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Direito cognitivo: uma (re)análise (necessária) entre Habermas e Luhmann

27/11/2013 às 14:11
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Propõe o presente estudo filosófico e sociológico investigar o direito enquanto fenômeno epistemológico complexo, diverso das propostas positivistas de uma ciência pura, axiologicamente neutra, de lógica cartesiana.

Resumo: Propõe o presente estudo filosófico e sociológico investigar o direito enquanto fenômeno epistemológico complexo; diverso das propostas Positivistas de uma ciência pura, axiologicamente neutra, de lógica cartesiana; por uma compreensão linguística e transdisciplinar genealógica. Apresentar as implicações da formação dos saberes na teia de poder existente das sociedades atuais e na estruturação dos diversos sistemas jurídicos, nascedouro axiológico dos diversos direitos; bem como, aplicar o método transdisciplinar, proposto por Edgar Morin utilizando-se da ciência antropológica e da ética, para o entendimento da construção positiva da norma jurídica transconstitucional. Além de demonstrar exemplos de aplicação do Princípio Cognitivo na positivação de tais normas jurídicas, positivadas, mas não dogmáticas, a partir do confronto das Teorias do Discurso de Jürgen Habermas e dos Sistemas em Niklas Luhmann. Aprofundar-se na compreensão desses dois sistemas teóricos, com profícua busca de respostas às intersecções das esferas de conhecimento humano na idealização, não mais puramente utópica, do mundo da vida, caótico, em sua diversidade fisiológica, ontogenética e cultural, por uma coexistência pacífica, socialmente organizada sob a égide do novo paradigma de um Estado Democrático Cognitivo de Direito Transconstitucional.

Palavras-chave: Filosofia do Direito. Sociologia Jurídica. Teoria dos Sistemas.

Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. O DIREITO E A COGNIÇÃO: um resgate genealógico. 2.1. AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS MODELOS TOTALIZANTES. 2.2. O POSITIVISMO JURÍDICO: crítica à Teoria Pura do Direito. 2.3. DA PRÁXIS AO EMPIRISMO: por uma lógica do direito. 3. DO MITO DE UMA CIÊNCIA DO DIREITO. 3.1. O DISCURSO E O SISTEMA: entre Habermas e Luhmann. 3.2. HERMENÊUTICA JURÍDICA: linguagem e linguística. 3.3. PRISMA DO DIREITO CONSTITUCIONAL: a Ciência do Caos no entendimento do Direito. 4. O DIREITO COGNITIVO: o movimento complexo da teia de poder e suas relações na formação dos saberes transconstitucionais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. NOTAS. REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO

O presente estudo sociojurídico do direito como integrante das ciências sociais; não exatamente “puro” conforme proposto por Hans Kelsen (1987), mas como espécie do conhecimento humano, transeunte, litigante e próprio das quatro dimensões deste conhecimento, em sua totalidade; busca, não apenas uma compreensão, mas as possíveis: sistêmica e discurso, ao vê-lo, de fato, muito mais objeto da ciência hermenêutica, e da linguística do que puro e axiologicamente neutro. 

Mesmo sem pretender, ou puder, esgotar o assunto, a pesquisa em comento, procura apontar quais as definições paradigmáticas, suas relações práticas no mundo jurídico e como as ciências, sobretudo a linguística e a epistemológica podem contribuir na construção de um Princípio Cognitivo Jurídico1 (sem cientificismos, legalismos2 ou dogmáticas) orientador à Hermenêutica Jurídica capaz de facilitar a compreensão, à luz do discurso de Jürgen Habermas e do entendimento sistemático do direito em Niklas Luhmann, e com sorte, auxiliar na formação de um Estado Democrático Cognitivo de Direito; pretensos “conceitos cibernéticos”3 dentre as correntes de jurisfilosófos expostos e seus objetos culturais: os diversos direitos. 

Procurar-se-á esquadrinhar, no conjunto de métodos propostos, a antropoética4 aplicada ao direito e suas relativizações ao Transconstitucionalismo, nos termos de Marcelo Neves (2009), demonstrando-se, no tópico conclusivo modelos de aplicação do Princípio Cognitivo na positivação de normas gerais fundamentadas na transdisciplinaridade ensinada por Edgar Morin. 

Tal proposta encontra-se em curso, como Projeto de Lei Federal na Câmara dos Deputados do Brasil, em sua fase inicial. Tendo como discurso a regulamentação dos testes do ácido desoxirribonucléico (DNA)5 para fins de prova judiciais, tanto na esfera Civil quanto Penal.6 Ademais, há de se observar que, a inflação de normas, oriunda da lógica sistêmica do Positivismo jurídico,7 pilar dos atuais Estados Democráticos de Direito, apesar de responsável por todo desenvolvimento na sociedade contemporânea, pouco pôde fazer pela aproximação dos povos; e por outro extremo, a desregulamentação demonstrou-se ainda mais prejudicial, pois não há, a priori, como sustentar microssistemas jurídicos, em uma perfeita harmonia, no caos do mundo capitalista transconstitucional. 

Resta aprofundar-se na compreensão desses dois sistemas teóricos, na busca profícua de respostas às intersecções que certamente aparecerão. E talvez, possa-se idealizar, não mais puramente utópico, a vida em sua diversidade fisiológica e cultural numa coexistência pacífica, estruturada sob a égide do Estado Democrático Cognitivo de Direito Transconstitucional.

 Para tanto, foram utilizados os métodos dialético e genealógico aliados à hermenêutica dos princípios gerais do direito (como sistema jurídico e sistema de normas),8 por uma compreensão sistêmica de uma nova dialógica jurídica, capaz de explicar, na interação e complementaridade das múltiplas e complexas redes do conhecimento humano, a formulação do “princípio estruturante” basilar da intervenção jurisdicional no caso concreto. 

O assim simplificado “Princípio Cognitivo”, como método derivado de abordagem do direito pretende introduzir os conceitos da hermenêutica como forma da cognição humana efetiva na análise e avaliação, eminentemente como ato de inteligência, das questões de fato e de direito que são deduzidas no bojo do processo e cujo resultado ataca às verdades imutáveis e, por conseguinte, o misticismo ainda arraigado na formação da sociedade contemporânea; apesar de todo avanço nos ramos do conhecimento humano. 

