No dia 05 de agosto de 2013 foi publicada a Lei n. 12.850/2013, relativa ao crime organizado, a qual entra em vigor 45 dias após sua publicação. Ela toca diretamente com as organizações criminosas integradas por policiais, como grupos de extermínio, milícias, esquemas de corrupção e acobertamento à prática criminosa. Infelizmente a literatura sociológica indica que tais práticas não são raras no Brasil mesmo após um quarto de século da Constituição Cidadã[1].
A nova lei prevê em seu art. 2º, § 7º, o seguinte:
§ 7º Se houver indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta Lei, a Corregedoria de Polícia instaurará inquérito policial e comunicará ao Ministério Público, que designará membro para acompanhar o feito até a sua conclusão.
Uma análise rápida do dispositivo poderia dar a impressão de que a investigação de crimes praticados por policiais apenas poderia ser conduzida pela Corregedoria de Polícia, ou seja, não caberia a investigação direta pelo Ministério Público. Essa interpretação não é correta. Vejamos.
A possibilidade de o Ministério Público esclarecer desvios praticados por policiais deriva diretamente do texto constitucional (CRFB/1988, art. 129, II, VI e VII), conforme diversos precedentes do STF (STF, HC 97969, rel. Min. Ayres Britto, 2ª T., j. 1 fev. 2011, DJe-096 de 20 maio 2011; STF, HC 94173, rel. Min. Celso De Mello, 2ª T., j. 27 out. 2009, DJe-223 de 26 nov. 2009; STF, HC 91613, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T., j. 15 maio 2012, DJe-182 17 set. 2012). A possibilidade de investigação direta pelo Ministério Público possui regulamentação expressa na LC n. 75/1993, especialmente em seu art. 8º, ainda que seja recomendável o advento de uma norma de regulamentação procedimental (especialmente sobre os prazos e o controle do arquivamento), mas cuja ausência não impede a atividade, conforme os já citados precedentes do STF.
Essas normas devem ser interpretadas em consonância com os diversos tratados internacionais sobre o controle externo da atividade policial que recomendam fortemente que haja uma investigação conduzida por órgão independente da estrutura policial, de forma a assegurar uma efetiva accountability do possível desvio policial. Há diversas recomendações de órgãos ligados à ONU relacionados à necessidade de criação de investigação independente do desvio policial com poderes de investigação autônoma[2].
Elas estão previstas no art. 8.c do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação das Leis, da ONU (Res. n. 34/169, de 17 dez. 1979); Princípios Orientadores para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei da ONU (Resolução n. 1989/61), seção I.B, §§ 3º e 4º; Declaração sobre a Proteção de todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, art. 8º; Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, art. 12 e 13; Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra Tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, art. 20; Princípios Relativos a uma Prevenção Eficaz e Investigação das Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias ou Sumárias, da ONU, art. 9º; Conjunto de princípios para a proteção de todas as pessoas sujeitas a qualquer tipo de detenção ou prisão, art. 7.2 e art. 33; Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, da ONU, art. 22 c/c art. 6.II.f e art. 23. Por sua relevância, ver especialmente o art. 22 do último diploma citado (Princípios básicos...):
Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem estabelecer procedimentos adequados de comunicação hierárquica e de inquérito para os incidentes referidos nos princípios 6 e 11 f) [uso da força com resultado lesão corporal ou morte, ou o uso de arma de fogo mesmo sem resultado lesivo]. Para os incidentes que sejam objecto de relatório por força dos presentes Princípios, os Governos e os organismos de aplicação da lei devem garantir a possibilidade de um efectivo procedimento de controlo e que autoridades independentes (administrativas ou do Ministério Público), possam exercer a sua jurisdição nas condições adequadas. Em caso de morte, lesão grave, ou outra consequência grave, deve ser enviado de imediato um relatório detalhado às autoridades competentes encarregadas do inquérito administrativo ou do controlo judiciário. (grifo nosso)
Essas diversas recomendações foram ampliadas em alcance e sintetizadas em exposição num recente manual do Escritório para Drogas e Crimes da ONU. Dentre os elementos chave para a accountability policial recomendados pela ONU estão (UNODC - United Nations Office on Drugs and Crime. Handbook on police accountability, oversight and integrity. Nova Iorque: United Nations, 2011, p. iv):
Monitoramento das ações e operações policiais tanto pelos dirigentes policiais quanto por órgãos externos.
Procedimentos de reclamação, admissíveis tanto diretamente para a polícia quanto para corpos independentes.
Procedimentos e diretrizes justos e efetivos sobre como lidar com o desvio policial, incluindo regras disciplinares e criminais, adequada capacidade de investigação, procedimentos para a punição e para as respectivas impugnações.
Um órgão independente para supervisionar esses procedimentos.
