CONCLUSÃO
O artigo 1.698 do Código Civil de 2002 tem sido alvo de contundentes críticas e fortes divergências quanto à tentativa de seu enquadramento em uma das modalidades de intervenção de terceiros previstas no Código de Processo Civil de 1973.
A utilização do verbo chamar, utilizada no texto do artigo, levou muitos doutrinadores a relacionarem, de plano, o instituto criado ao chamamento ao processo. Ocorre que uma análise mais detalhada do artigo evidenciou que tal instituto não se enquadrava ipsis litteris nos requisitos de tal intervenção. Percebeu-se, ainda, que a solidariedade no plano material, que inexiste no caso da obrigação de prestar alimentos, impossibilitava a formação do litisconsórcio passivo através do chamamento ao processo e, ao lado dessa solidariedade, a possibilidade de se opor direito de regresso em favor daquele que assumiu a totalidade do débito. Por não se falar em solidariedade tampouco em direito de regresso na obrigação alimentar, não havia como se falar em chamamento ao processo.
Tal situação levou doutrinadores de escol a tentarem enquadrar a intervenção criada pelo art. 1. 698 do Novo Código Civil em modalidades diversas do chamamento ao processo, gerando diversas correntes doutrinárias que, por sua vez, foram, também, alvo de críticas e divergências.
Dentre as diversas correntes formuladas, uma primeira interpretou que a utilização do verbo “chamar” certamente relacionou esse instituto ao litisconsórcio passivo, facultativo, ulterior, simples e, por provocação do autor. Ocorre que essa mesma corrente visualizou a impossibilidade de formação de tal litisconsórcio pelo regime do ordenamento processual civil vigente e, portanto, seria hipótese de uma nova modalidade de intervenção de terceiros, sem precedentes no ordenamento processual brasileiro; uma segunda corrente afirmou que a tradução processual correta do dispositivo da lei civil seria a denunciação da lide; e a terceira corrente sustentou se tratar de hipótese de chamamento ao processo, porém remodelado, uma vez que não haveria solidariedade entre os devedores comuns.
A corrente que relacionou a utilização do verbo “chamar” ao litisconsórcio passivo, facultativo, ulterior, simples e, por provocação do autor, o fez com base na impossibilidade de enquadramento na denunciação da lide e chamamento ao processo, por falta do direito de regresso e da solidariedade, ideia ínsita de tais institutos. Utilizou, como fundamento, o artigo 46, inciso I, do Código de Processo Civil. Porém, em virtude da regra imposta pelo artigo 264 do CPC, que impõe a estabilização subjetiva do processo após a citação, tal intervenção não seria possível, não havendo, portanto, hipótese de intervenção de terceiro que servisse aos propósitos do art. 1.698 do CC.
Diante de tal impossibilidade, sustentou que o dispositivo em questão trouxe ‘inovação alvissareira’, com aplicação muito restrita e específica, porém carente de regulação processual, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses de litisconsórcios nem nas hipóteses de intervenção de terceiros permitidas pelo Código de Processo Civil de 1973.
Apesar de não ter sido encontrado embasamento doutrinário defendendo a posição de que o ‘chamamento’ a que se refere o art. 1.698 do CC seja hipótese de intervenção iussu iudicis, considerou-se oportuno afastar, sistematicamente, essa possibilidade, poisa necessidade da integração dos codevedores no processo que discute alimentos não decorre imediatamente da lei, tampouco de unitariedade da relação material, uma vez que o dispositivo civil apenas permite a citação de terceiro para integrar a relação processual como forma de otimizar a prestação final do alimentando.
Uma segunda entendeu se tratar de denunciação da lide, defendida por Renan Lotufo, e se posicionou em momento anterior à entrada em vigor do Código Civil de 2002, quando ainda estava em análise o seu projeto. Sustentou o autor que a inserção do artigo 1.698 do atual Código Civil (previsto conforme o art.1.710 no referido Projeto) tornaria a obrigação de prestar alimentos solidária entre os parentes de grau sucessivo. Ocorre que o projeto do Novo Código Civil entrou em vigor e nada falou o legislador sobre a solidariedade das obrigações alimentares decorrentes de parentesco, impossibilitando ao "eleito", para prestar alimentos o direito regressivo, pressuposto fundamental da denunciação da lide. Por não ter havido previsão expressa do legislador quanto à solidariedade da obrigação de prestar alimentos, ou ao direito de regresso, o entendimento de Renan Lotufo ficou sem argumentos técnicos, uma vez que, consoante o disposto no artigo 265 do Código Civil, a solidariedade não é passível de presunção, devendo derivar da lei ou da vontade das partes.
Um terceira corrente manteve o posicionamento inicial de que a utilização do verbo “chamar” no artigo 1.698 do Código Civil possibilitou o chamamento ao processo nas ações de alimentos, utilizando, como argumento, que esse seria o melhor enquadramento processual da norma. Não deixaram de reconhecer a ausência de solidariedade nas ações de alimentos, mas argumentaram que a nova regra poderia ser enquadrada na modalidade descrita no art. 77, inciso III, do Código de Processo Civil, porém, remodelada, uma vez que os aplicadores do direito não devem se ater com exagero ao conceito e natureza da forma de intervenção de terceiros de que ora se trata, pois o mais importante é que se busque um processo eficaz e justo, sem apego exacerbado ao formalismo, que somente traria danos aos litigantes.