Na fala de Foucault, como um dos referenciais teóricos, sobretudo, no que concerne a compreensão do direito como estrutura, pode-se retirar o suprassumo do método de abordagem ora aplicada. Diz Foucault: “A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos.”9

 O procedimento metodológico adotado neste trabalho foi norteado, de forma exploratório-genealógica, pela pesquisa bibliográfica, reduzindo-a aos pontos relevantes concernentes ao tema; haja vista, a vasta gama de autores e correntes ideológicas que se podem vislumbrar quando do estudo da ética e da antropologia, no olhar transdisciplinar da Teoria da Complexidade de Edgar Morin, voltados para o direito como sistema estruturante disciplinar que molda o indivíduo na sociedade, segundo a concepção estruturalista de Michel Foucault. Nesse pensar, arqueológico, genealógico, a pesquisa da origem se concentra nos textos referenciados por uma busca da economia, da política, da ilusão, da consciência alienada ou ideológica, apregoada como a própria verdade do direito enquanto ciência pura e não hermenêutica. 

Busca-se, sem maiores pretensões, o conflito das ideias, por vezes mutuamente excludentes, dos diversos doutrinadores do direito e além deste, por uma transdisciplinaridade10 rumo à epistemologia holística11 do direito enquanto fenômeno social. 

No segundo capítulo, logo após a Introdução, são abordadas as contextualizações e definições acerca do Direito e Cognição. Ato continuo, este capítulo se subdividi em pontos chaves, pela melhor compreensão do tema. São respectivamente: as ciências sociais e seus modelos totalizantes; do Positivismo jurídico e da Práxis marxista ao Empirismo kelseniano. 

A partir do terceiro capítulo e suas subdivisões, inicia-se a discussão dos objetos da pesquisa, a saber: do mito e contradições acerca da possibilidade de uma Ciência do Direito; o confronto das Teorias de Habermas e Luhmann são em seguida evocadas abrindo-se a ocasião para trata-se da hermenêutica jurídica e dos novos paradigmas trazidos pela teoria do Caos, do Discurso e do Sistema. 

O quarto capítulo é designado ao tema do Direito Cognitivo: O movimento complexo da teia de poder e suas relações na formação dos saberes transconstitucionais, que abordará o assunto sob a ótica estruturalista de Foucault e Complexa de Morin aliadas aos conceitos do Transconstitucionalismo, de Marcelo Neves, como desafio e meta. 

Além dos citados capítulos, o trabalho monográfico está devidamente acompanhado dos itens obrigatórios requeridos pela Instituição, pré-textuais e pós-textuais, dentre estes a Introdução; a Conclusão, mediante demonstração de exemplo da aplicação do Princípio Cognitivo na positivação de normas jurídicas e as Referências.


2 O DIREITO E A COGNIÇÃO: um resgate genealógico

 Necessário enxergar-se nitidamente a identidade corpórea do direito com todas as manifestações do saber; pois em tais identificações residem o ideário de busca da verdade, confundindo-se com a própria, em simbiose perfeita que, bem lembra Foucault:

“Por ‘verdade’, entender[-se] um conjunto de procedimentos regulados para produção, a lei, a repartição, [...]  ligadas a sistemas de poder, que produzem e apoiam [...]”12 é por assim dizer um “Regime”, uma forma de autorreprodução, não meramente ideológica, ou superestrutural, é o próprio poder, disperso, intrínseco às estruturas; o canto das sereias aos pescadores, a máscara do Capital, o fetiche.

 Examinar um corpo teórico, tal qual é o direito, não se faz sem mergulhar-se nesse fetiche, na magia que sempre lhe foi aliada. Seu aspecto, espectro, místico inicial ainda perdura, sob capas, mantos negros e procedimentos ritualísticos em seus templos, fóruns, tribunais. Enquanto perdurou(a) sua áurea de “mundo divino”, operando no “mundo da vida”, seus sacerdotes, magos, tradutores; transfigurados no iluminado século em operadores de máquinas-sistêmicas; tinham em seus aspectos o critério de conhecimento mágico, único, indiscutível: Real.

 Realidade, formada em perspectiva, a vida e suas muitas possibilidades são tão imponderáveis quanto um deus que as domine. A simples existência de um, ou vários seres divinos, seja ele qual for, torna tudo, todas as possibilidades tão improváveis, que melhor é, de forma direta e simples, simplória e rude, não acreditar em nada. A final, duvidar é preciso, viver nem tanto. 

De forma direta, a vida não é mística.13 É de fato incompreensível, de muitas formas e inúmeras instâncias. Incompreensível em suas muitas totalidades; mas jamais, mística. O simples não entender cria em si o mistério, o fetiche que atrai a sonhar. Semelhante às cavernas, por instinto de sobrevivência, sempre foi melhor sonhar, imaginar, o dente-de-sabre que confrontá-lo de fato. 

Por inúmeras fraquezas perante o vil inimigo natural, predador de uma espécie desprovida de habilidades físicas compatíveis com os ferozes músculos e agilidade deste tigre pré-histórico. Sonhar salvou. Imaginar precavia e a corrida desesperada ao menor indício; não necessitava-se do fato, de vê-los; isso mataria, matou inúmeras vezes. Ao imaginá-los, por experiência, corria-se, protegia-se de qualquer maneira e isso era o correto a se fazer. Pensar, sonhar, imaginar, tornou os humanos SAPIENS: sábios e sobreviventes. Não se sabe de que forma, por quais caprichos naturais a espécie escapou da extinção, mas fato é que escapou, ao menos por enquanto. 

Isso não faz a vida mística, mágica. Isso faz a vida ser a certo ponto inexplicável; por absoluta limitação cognitiva de apreender assuntos tão vastos e complexos.

 Atualmente, essa habilidade de sonhar desenvolvida com o perigo do remoto passado, assim como a capacidade de armazenar gordura em demasia em camadas internas de pele, se torna um grave problema social. Por assim dizer também da obesidade infanto-juvenil, por exemplo. Pois, com relação ao excesso de sonhos, por gentil ser, assim definindo o mar de obscenidades que a sociedade global vislumbra nos últimos milênios, conduz ao exato caminho contrário necessário ao caminhar como espécie, indescritível, contudo fácil de ser compreendido por qualquer simples pessoa, em qualquer nação, com alguns exemplos de seu cotidiano. 

