culpabilidade pela coação moral irresistível, estando a ameaça implícita na ordem ilegal.”[86]
Mirabete ainda elenca três requisitos para a exclusão da culpabilidade: que a ordem seja emanada da autoridade competente; que tenha o agente atribuições para a prática do ato; e que não seja a ordem manifestamente ilegal.
Mais além, Kai Ambos define o conceito de coação, atento à natureza dos crimes em questão:
“[A coação] requer, no plano objetivo, que o subordinado se encontre em uma situação de coação extrema que não lhe deixe nenhuma outra possibilidade que cumprir a ordem. Tal situação de coação fracassa se o subordinado comete o fato ativa e voluntariamente. Pode existir, no entanto, quando o subordinado, caso não cumpra a ordem, fique exposto a uma situação de perigo ameaçante para sua vida. É discutido se um perigo grave é suficiente. A resposta depende da ponderação de bens: se o bem jurídico ameaçado prevalece essencialmente sobre o lesionado, então dever-se-á considerar suficiente um perigo grave; do contrário, especialmente quando a mesma ação em estado de necessidade é perigosa para a vida, pode exigir-se ao subordinado tolerar o perigo. Isto é assim, pois, em princípio, é inadmissível – ao menos nos crimes contra a humanidade – a ponderação de vida contra a vida.”[87]
Prossegue Ambos, ainda, dizendo que: “O conceito de ordem superior emerge da necessidade da manutenção da disciplina e ordem dentro de organizações hierarquizadas. Mas tais valores são mitigados […] pela especial gravidade dos crimes envolvidos.”[88]
Ambos resume, por fim, o âmago da ordem superior com uma frase de Edward Wise: “Uma pessoa não pode ter sua responsabilidade criminal excluída pelo simples argumento de que estava seguindo ordens de um superior.”[89]
A Alemanha de Hitler era um Estado totalitário, onde o ditador possuía autoridade plena e irrestrita sobre tudo e todos. Ian Kershaw, um dos maiores estudiosos de Hitler e do Terceiro Reich, descreve bem esse aspecto, ao narrar a sessão do Parlamento alemão (o Reichstag) do dia 26 de abril de 1943, quando foi aprovada uma resolução que dava poderes plenos a Hitler de exarar ordens supralegais:
“Assim que Hitler terminou o discurso, Goebbels leu em voz alta a 'Resolução' do Reichstag que dava poderes ao Fuhrer [Hitler] 'sem ficar preso aos preceitos legais existentes', em sua capacidade de 'líder da nação, comandante supremo da Wehrmacht [Forças Armadas alemãs], chefe de governo e ocupante supremo do Poder Executivo, como supremo senhor da lei e líder do Partido', de remover de cargo e punir quem, independente da posição, deixasse de cumprir seu dever, sem respeito por direitos de pensão e sem qualquer procedimento formal estipulado.
Naturalmente, a 'Resolução' foi aprovada por unanimidade. Os últimos retalhos da constitucionalidade estavam rasgados. Agora Hitler era a lei.
[…] Como o chefe do judiciário em Dresden comentou, com o fim de toda a autonomia judicial, a Alemanha se transformara agora num 'verdadeiro Estado do Fuhrer.'”[90]
Vigorava na Alemanha nazista, portanto, o Fuhrerprinzip, ou o “Princípio do Fuhrer”, segundo o qual a palavra de Hitler era lei, da qual ninguém podia eximir-se do cumprimento. Por meio desse princípio, conforme relata Gonçalves, a culpabilidade por grande parte dos crimes julgados em Nuremberg recairia única e exclusivamente sobre Hitler, não podendo os réus responderem por terem não apenas seguido ordens mas, fundamentalmente, terem seguido a lei alemã.[91]
O juiz titular francês, Donnedieu de Vabres, que, aparentemente, concordou, após sua atuação em Nuremberg, com diversas das críticas proferidas contra o Tribunal, também abraçou esse argumento, ao declarar que:
“Ora, em uma Alemanha nacional-socialista, Hitler detinha a totalidade do poder legislativo, executivo e, mesmo, ao final de sua dominação, judiciário. As disposições legais e regulamentares não eram, ao contrário do que ocorre em um país livre, consequência de uma deliberação, da manifestação de uma vontade coletiva, mas sim a expressão da vontade de um único homem que as concebia e as impunha. As leis de Hitler […] - mesmo que despachadas por um ministro, um alto funcionário, ou um chefe do exército, e portando a menção: 'O Fuhrer determinou..., o Fuhrer ordenou...' - mão passavam de leis de Hitler.”[92]