Não se pode afirmar que a inexistência de solidariedade entre os coobrigados é indiferente; nos alimentos, não existe a maior característica do chamamento ao processo que é a solidariedade da obrigação, isso impossibilitou o autor de exigir o todo de um só devedor se esse não tiver em condição de arcar com a totalidade da obrigação, porque a obrigação depende, para existir, da possibilidade concreta de cada um dos obrigados. Porém, não podemos negar que este “chamamento ao processo remodelado” a que se refere este corrente, defendida por Cássio Bueno e Humberto Theodoro Jr, seja positivo para o autor da ação de alimentos, pois, embora por iniciativa do réu, serão introduzidas no processo, que se mantém uno, outras relações de direito material que poderão redundar em um leque maior de efetivação da sentença em favor do alimentando.
Este, louvadamente, foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que, em 11 de março do corrente ano, ao julgar o Recurso Especial de número 964.866 de São Paulo, entendeu que o art. 1.698 do Novo Código Civil trata de norma de natureza especial e que não obstante se possa inferir do texto que o credor de alimentos detém a faculdade de ajuizar ação apenas contra um dos coobrigados, não há óbice legal a que o demandado exponha, circunstanciadamente, a arguição de não ser o único devedor e, por conseguinte, adote a iniciativa de chamamento de outro potencial devedor para integrar a lide.
A tese abraçada pelo STJ, qual seja, de possibilidade de chamamento da genitora para compor o polo passivo da ação de alimentos proposta por filhos em desfavor do pai, abarca o entendimento de que a obrigação alimentar é de responsabilidade dos pais, e, no caso de a genitora dos autores da ação de alimentos também exercer atividade remuneratória, é juridicamente legítimo que seja chamada a compor o polo passivo do processo para ser avaliada a sua condição econômico-financeira para assumir, em conjunto com o genitor, a responsabilidade pela manutenção dos filhos maiores e capazes, salvo na hipótese de qualquer deles estar na condição de guardião de filhos menores.
Dessa forma, esse posicionamento não se aplica nos casos de alimentos complementares na situação de obrigação subsidiária, que exige a comprovação de que os devedores originários (pais, por exemplo) estejam impossibilitados de cumprir com seus deveres, em tal hipótese, entendeu o tribunal que, prima facie, facultar aos obrigados que chamem uns aos outros em detrimento dos interesses maiores do credor de alimentos poderia traduzir-se em irracionalidade, sobretudo em razão da ordem do grau de parentesco: ascendentes, descendentes e colaterais. Tal entendimento também não se aplica aos alimentos a que se referem à Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que, de forma expressa e específica, estabeleceu, no seu art. 12, que “a obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar por entre os prestadores”.
Em que pese as diversas críticas quanto ao posicionamento do colendo Tribunal, uma vez que as características da obrigação alimentar não se enquadram ipsis litteris ao instituto processual do chamamento ao processo, pensamos ter sido o mais acertado, pois como podemos perceber, a possibilidade de o réu trazer ao processo o outro corresponsável originário pela obrigação alimentar dos filhos, possibilitou a efetivação prática e célere do direito material, evitando a propositura de nova ação para a satisfação completa das necessidades do alimentando, haja vista tudo ter se resolvido em um só processo.
Há que se entender que o tema em questão apresenta uma série de peculiaridades que tornam de difícil solução a problemática posta, não obstante tratar da efetivação e celeridade da prestação jurisdicional na obrigação alimentar, instituto do direito de família que garante a sobrevivência digna do necessitado, traz, subsidiariamente, uma discussão sobre a capacidade do direito de se transformar e adaptar-se à realidade do direito material, na busca da melhor solução para o caso concreto.
Dessa forma, a compreensão da natureza jurídica da obrigação de alimentos é ponto fundamental para a correta interpretação da regra processual inserta no Código Civil de 2002, uma vez que é necessário se acolher a nova regra processual no ordenamento jurídico sem jamais perder de vista o direito material por ela tutelado. Assim, chamando-se ao processo ou intervindo-se na qualidade de litisconsorte passivo, necessário ou facultativo, o que importa mais, sobretudo em ação de alimentos, é que o alimentando possa ver satisfeito, da maneira mais completa e expedita possível, o direito material que o motivou a ingressar em juízo, tendo em vista que o mais importante, hoje, é se buscar a efetividade da justiça, e não se fixar em conceito formais.
Logo, a possibilidade de o único demandado trazer ao processo a informação de que existem outros potenciais devedores em condições de concorrer para o pagamento da parcela alimentícia, torna a ação de alimentos mais efetiva e célere para o alimentando justamente porque, se o parente demandado não tiver possibilidade de suprir as reais necessidades do alimentando o outro, chamado, o fará, resolvendo as necessidades alimentares do autor da ação em um só processo.
Conclui-se que, ao permitir a iniciativa do réu em trazer ao processo os demais devedores originários, o STJ consagrou a eficácia e celeridade pretendida pelo legislador com a inserção do art. 1.698 no Código Civil de 2002, garantindo a satisfação do autor da ação de alimentos de forma célere e efetiva, mostrando que os operadores do processo não podem povoar suas mentes com dogmas supostamente irremovíveis que, em vez de iluminar o sistema, concorrem para uma Justiça morosa e, às vezes, insensível às realidades da vida e às angústias dos sujeitos em conflito.
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