O sonho em demasia, ou melhor nomeando, a crença no místico da vida, afasta do foco o desenvolvimento enquanto espécie; leva-se horda de milhões a erros, que já não dever-se-ia cometer a séculos.  Para citar alguns: a espera da providencia divina, das grandes as menores coisas do cotidiano; a crença na divisão das raças, castas, tribos, nações, (...). 

Todas essas divisões são fundamentadas em crenças, misticismo aliado a fatos peculiares da espécie (os idiomas, por exemplo), como membros de uma mesma espécie reunidos em várias etnias, apenas semelhantes, nunca iguais ou diferentes; e a mais sórdida de todas, a que utiliza a habilidade ancestral mística como ferramenta de dominação e escudo justificativo da formação de seus pequenos grupos de clérigos, senhores absolutos da verdade e vontade do divino entre os homens. Neste grupo enquadram-se todas as religiões criadas pelos homens para controle e exploração de seus pares. É nesse sentido que Karl Marx diz: “A religião é o ópio de povo.”14 Uma potente ferramenta vista e utilizada, desde os primórdios da civilização.

 Então, sendo a(s) religião(ões) ferramenta(s) de dominação, por que crer-se? 

Simples, porque é mais fácil! 

Porque a espécie humana é própria da transcendência. Faz-se arte, e por quê? Qual(is) sua(s) utilidade(s), senão estética(s)?

 Porque acredita-se ser mais. Qualquer coisa mais que o óbvio. É claro, depois de escapar-se centenas de vezes de inimigos maiores e certamente mais ágeis, passa-se a crer que seja-se diferente, por algo mais... Mágico, talvez? Algo que não podia-se explicar nessa fase tão preliminar de existência da espécie. 

Treinava-se para caçar a luz de fogueiras e pela arte transcendiam-se os limites do corpo; exercitavam-se os músculos e melhorava-se o desempenho nas caçadas e na fuga dos predadores; assim acreditava-se no mais evidente: eram os deuses que felizes, com a dança, música e sacrifícios das noites passadas, abençoavam com a vitória. E vitória significava sobreviver mais um dia, uma estação. Significava alimento e salvação do inimigo. Era tudo o que importava. Os deuses eram guerreiros, caçadores, fortes e poderosos como os animais que rodeavam, ou as forças da natureza.

Eram humanos, animais ou eventos naturais, o melhor de todos os mundos, por esse motivo necessitavam habitar em outro lugar que não no meio dos meros humanos. E moravam onde só em sonho (ou na morte) poder-se-ia alcançá-los; nos montes e altos relevos, no fundo dos rios e mares, nos vulcões e nos profundos vales, tórridos desertos ou nas virgens florestas; todos os lugares belos, potentes e inalcançáveis pelo eminente perigo: quem se atrever a visitar os deuses certamente morreria. De fato, os locais eram sempre perigosos e inóspitos, nem de longe havia tecnologia para as empreitadas dos mais céticos, assim era mais fácil acreditar, mais econômico que morrer na busca.15 

Dessa forma, era(é): acredite ou morra. Ser cético sempre foi o pior dos sacrilégios. Não acreditar simplesmente por opção sempre foi encarado com o máximo repúdio. Como se pode ser tão arrogante! Não crer nos deuses e em seus emissários. Homens sempre santos, sábios, poderosos e dominantes. Que com consciência ou por estupidez submetiam toda a tribo aos seus devaneios, a despeito da vontade superior de seus deuses. É claro que sempre com alguma vantagem em seu benefício. 

Ora, esse sábio costumeiramente era fraco e velho, impotente para a maioria dos trabalhos básicos de sobrevivência do grupo, seria facilmente descartado, assim aliava-se a um grupo jovem e forte e formava seu exército arcaico, o braço forte que conduzia a mão amiga e dominante do ancião(ã) sábio.16 

Não que o ancião(ã) sábio não tivesse algo a ensinar. Eles sempre tem. As experiências são importantíssimas ao curso do desenvolvimento de qualquer povo, em qualquer época; contudo, essas experiências como todo conhecimento empírico arcaico é rapidamente repassada ao grupo, em vários estágios simbólicos, ritos de passagens, de acordo com a faixa etária e deve-se lembrar que a vida corria em outro ritmo, bem mais lento, e o conhecimento acumulado era o básico à sobrevivência do grupo primitivo. Assim o ancião(ã) era necessário por um pouco de tempo, a sua sorte maior era o fato de ser raro, visto que a maioria morria, por vários motivos, ainda muito jovem.

O ancião(ã) era precioso por sua raridade, e isso lhe fez buscar outras formas de continuar existindo, uma utilidade mais difícil de ser alcançada, um fim místico, um sacro-ofício. 

O ancião(ã) certamente falou o que todos queriam ouvir. Todos querem continuar de alguma forma. Todos querem continuar mantendo o que conquistaram.  A vida seria muito injusta se não pudesse continuar dono do que tanto sofreu para ter. Não era apenas uma questão moral, era uma questão logística, utilitarista e, sobretudo, econômica. Senão para que a bolsa. Para que acumular o mais que suficiente para o dia. A fome tem limites, os sonhos não. As necessidades são limitadas, os desejos jamais tem fim. Era uma questão de desejar e ter realizado o seu sonho maior.  Manter-se mesmo depois da morte. Continuar a existir a pesar de tudo e de todos. Ser especial. Ter, logo existir; mesmo antes de pensar. 

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O ancião(ã) disse que isso é possível. A vida continua inevitavelmente melhor e tudo a se fazer é submeter-se nesse mundo (plano físico) às vontades, mesmo que absurdas, dos deuses, ditas é claro pelo experiente e bom porta-voz: o ancião(ã) sábio. 

Ele cobrara por isso.  Sua existência primeiro, é claro! Depois algum poder sobre os outros, e além... Só Buda, Jesus ou Maomé o sabem!

 Mas existe um paradoxo: nada se mantém perante o tempo Todas as coisas estão fadadas ao fim. Nada, nem mesmo o universo é eterno. Mas eis a questão: como o primeiro próton surgiu? Como o primeiro sistema do primeiro átomo se formou? Um deus o constituiu? Seja lá como o universo tenha se formado, a verdadeira pergunta será: houve um princípio? Um real princípio? Ou todas as coisas seguem indefinidamente em múltiplos sistemas complexos de eternos recomeço, ou reorganização caótica? 

