Duas legislações promoveram alterações na seara penal que têm repercussões processuais penais no que tange à Prisão Temporária regulada pela Lei 7.960/89, mas não deram a devida atenção a essa necessária visão sistemática do ordenamento jurídico, de forma a provocarem sérias dúvidas quanto à aplicabilidade do instituto processual sob análise.
A primeira delas foi a Lei 12.720/12 que criou causas de aumento de pena nos crimes de homicídio e lesões corporais quando cometidos por milícia privada ou grupo de extermínio. Também trouxe a lume o novo crime de “Constituição de Milícia Privada” (artigo 288 – A, CP). A segunda foi a nova Lei de combate ao Crime Organizado (Lei 12.850/13) que revogou a Lei 9.034/95 e criou o crime de “Organização Criminosa” em seu artigo 2º., com a definição desta em seu artigo 1º., § 1º. Note-se que a Lei 9.034/95 apenas tentava (sem sucesso) definir organização criminosa e explicitava consequências e institutos penais e processuais penais para a investigação, o processo e o cumprimento de pena nessas circunstâncias, sem jamais erigir um tipo penal consistente na formação de uma organização criminosa, tarefa esta que coube tão somente à atual Lei 12.850/13. Também alterou a redação do artigo 288, CP, mudando o “nomen juris” do antigo crime de “Quadrilha ou Bando” para “Associação Criminosa” e passando a exigir apenas 3 ou mais pessoas como componentes do concurso necessário e não mais o mínimo de 4 integrantes.
Acontece que a Lei de Prisão Temporária (Lei 7.960/89) prevê um rol taxativo para os crimes em que cabe o decreto dessa constrição provisória da liberdade para fins de investigação criminal. Esse rol está em seu artigo 1º., inciso III, alíneas “a” a “o”. E nesse grupo de crimes está previsto o de “Quadrilha ou Bando” (artigo 288, CP) então em voga (artigo 1º., III, alínea “l”, da Lei 7.960/89).
Durante a vigência da Lei 9.034/95, de acordo com seu atrapalhado artigo 1º., sempre houve séria confusão entre uma simples “Quadrilha ou Bando” e a “Organização Criminosa”. É claro que essa confusão nunca foi chancelada pela melhor doutrina e jurisprudência, mas ao menos era fato que o citado artigo 1º., da Lei 9.034/95 mencionava em seu texto a “Quadrilha ou Bando”, não havendo maiores dúvidas quanto à possibilidade de decreto de Prisão Temporária para a investigação de crimes que estivessem de alguma forma ligados àquela legislação hoje revogada. No entanto, a temporária seria decretada com base no reconhecimento da “Quadrilha ou Bando” e não em algum crime de “Organização Criminosa” que, como já visto, sequer existia naquela época.
Pois agora vem o legislador e prevê o crime específico de formação de uma “Organização Criminosa” no artigo 2º., da Lei 12.850/13 e não altera em nada a Lei de Prisão Temporária para acrescentar a possibilidade dessa prisão provisória para essa espécie de investigação. Continua prevendo apenas a já inexistente “Quadrilha ou Bando” e não prevê a possibilidade de temporária para a “Organização Criminosa”.
Constata-se que a Lei de Prisão Temporária está totalmente desatualizada em sua redação, usando um “nomen juris” extinto e não prevendo a possibilidade de constrição para uma modalidade de macrocriminalidade para a qual o instituto seria de grande valia.
A Lei 12.850/13 deveria ter promovido a necessária alteração na Lei 7.960/89, atualizando-a de forma a preservar a proporcionalidade, razoabilidade e legalidade. Pecou a Lei 12.850/13 por insuficiência protetiva, vez que sua omissão acaba por impedir o uso de instrumento legal importante para a investigação de organizações criminosas. Isso porque, em se tratando de medida constritiva de liberdade, ainda que processual, faz-se mister a previsão legal explícita. Tal como descrito por Delmanto Júnior, há necessidade de “tipicidade processual penal”. [1] Por isso o rol do artigo 1º., III, da Lei 7.960/89 é taxativo e não admite interpretação ampliativa ou analogia. [2]
Para encerrar as considerações acerca das lacunas deixadas pela Lei 12.850/13 é necessário observar que ela também alterou o crime de “Quadrilha ou Bando”, previsto no artigo 288, CP. Mudou o “nomen juris” para “Associação Criminosa” e passou a ser menos exigente quanto ao concurso necessário (de no mínimo 4 para no mínimo 3 pessoas para configuração, conforme acima já anotado).
Ocorre que novamente se esqueceu o legislador de atualizar a Lei de Prisão Temporária, a qual anacronicamente ainda se refere ao extinto crime de “Quadrilha ou Bando”. E aí surge outra dúvida: poderá ser decretada a Prisão Temporária para fins de investigação criminal de “Associação Criminosa”, uma vez que a legislação respectiva menciona a expressão “Quadrilha ou Bando” e não “Associação Criminosa”?