Gonçalves nos traz ainda a opinião de Jose Augustin Martinez, no sentido de que o Tribunal deveria ter considerado a situação interna da Alemanha sob Hitler, o controle despótico que este exercia sobre todos, e ter feito a seguinte pergunta: “Seria possível que alguém se opusesse aos desejos de Hitler ou ousasse desobedecer a suas ordens?”[93]
O Tribunal preferiu abster-se de qualquer discussão quanto a esse aspecto, simplesmente proibindo terminantemente qualquer alegação de obediência a ordens superiores ou governamentais (aí incluindo a obediência à lei). Mas Kai Ambos, ao dissertar sobre a questão em comento, entendeu que esse tipo de defesa, aplicada ao Direito Internacional, necessita de certos ajustes:
“[...] este ponto de vista foi relativizado ao estabelecer-se que se deve tratar de uma ordem manifestamente antijurídica. Este critério foi seguido, também, para as ordens impostas por meio da lei. Sua validade ajusta-se ao direito penal internacional material, do qual se segue, entre outras coisas, que existe um valor mais elevado que a mera fidelidade à lei.”[94]
Foi Arendt, todavia, quem realmente se debruçou sobre essa questão, ainda que filosoficamente, sem esmiuçar seu aspecto legal. Isto pois, durante o julgamento de Eichmann, este defendera seus atos dizendo que não apenas cumpria ordens, mas cumpria, essencialmente, a lei.
Para Arendt, Eichmann (e, por analogia, todos os nazistas abaixo de Hitler) procuravam justificar seus atos por meio do “imperativo categórico” de Immanuel Kant:
“[...] Eichmann deu uma definição quase correta do imperativo categórico: 'O que eu quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais' Ele [todavia] distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o 'imperativo categórico do Terceiro Reich', que Eichmann deve ter conhecido: 'Aja de tal modo que o Fuhrer, se souber de sua atitude, o aprove.”[95]
Mas Arendt aponta como a verdadeira noção de imperativo categórico de Kant jamais poderia aplicar-se às condutas dos subordinados de Hitler:
“Kant, sem dúvida, jamais pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador no momento em que começa a agir: usando essa 'razão prática' o homem encontra os princípios que poderiam e deveriam ser os princípios da lei. Mas é verdade que a distorção inconsciente de Eichmann está de acordo com aquilo que ele próprio chamou de versão de Kant 'para uso doméstico do homem comum'. No uso doméstico, tudo o que resta do espírito de Kant é a exigência de que o homem faça mais que obedecer à lei, que vá além do mero chamado da obediência e identifique sua própria vontade com o princípio que está por trás da lei – a fonte de onde brotou a lei. Na filosofia de Kant, essa fonte é a razão prática; no uso doméstico que Eichmann faz dele, seria a vontade do Fuhrer.”[96]
Ainda assim, o Tribunal decidiu simplesmente eximir-se de qualquer discussão quanto a esse aspecto, e dificilmente considerou a “obediência a ordens” como atenuante das penas que cominou.
Além das limitações aqui descritas, a defesa viu-se prejudicada por diversos outros aspectos: a dificuldade em produzir provas (os advogados trabalhavam sozinhos, e não tinham liberdade nem meios para procurarem, em uma Alemanha em ruínas, documentos favoráveis aos réus), o modo como a Promotoria apresentava provas (muitas vezes documentos únicos, sem que cópias fossem disponibilizadas previamente à defesa), a atitude dos réus (alguns admitiam abertamente a realização de condutas criminosas, outros, como Streicher, tratavam todo o julgamento como um show, despertando a ira dos juízes), a inexistência de uma estratégia comum de defesa (alguns dos réus odiavam-se, e culpavam uns aos outros pelos crimes de que eram acusados), as dificuldades quanto às diferentes línguas faladas durante o julgamento (houve muitas reclamações quanto às traduções de documentos feitas pela Promotoria, bem como quanto à tradução simultânea das conversações e testemunhos durante o julgamento).
Porém, como nota Smith, a defesa foi, na medida do possível, sempre auxiliada pelos juízes, zelosos por um julgamento verdadeiramente justo.[97] Eles obrigaram a promotoria a ler os documentos que apresentavam (dessa forma submetendo-os à tradução simultânea em francês, alemão, russo e inglês, conforme o caso), protegeram os advogados de ataques da imprensa, etc. Em suma, procuraram, conforme possível, propiciar aos réus uma justa oportunidade de se defenderem, até quando qualquer defesa parecia impossível.