Talvez jamais tenha a humanidade capacidade necessária à compreensão absoluta de assuntos tão engendrados numa malha de eventos caóticos por essência. Há limitações e o absolutismo, em todas as suas faces, é contrário a natureza de percepção temporal restritiva. A esse respeito já escreveu Einstein (1994), a capacidade cognitiva humana é limitada, mesmo que não se saiba o limite, em um dado momento, por limitações inclusive físico-fisiológicas, a incapacidade ao absoluto conhecimento não se fará reduzir a um mero fator de incremento tecnológico. 

A esse respeito é fácil a dedução, há um limite físico-fisiológico a capacidade cognitiva; sendo assim, jamais se apreenderá o absoluto conhecimento sob qualquer prisma. E nesse ponto nasce o paradoxo da eternidade: (i) A vida não é eterna, segue seu fluxo de eterno recomeço. E a cada novo começo sua matéria assume formas próprias do sistema caótico que lhe condicionou à nova existência; (ii) A eternidade não conserva as formas e seus conteúdos; muito pelo contrário, os reorganiza em padrões caóticos acima e além da compreensão sistêmica de universo humana; (iii) Assim, todas as coisas existentes já existiram e coexistiram sob novas formas e conteúdos, mas apenas em algo que as tornam semelhantes: Suas individuais potências energéticas; que estão além da mera composição molecular e paradoxalmente podem e puderam estar dispersas no corpo universal e, em dados momentos especiais, comprimidos em incontáveis mega-reinícios do tipo big-bangs; (iv) Portanto, tudo é eterno, ao mesmo tempo em que, nada dura para sempre sob formas e conteúdos. Então, as aparências e realidade (a verdade, em sua mais pura essência) são meras representações do eterno e incognoscível universo. Exemplos práticos da errônea observação empírica podem ser vistos rotineiramente. A forma do globo terrestre é suficiente para exemplificar as disparidades capazes de se supor quando limita-se o real às meras aparências percebidas. 

É fato: a terra é redonda; mas durante séculos de existência socialmente organizada a humanidade não percebia este real embriagada pela aparência de seu microcosmo. Afinal, quem ousara dizer que a terra era redonda e girava em torno do sol, quando parado observava a rua plana em frente de sua igreja? Loucura! 

O que salva, um simples fato: a espécie humana é paradoxalmente lúcida e louca. A capacidade de sonhar e ao mesmo tempo de perceber o mundo e seu conteúdo, as formas e as hierarquias atribuídas a tudo: exemplos da transcendência, comum às miríades de tribos, em todos os primatas, já comprovada nos vários ramos da ciência.

 Loucos sim! Fazem arte, amam o que definem como belo, estética mais adequada ao rotineiro consumo de mídias.17 Não se busca a mera utilidade, cotidiana, vital, formadora das civilizações, simplesmente faz-se! Alheios às necessidades, lógicas e definições. A verdade é percebida como a melhor explicação da realidade. Mesmo que essa seja uma mera concepção ontogenética da espécie. Por exemplo, as cores nada mais são que definições, específicas da percepção visual humana, enquanto espécie vivente, de uma das muitas facetas da luz. As cores não são reais, mas são comuns como existentes na realidade. Trata-se de um claro exemplo de “filtro ontogenético” do real, uma fácil explicação da diferença absurda entre o real e a realidade. Esta definida como “definição” daquela, um mero expediente de uma determinada espécie, que por acaso ou não, pouco importa, alcançou o mundo da consciência de sua própria existência: a cognição! Nesse ínterim, a aclamada ciência genérica, como se percebe, abrilhantou-se no Oriente há pouco mais de 10 mil anos, com a primitiva manipulação de plantas e criação de ferramentas, sob um efeito multiplicador, denominado de “vantagem cognitiva”, evidente na espécie humana, mas não, como se pretende, exclusiva desta. 

Apenas a 7 mil a.C., aproximadamente, foram domesticados alguns outros animais  e plantas, bem como descritas, ainda desconexas, as primeiras vozes do racionalismo que, bem a posteriori, lhe dominaria enquanto espécie. 

Entre 4 mil e 3 mil anos a.C., na classificada Idade Neolítica foram estabelecidas as primeiras Cidades-Estado, em pontos diferentes do planeta, tais como na antiga Mesopotâmia, Egito e China. Nesta nova formação social verificou-se a necessidade da “organização formal”, da feitura de Leis protetoras, limitadoras e condensadoras do poder disperso nos agrupamentos; uma verdadeira inovação.18 

E, quanto à inovação, o direito traduziu-se em escrita no Código das doze tábuas, assim escreve Coulanges, em sua obra A cidade antiga (1864):

Não está na natureza do direito ser absoluto e imutável. O direito se modifica e evolui, como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, que se forma e se desenvolve com ela, que juntamente com ela se transforma, e que, enfim, segue sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes, de suas crenças.

[...]

Daí, duas consequências. Em primeiro lugar, a lei não se apresenta mais como fórmula imutável e indiscutível. Tornando-se obra humana, ela se reconhece sujeita a mudanças. As Doze Tábuas o afirmam: ‘O que os sufrágios do povo ordenaram em último lugar, essa é a lei. ’ – De todos os textos que nos restam desse código, não há nenhum que tenha mais importância que esse, nem que marque melhor o caráter da revolução que então se deu no direito.

[...]

Assim, o direito mudou de natureza. A partir dessa época não podia mais conter as mesmas prescrições da época precedente.19

 Ainda divino, ou próprio da realeza, a escrita, das leis que regeriam o povo significou um grande avanço. Ora, poder-se-ia desde então, rogar o cumprimento das regras do jogo. Lutar por algo além do escrito: Lutar por justiça. Ideário de concretude da verdade. Possibilidade de contenção do vasto, em par de esquadros e papel... papyrus...20 ou barro, pouco importava. A regra está escrita. É direito e está posto. É novamente vantagem cognitiva. 

Mas, o que é vantagem cognitiva? 

No discurso genealógico proposto, vale recuperar tal conceito. Assim, com a criação da roda, o homem pôde verificar sua própria fragilidade a partir da observação da utilidade da “vantagem mecânica” que obtera com seu uso. O domínio de uma maior força leva o homem primitivo a considerar a necessidade de outras formas, mais aprimoradas, de obtenção de outras vantagens21 e o possível domínio das forças produtivas naturais. 