Uma primeira pista para a solução desse enigma criado pela inépcia legislativa é a constatação de que quanto ao crime de “Quadrilha ou Bando” não se operou “Abolitio Criminis”, mas apenas “continuidade normativo – típica”, pois aquilo que era antes crime continua sendo. Aliás, houve “novatio legis in pejus”, já que a partir da Lei 12.850/13 (artigo 24) passa a exigir-se menos integrantes para o concurso necessário.
A partir dessa constatação, percebe-se que o legislador, ao elaborar o dispositivo do artigo 1º., III, “l”, da Lei 7.960/89 colocou no parêntesis o artigo 288, CP, de forma que a expressão “Quadrilha ou Bando” restou ligada ao dispositivo de lei, o qual não se alterou em termos de numeração e se manteve com relação ao conteúdo, chegando mesmo a ampliar-se, conforme demonstrado linhas acima. Assim sendo, houve mera alteração de “nomen juris”, cuja formalidade não tem o condão de obstar o uso da Prisão Temporária ao crime de “Associação Criminosa”, o qual nada mais é do que uma nova modalidade daquilo que se conhecia por “Quadrilha ou Bando” ampliada. A situação é completamente diversa da falta de previsão que acontece com o crime de organização criminosa previsto no artigo 2º., da Lei 12.850/13.
Por fim a Lei 12.720/12 criou o crime de “Constituição de Milícia Privada” (artigo 288 – A,CP) e incrivelmente também olvidou-se de alterar a Lei de Prisão Temporária, prevendo a possibilidade de seu decreto para essa espécie delitiva. Novamente impõe-se a questão do rol taxativo da Lei 7.960/89 que veda ampliação ou analogia, de modo que não é viável o decreto da prisão provisória em estudo nesses casos.
Observe-se que dando um passo atrás e vislumbrando a questão como um todo se percebe a criação de um verdadeiro conflito entre a proporcionalidade, a razoabilidade e a legalidade. Esses princípios, analisando o conjunto da questão estudada, acabam colidindo. Isso porque, se é possível, ao menos através de uma interpretação minuciosa do artigo 1º., III, “l”, da Lei 7.960/89 em cotejo com o novo formato do artigo 288, CP, concluir ser possível o uso da temporária para a investigação das “Associações Criminosas”, o mesmo já não é viável, seja para o crime de “Organização Criminosa” (artigo 2º., da Lei 12.850/13) e de “Constituição de Milícia Privada” (artigo 288 – A, CP). É o Princípio da Legalidade, aplicado às medidas processuais constritivas que impede isso. Mas, concomitantemente ocorre uma desproporção e uma falta de razoabilidade, já que se tem um ordenamento em que para um crime menor (“Associação Criminosa”) há permissivo de uma medida constritiva grave, enquanto que para crimes da mesma natureza e de muito maior potencial lesivo (“Organização Criminosa” e “Constituição de Milícia Privada”), não há possibilidade de uso da mesma medida!
No entanto, a proporcionalidade ou a razoabilidade neste caso não são fortes o suficiente para superar a garantia de legalidade que impõe a taxatividade do rol dos crimes para os quais cabe a Prisão Temporária. A situação vivenciada é deveras preocupante e necessita de urgente atuação legislativa para colmatar as lacunas apontadas neste trabalho, solucionando a desproporção e irrazoabilidade que está posta em nossa legislação. Enquanto isso não se opera, a única hipótese de decreto de temporária em casos de “Organização Criminosa” ou “Constituição de Milícia Privada” será por meio dos crimes a serem eventualmente perpetrados pelos respectivos grupos delinquentes para os quais caiba expressamente o decreto da temporária. Por exemplo: se uma organização criminosa se dedica ao tráfico de drogas, à extorsão, ao roubo, à extorsão mediante sequestro etc. Em suma, a Prisão Temporária nesses casos somente será cabível por reflexo e não independentemente para a investigação específica da “Organização Criminosa” ou da “Constituição de Milícia Privada”. Essa é uma solução provisória e precária, considerando que tais crimes se perfazem com a mera formação dos grupos, independentemente de cometimento efetivo dos crimes cogitados.
Enfim, segundo um ditado russo apócrifo, “um idiota é capaz de criar muito mais perguntas do que uma multidão de sábios é capaz de responder”. Imagine-se isso ampliado para um legislativo recheado de ineptos, criando leis lacunosas e contraditórias, geradoras de dúvida e insegurança jurídica. É a lamentável realidade vivenciada pelo povo e pelos sacrificados operadores, estudiosos e estudantes do Direito pátrio.
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Garantismo, legalidade e interpretação da lei penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 67, p. 212 – 232, jul./ago., 2007.
Notas
[1] DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Garantismo, legalidade e interpretação da lei penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 67, jul./ago., 2007, p. 218.
[2] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013, p. 405.