Assim, a primeira mudança que partiu da simples observação do esforço no dia-a-dia, e a busca de facilitar o trabalho específico, criam em uma etapa posterior a ideia de domínio de algo maior; a partir do reconhecimento de suas próprias limitações físicas e fisiológicas; ou seja, a partir da quebra de mitos próprios ao sofrimento do trabalho primitivo pela força da cognição humana. 

A barreira cognitiva torna-se assim a primeira a ser vencida. Observar o existente, propor uma pequena modificação no modo de pensar-se o existente, em ato simples cognitivo da espécie humana, cria uma mudança maior no plano objetivo, que o primeiramente projetado. 

A mudança no mundo das ideias tem por matéria o poder de reprodução em escala sempre ampliada de suas pequenas alterações iniciais. Mudar-se a forma de ver o direito positivo como algo imutável, próprio do iluminismo e de suas verdades objetiva e eternas – regras fixas universais almejadas pelos doutrinadores positivistas na busca da ciência do direito – propiciará a flexibilidade e agilidade requeridas pela nova sociedade complexa global instantânea contemporânea. 

Alguns paradigmas devem ser quebrados ao longo do doloroso caminhar que se faz por vir. Mudar, iniciar algo novo nunca foi fácil. O simples restabelecimento de uma ordem, seja ela qual for, enseja às resistências, que nas remotas Savanas Africanas dos antepassados humanos tão importantes foram. Superar esta tendência ontogenética de resistência às mudanças é desafio e meta; caso queira o direito, como conjunto interdisciplinar regulador social, alcançar a sociedade que ele, nas mãos de poucos, idealizou, organizou e ajudou a dominar. O direito atual não dispõe mais da prerrogativa de origem divina de seus antecessores; se não responder às atuais necessidades instantâneas da sociedade global, por puro medo ou “dever divino” de resguardo dos valores do passado; será com o passado, para a tristeza desta sociedade civilizada, enterrado sob os milhares de milhões de toneladas de papel reciclado que foram, pela massa das supercorporações transnacionais, arrancados dos códigos por ele(s) – os direitos – tão brilhantemente formulados. 

A proposta de uma mudança de foco nesta interdisciplinar corrente de conhecimentos e valores humanos que se convencionou a chamar direito pode ser inicialmente explicada a partir de suas conceituações e formas concatenadas de se avaliar o núcleo deste corpo simbólico da Justiça: a Verdade. 

Mas, e quanto à verdade sua definição, ou sua busca. Veja-se o que diz Robert Alexy:

A verdade provisória: a verdade é uma construção histórica, uma produção cultural contextualizada temporalmente. Nem mesmo nas ciências da natureza há verdade inequívoca e incontestável; pois são estas revestidas de consenso fundamentado em regras e critérios de justificação e comprovação de premissas, que lhe confere objetividade racional e, portanto, universalidade, com grande grau de segurança.22  

Nos termos de Alexy, a verdade é provisória, contudo, desde que fundamentada na racionalidade, torna-se confiável. Sendo então a matemática, rica em fundamentos lógicos, seria um nascedouro de verdades? Para René Descartes, não é bem assim.  

Descartes, na obra o Discurso do Método considera a “mãe das ciências”, a matemática, como um reles método... cheio de “supérfluos”, muito abstrata, “sem utilidade evidente”. Veja sua proposição em o Discurso do Método, segunda parte, parágrafo 6º:

Quando era mais jovem, eu estudara um pouco de filosofia, de lógica, e, das matemáticas, a análise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam poder contribuir com algo para o meu propósito. No entanto, analisando-as, percebi que, quanto à lógica, seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar aos outros as coisas já conhecidas, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem formar juízo, daquelas que são ignoradas, do que para aprendê-las. E apesar de ela conter, realmente, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, existem contudo tantos outros misturados no meio que são ou danosos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem ao menos está delineado. Depois, no que concerne à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a assuntos muito abstratos, e de não parecerem de utilidade alguma, a primeira permanece sempre tão ligada à consideração das figuras que não pode propiciar a compreensão sem cansar muito a imaginação; e, na segunda, esteve-se de tal maneira sujeito a determinadas regras e cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que atrapalha o espírito, em vez de uma ciência que o cultiva. Por este motivo, considerei ser necessário buscar algum outro método que, contendo as vantagens desses três, estivesse desembaraçado de seus defeitos [...].23

 Ora, mesmo considerando-se que, quanto à matemática, sua visão de mundo, naquela época, quase consegue entender a profunda essência dessa ciência “natural”, discutida desde Pitágoras, Platão e Aristóteles; pois de fato a matemática transita em regiões fronteiriças do conhecimento humano, entre a filosofia, evidente por seu grau de abstração, artes, com a música, escultura e sua vasta aplicação nas pinturas; além, de sua obviedade científica, com proposituras falseáveis nas inegáveis características de certeza que impõem seus enunciados. 

Mesmo assim, é inconcebível reduzi-la a método, meramente a serviço das demais ciências, pois retém em si, por seu vasto corpo teórico e metodológico, os meios mais eficazes para concepção e classificação de um conhecimento humano qualquer como ciência, em sentido estrito. 

Considerando a época, os meios e sua formação, o Método de Descartes revolucionou todo saber, inclusive o científico. E ainda o faz. Contudo, bem pior, no Discurso do Método (1637), como diz Damásio (2005), porque ainda não superado, é o seu “erro” que obscurece tragicamente o entendimento das “raízes da mente humana em um organismo biologicamente complexo, mas frágil, finito e único.”24 Influencia e afeta, portanto, toda a construção do pensamento filosófico ocidental com a conhecida afirmação: “penso logo existo” firmando uma:

[...] separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro.25

 Desse modo, inverte a ordem lógica e factível da existência humana; pois eu existo, logo penso! A existência precede a razão; por ser esta produto da estrutura cognitiva e de sua funcionalidade, portanto, ocorre após o ser. Diz Descartes na quarta parte, parágrafo 1º do Discurso do Método:

[...] E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava.26 

Claro, considerando-se a época, suas limitações, foi um grande avanço. O penoso assenta-se em aceitar-se como verdade imutável as considerações do Discurso do Método de Descartes. A aplicação de sua lógica linear de observação é válida na atualidade, mas o acúmulo do conhecimento humano em suas esferas impõe o reconhecimento de suas imprecisões e inaplicabilidades generalizadas.

 O uso de suas deduções reducionistas no campo do direito, como faz no positivismo jurídico, é no mínimo desastroso. Pois, mesmo à época recente de Kelsen, poder-se-ia utilizar ferramentas lógicas mais adequadas ao complexo fenômeno jurídico. Aristóteles, nascido em 384 a.C., sob o aspecto do discurso racional, em sua lógica do discurso filosófico, seria mais pertinente.27 

Mas, quanto à verdade, o que é a verdade? Onde se encontra o seu caminho? 

A essas questões suscitam séculos de incertezas e definições filosóficas, mas sem considerar-se os conceitos bíblicos de verdade, pelo simples cunho científico, pode-se, aos novos meios da ciência médica nas técnicas de neuroimagem, chegar-se em breve tempo ao local da verdade nunca antes alcançado. 

Trata-se da localização na massa cerebral humana dos centros neurológicos de cognição ativa; quando do questionamento acerca de uma “verdade pessoal” precisa, em comparação a uma situação hipotética de “verdade procurada” ou “verdade real”. 

Ou seja, a verdade seria não a constatação do fato em si, genérico e observável, mas a forma e a localização no sistema individual cerebral do local preciso de armazenamento e interrelação da memória; a própria cognição subjetiva das ideias. 

A verdade não será mais conceituada como a devida narrativa iptis litris do fato objetivo; mas, como este fato é processado e armazenado pelo individuo em seu sistema cognitivo central. Contudo, isso não significará que as relações interpessoais sejam desprovidas da regência jurisdicional, ocorrerá uma mudança de foco, ou melhor, uma readaptação ao primaz do Direito enquanto mecanismo cultural que instrumentaliza o Estado na adequação e pacificação do corpo social, na eterna busca da justiça. 

A justiça será encarada como “o bem da vida” alcançado na interrelação complexa dos sentidos e desejos de cada individuo, perante o seu semelhante e no bojo comunitário que participa. Será a conjunção da verdade subjetiva perante o escopo do sistema jurídico estabelecido, pela defesa e continuidade da espécie humana em seu habitat e além deste. 

A verdade de cada um, localizada e confirmada cientificamente pelas novas técnicas de neuroimagens no mapeamento ontogenético da espécie humana (verdadeiro Atlas neurológico), será a base na aferição do grau de culpabilidade e de suas excludentes. O critério impreciso, hoje e desde sempre, massificado pelas sociedades será eliminado pela possibilidade científica de alcance da verdade cognitiva do individuo. 

Nesse sentido, bem diz Thomas Hobbes, na obra Leviatã, que “os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações.”28 Extraindo-se do ensinamento sua essência, certamente se identificará a veraz e contundente evidência, de que a verdade reside em cada um da espécie humana; há de se localizar apenas suas coordenadas. 

Mas como se processa a verdade subjetiva? 

A diferença básica entre a verdade subjetiva e seu contrário repousa na correlação cognitiva processada pelo individuo quando questionado sobre um dado fato observado. Assim, para o individuo a verdade é a relação direta e coerente entre o fato armazenado em sua memória e o expressamente declarado por este. 

Deste modo, havendo a voluntária distorção entre o dado armazenado na memória e o efetivamente declarado, o individuo mente; pois se utiliza de outros argumentos, diversos dos armazenados para o fato específico em sua memória, objetivando distorcer este fato e criar algo novo, mesmo que intrinsecamente relacionados; cria, na verdade, um fato novo, que requererá novo local para armazenar-se em seu sistema cognitivo central; exigindo, portanto, um maior esforço cognitivo; que por sua vez se revela nas imagens produzidas por máquinas de ressonância magnética funcional (MRI). 

Toda essa movimentação cognitiva é observável nas atuais técnicas de neuroimagens, evidenciando de forma precisa e estatisticamente comprovada (mapas ontogenéticos da espécie humana), com alto grau de certeza, a veracidade das informações prestadas pelo sujeito examinado. Quem mente, quando o faz, utiliza-se mais de seu cérebro.

 As decisões jurisdicionais fundamentadas por critérios subjetivos do julgador poderão ser legalmente limitadas aos parâmetros não passiveis de averiguação pericial. Dentre estes os relativos ao evento denominado de “mentira sincera”. 

A “mentira sincera” caracteriza-se pela não correlação direta do fato observado e seu efetivo registro memorial subjetivo. O sujeito observador ou autor da ação factual, por motivos múltiplos (sejam de ordem patológica; por uma limitação estrutural do cérebro devido às etapas do desenvolvimento orgânico comum à espécie; ou por viés simbólico-cultural limitador) não registra em seu mecanismo cognitivo o fato concreto, mas uma mera versão pessoal e, portanto, impregnada por seu conjunto simbólico vivencial; que para ele é registrada como verdade. 

Um exemplo disso seriam as crianças que acreditam piamente em estórias fantásticas, principalmente quando entrelaçadas por episódios verídicos; elas simplesmente não conseguem notar os limites lógicos do fato; devido à etapa, em que se encontram, de seus desenvolvimentos cognitivos. 

A obra de Claude Lévi-Strauss (1967) procura revelar a relação existente entre a maneira como o ser humano vive e aprende a realidade e como organiza de forma significativa os dados dessa percepção, sua própria verdade.

 Os estudos nessa área avançam e as questões éticas serão suscitadas brevemente nos Tribunais, que, se não preparados, ou ao menos informados, continuaram a cortar a criança ao meio, em suas semanas premiadas de conciliação.29 

O direito e a cognição humana estão inquestionavelmente interligados e são mutuamente dependentes. Pois, se de um lado encontra-se o magistrado apto e legitimado a julgar segundo seu livre convencimento motivado, do outro estão todos os outros, aptos e desejosos, segundo as normas do próprio injusto sistema, a mentir e valer-se do melhor discurso e das mais apuradas técnicas isoladas do “Positivo Direito Estabelecido” que o dinheiro possa pagar. 

Edgar Morin (2004), em sua obra “A cabeça bem-feita: reformar a reforma e reformar o pensamento”, fundamenta as definições para o estabelecimento de um “Princípio Cognitivo”, aplicado na compreensão sistêmica da sociedade principalmente no tocante a concepção de uma “Democracia Cognitiva”; aqui, aplicada na busca por um “Direito Cognitivo”.

2.1  AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS MODELOS TOTALIZANTES 

Sociologicamente pode-se vislumbrar o fracasso dos modelos totalizantes como tentativas de compreensão e condução da sociedade complexa à abertura do espaço a uma nova forma de fazer-se ciência, e de fazer-se o direito. Há novos e desafiantes paradigmas, que despontam em busca de um modelo de totalidade, onde aspectos hegemônicos não são mais procurados, mas sim, análises de conjuntos dos vários elementos componentes deste todo; ou seja, a estética é subjugada, em fim, pela ética na construção “dos direitos”.

 A própria complexidade da sociedade, cada vez mais plural e eclética, é premissa deste estudo; pois, renega modelos gerais que tentam seu esquadrinhamento simplista; haja vista tais modelos, apesar de abrangentes, e esteticamente belos, não conseguirem romper as barreiras da pluridisciplinaridade necessária ao dinamismo relativista do desenvolvimento social vivenciado neste “mundo da vida”, em termos transconstitucionais de Marcelo Neves (2008). 

Essa forma de fragmentação e totalidade que invade o fazer científico é bem representada na “Nova História” proposta por Jacques Le Goff (1994), na qual orienta à cooperação entre as várias ciências humanas (Sociologia, História, Antropologia, Psicologia, Biologia, Economia,..., e o direito) na busca solidária do conhecimento de um homo in totum.30 

A quebra destas barreiras permite, ao intérprete do direito, ampliar a visão da relatividade e a variabilidade dos fenômenos sociais, de forma integrada, para compreensão do indivíduo, sem violentar a dignidade ou, insular, a complexidade inerente às sociedades e aos indivíduos, na intersubjetividade.31 

Contudo, esta contextualização das partes a um todo esbarra em forças monolíticas, tanto filosóficas quanto científicas, que entravam a compreensão da complexidade nos pilares de certeza,32 pelo “Le mépris du sage”33 em sustentar antigos paradigmas, legitimando cada vez menos os fenômenos sociais e jurídicos, que caminham em um só corpo na sociedade atual, com sentidos contraditórios e tendências opostas. 

São fatos sociais paradoxais os quais alertam à necessidade da promoção de uma Democracia Cognitiva.34 A obsessão pela fragmentação do saber na máxima positivação das normas e princípios (direito posto e pressuposto) provoca divisão entre os intelectuais; de um lado põem-se os esperançosos, que sucumbem à retórica da normatização em prol de políticas desejáveis à massa dos cidadãos, cultivando “preconceitos” em favor de uma causa nobre. 

Do outro lado, os cautelosos, que não se sentem capazes de enfrentar uma ideia já “positivada” pelos líderes e formadores da opinião mundial (o mundo “político”, no sentido pejorativo atribuído à palavra). Ambos não veem, todavia, que “As vestimentas intelectuais do armário do rei não cobrem tanto como ele(s) pensa(m).”35 

Apenas a dor e a incerteza contidas nas palavras de Einstein36 seriam, de certa forma, suficientes para fazer entender aos “Expertos”37 que o poder sublime no direito, descomprometido com a verdade, em qualquer Estado positivado como uma “ciência natural – ou divina” sem qualquer compromisso com a diversidade, com a ética e com a vida, é capaz de lhes ceder, honoris causa, qualquer título de mãos dadas à extinção da vida que lhe é fonte e único sentido. Já bem dizia o pensador: “o coração tem razões que a própria razão desconhece.”38 Fazer-se, pensar-se direito com consciência em busca de criar uma visão holística capaz de suportar a pressão de uma nova reentrada à “alma humana”, jamais contida por barras, com razão, emoção, saber e fé aliados e interretroativos é missão de todos, delegada ao direito em seu poder regulador intersubjetivo e transnacional. 

Todas as forças, todas as dimensões e ciências unidas e cooperadas em um só e múltiplo objetivo: trazer à vida o difícil começo39 de uma nova forma de ver-se as velhas contradições que mudaram o mundo nos últimos quinhentos anos e fizeram do direito, antes o divino, agora o distante, um novo paradigma. 

Afora de uma hiperespecialização totalizante, impeditiva de ver-se o global. Retalhamento em notar-se o complexo (tecido junto).

O desafio da globalidade é também um desafio de complexidade. Existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existem em um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes.40  

 Uma visão integrada para percepção do humano em toda sua integridade. sem totalidades dogmáticas. A cultura modificando a estrutura genética e sendo por esta modificada; assim como observado nas vantagens cognitivas; nem caos nem acaso; nem utopia nem distopia. A luz e a incerteza quântica como últimas e definitivas fronteiras, absolutas neste insólito universo é a busca incansável por compreender a lógica que gera o sistema jurídico atual e instrumentalizar o seu sucessor, um sistema jurídico complexo, includente.

2.2  O POSITIVISMO JURÍDICO: crítica à Teoria Pura do Direito 

No sistema jurídico positivo adotado genericamente no mundo ocidental e nas relações internacionais, a interação dos códigos legais e constitucionais é obtida de forma linear, ou cartesiana.

 Apesar dos avanços obtidos por Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, por exemplo, a fórmula da hierarquia das fontes, regida pela Constituição, o que possibilita as análises constitucionais dos diversos códigos, e em última instância (ou dialeticamente, em primeira instância) os avanços nas organizações dos diversos Estados Nacionais, seu padrão lógico kantiano de busca pela coerência sistêmica meramente formal, afastou e afasta todo ordenamento jurídico de seu primaz objetivo de existência: a justiça. 

Nessa lógica segue os positivistas a considerar a linearidade como regra da própria dinâmica axiológica do direito, que mesmo com uso do viés constitucionalista, o reducionismo, acaba por englobar dois ou mais microssistemas para interpretação e aplicação efetiva da norma jurídica; como por exemplo, a interação da Lei penal no conjunto bidimensional obtido entre os Códigos Penal e Processual Penal, chegando-se, no máximo atualmente a conjunção constitucional, que cria uma nova análise sistêmica; mas mesmo assim, não escapa da concepção linear positiva. 

As limitações neste tipo de análise linear são as mais enumeradas possíveis, pela própria limitação do modelo lógico-explicativo adotado.41 

Neste modelo jurídico as soluções possíveis são limitadas, hierarquizadas e rotineiramente conflituosas (as antinomias jurídicas).42 Haja vista que, os microssistemas tendem a se autorreproduzir nas diversas esferas do poder público (e modernamente nos cômputos privados das grandes corporações transnacionais) fomentando suas expansões ad infinitum.43 

Tornando-se ainda mais morosos, confusos e humanamente imponderáveis, com a pluralidade de normas (direito posto), traduzidas por Códigos, Consolidações, Leis, Súmulas, Decretos, Resoluções, Portarias todos divididos e subdivididos em artigos, parágrafos, incisos, alíneas, em fim, um enorme rol de obrigações e direitos, que se entrelaçam inclusive nos campos exógenos via tratados e acordos internacionais. A entropia sistêmica assim o conduz: fechado e crescente.44 E, a desregulamentação é mais nefasta ainda, devido à lógica instalada no sistema e sua práxis, a emenda sai pior que o soneto. 

Isso sem citar-se as demais fontes indiretas, que por vista simples, em um único Tribunal, facilmente se observará as decisões em assuntos semelhantes as mais contraditórias possíveis. Semelhantemente ao que ocorre com sua fonte primária, a Lei, as propostas de uniformização jurisprudencial costumam produzir verdadeiras linhas de montagem fabris, facilmente acessadas em “todos” diários da justiça neste país, um verdadeiro direito à La Prêt-à-porter.45 

Em suma, o sistema jurídico atual, fundamentado no positivismo jurídico, está fadado ao “complexismo” imponderável, legalismo exacerbado e à insegurança jurídica consequente, que ele tanto busca afastar, com a feitura desenfreada de suas normas (uma verdadeira inflação normativista). 

Para Kelsen apud Lenio Streck, isto não ocorre, visto ser o sistema positivado eficiente em corrigir suas “aparentes antinomias”; pois afirma:

[...] de acordo com o sistema de normas primárias que propõe, as únicas autorizações jurídicas possíveis são as dirigidas aos órgãos encarregados da aplicação das sanções. Ou seja, as normas primárias, que prescrevem, em certas condições ou não, a privação a um sujeito de seus bens por meio de força, ou não, são normas genuínas, o que significa que uma ordem jurídica está integrada só por elas. Quanto às normas secundárias, são meros derivados lógicos das normas primárias, e sua enunciação só tem sentido para fins de uma explicação mais clara do direito.46

 Vale salientar conforme Streck anuncia, esta concepção de Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito é invertida em sua obra: Teoria Geral das Normas. Ou seja, assim, para os positivistas, não há lacunas técnicas no direito, sendo meramente retóricas tais lacunas, de cunho axiológico; como explica Ferraz Júnior, no direito brasileiro, na cominação dos artigos 4º da LINDB (antiga LICC) e 126 do CPC, dada a obrigação de decidir do magistrado, o ordenamento, dinamicamente se completa, pois utiliza-se da autorreferência, num modelo controlado e circular.47 

No mesmo sentido Perelman (1996), citado por Kelsen que o complementa, assegura que, no direito positivo não há obscuridade ou insuficiência; apenas com base numa autorização positivada, o juiz teria a permissão para aplicar um princípio de equidade em sua decisão do caso concreto; portanto, ele (o magistrado) não completa o direito vigente, ele o aplica, sendo, de fato, um mero “operador” da máquina-sistema jurídica.48 

Completa Streck,49 que a LINDB, pautada na interpretação do CC/2002 e nos parâmetros gerais para uma aplicação “geral” do direito, agora se lê como, de fato, uma Lei de introdução ao próprio direito brasileiro. Contribuindo-se para uma resistência de um modelo positivista em claro conflito com o novo constitucionalismo. Desse modo, jamais se terá a constitucionalização do direito civil, mas, ao contrassenso, ter-se-á uma “codificação” da Constituição, um pleno pós-positivismo ferramental, ainda mais primitivo e ingênuo.

 Neste sentido, justifica-se a busca de uma interação e complementaridade destas múltiplas e complexas redes de conhecimento científico, filosófico, estético e simbólico, para obtenção de um sistema jurídico complexo, organizado a partir da hermenêutica dos princípios jurídicos transnacionais e intersubjetivos. 

Dessa forma, o juiz (julgador – intérprete legítimo das ciências do direito, segundo Eros Grau) não mais deverá ser visto como “escravo da Lei”, “operador da máquina-sistema jurídico”; mas, com uso de todo arsenal transdisciplinar disposto ao auxílio do direito, será visto como “arqueólogo da verdade”, gênese do ideal de justiça perseguido pelo povo, em qualquer cultura, época e local. 

Necessário, todavia, será ter-se “coragens” (termos de Morin) em questionar-se o sistema jurídico hegemônico, suas contingências políticas numa sociedade global e locais extremamente desiguais e conflituosas, que insistem em pregar a isonomia como regra democrática, e a própria democracia, como expressa, sendo-lhe única fuga e meio de manter-se o acabado tecido social ainda passivo a remendos.

 No tal ritmo que se faz, a possível democracia se fará indubitavelmente sob escombros dos direitos fundamentais e na regência de lamentos ecoados das masmorras dos tribunais de exceção, em glórias a um deus remanescente qualquer. 

Os estimados exemplos deflagrados nos guetos de inteligibilidade jurídica ora assistidos já amenizam as perspectivas sombrias, mas necessitam do poder multiplicador da educação, sobretudo das instigadas nas cátedras universitárias e todo seu poder transformador. Suscitar questões sobre direitos fundamentais e sua relativização ao computo do bem maior social é questão delicadíssima e carente de estrutura confiável e apropriada ao debate, que encontra seu melhor prognóstico nas universidades. 

Reavaliar o papel social da democracia representativa, do sufrágio universal, do sistema de repartição dos Poderes na República e a feitura das normas; até mesmo o papel da família no quadro educação e segurança; por exemplo, são questões a serem suscitadas,

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Sobre o autor
Daniel Bevenuto

Advogado e Economista. Pós-graduado em Direito Constitucional e Tributário; Direito Administrativo e Gestão Pública pela Universidade Potiguar – UnP, Natal/RN.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BEVENUTO, Daniel. Direito cognitivo: uma (re)análise (necessária) entre Habermas e Luhmann. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3801, 27 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25949. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Advogado e Economista. Pós-graduado em Direito Constitucional e Tributário; Direito Administrativo e Gestão Pública pela Universidade Potiguar – UnP, Natal/RN.

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