Apesar de todo esforço e seriedade de inúmeras Corregedorias de Polícia, atualmente os corregedores não possuem independência na função, ao contrário, são demissíveis ad nutum pelo chefe de Polícia ou pelo secretário de segurança pública, o que significa que se sua atuação começar a incomodar a cúpula de poder, poderão ser sumariamente retirados do cargo (como já tivemos oportunidade de testemunhar no DF). De qualquer forma, há sempre uma forte resistência de investigar desvios praticados por outros delegados de polícia, diante de um forte sentimento de fraternidade profissional. Esse cenário é reforçado pelo relatório do inspetor internacional da ONU, Alston, ao Brasil[3]:
Este Inspetor Especial verificou que as investigações conduzidas por policiais, relativas a mortes praticadas por policiais, são sempre inadequadas. [...] As Corregedorias de Polícia não são independentes e usualmente não são capazes de investigar de forma eficiente os homicídios praticados por policiais. Nesse tema, o Inspetor Especial saúda o plano governamental, descrito na informação recebida pelo Governo Federal, para se formular propostas de melhorar as condições de trabalho das Corregedorias, incluindo torná-las “mais profissionais, autônomas, e independentes” e para se criar uma carreira separada de policiais de corregedoria.
Este Inspetor Especial verificou que o Ministério Público é uma instituição largamente respeitada e que, onde existe progresso contra a impunidade de policiais, os Promotores de Justiça tiveram um papel central. [...] Este Inspetor Especial recomendou que a Polícia Civil consulte-se com os Promotores desde o início de uma investigação de um homicídio praticado por policial, e que os Promotores conduzam investigações independentes quando um policial estiver envolvido em um homicídio, bem como que a prerrogativa dos Promotores de conduzirem sua própria investigação seja clarificada e afirmada. [...] Este Inspetor Especial saúda a informação prestada pelo Governo de que “atualmente a maioria das decisões judiciais favorece as investigações conduzidas pelos Promotores”.
Um dos corolários do exercício da atividade de controle externo da atividade policial é a possibilidade de o órgão controlador investigar os eventuais desvios do órgão controlado. Não há controle sem possibilidade de esclarecimento das situações desviantes. A possibilidade de haver uma investigação independente do desvio policial é um pré-requisito essencial para que o processo global de controle da atividade policial seja socialmente percebido como legítimo, o que, aliás, fomenta a pré-disposição do público em efetivamente denunciar o desvio policial.
Interessante observar que quando se realiza pesquisa com a expressão “controle externo da atividade policial” no site de jurisprudência do STJ, a grande maioria dos casos julgados está relacionada à possibilidade de o Ministério Público realizar investigações de crimes praticados por policiais, bem como de realizar investigações independentes no caso de suspeita de possível omissão da autoridade policial, o que indica que o exercício do controle externo está intimamente relacionado com essa atividade de fiscalização através da investigação do desvio policial. Ver uma síntese dessa perspectiva:
[...] 2. Em se tratando, porém, de procedimento com o fito de apurar fatos reputados delituosos, cuja autoria é atribuída a integrante da organização policial, cuja atividade é controlada externamente pelo Ministério Público, in thesi, não existe nenhuma antinomia nesta atuação, cifrada na promoção da investigação pela Promotoria de Justiça. 3. O objeto do controle externo da atividade policial é exercido, segundo prestigiosa corrente, entre outras áreas, sobre a apuração de crimes em que são envolvidos os próprios policiais.
(STJ, 6ª T., RHC 10.947/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, 19 fev. 2002, DJ 12 ago. 2003, p. 260)[4].
Portanto, uma interpretação que propusesse que o Ministério Público está proibido de conduzir investigações diretas quando policiais estiverem envolvidos em organizações criminosas seria inconstitucional, por violar regras constantes de tratados internacionais, que informam a teleologia do art. 129, VII, da CRFB/1988 e do art. 8º da LC n. 75/1993. A única interpretação do referido dispositivo compatível com a Constituição Federal é a que indica que, quando a própria polícia for investigar um desvio praticado por um policial, essa investigação deverá ocorrer na forma ali indicada, ou seja, há que se realizar uma interpretação conforme à Constituição para não se excluir a possibilidade de o Ministério Público conduzir investigações autônomas do desvio policial.
As novas regras para a investigação policial do desvio policial são as seguintes: (i) não é possível que uma delegacia ordinária investigue o envolvimento de policiais no crime organizado, tal investigação policial deverá ser necessariamente conduzida pela Corregedoria de Polícia, de forma a se minimizar o risco de corporativismo, através de uma diferenciação interna; (ii) não cabe a mera instauração pela Corregedoria de procedimentos administrativos para esclarecer as notícias de envolvimento de policiais no crime organizado, sendo obrigatória a instauração de IP, ou seja, há um mandado legal de instauração imediata de inquérito policial; (iii) nesses casos o Ministério Público deverá ser imediatamente comunicado da instauração do IP envolvendo policiais no crime organizado e poderá acompanhar de forma mais próxima a condução da investigação, numa verdadeira “força tarefa” ope legis desde o início das investigações decorrente de um mandado legal de otimização dessas investigações.
Também entendemos que todas essas novas diretrizes podem ensejar eventual responsabilização no caso de omissão: (i) se um delegado de polícia “segurar” uma notícia de fato envolvendo a participação de policial em organização criminosa, deixando de encaminhá-la à Corregedoria de Polícia; (ii) se o responsável pela Corregedoria deixar de instaurar imediatamente IP quando receber a notícia de fato, ou deixar de comunicar o Ministério Público imediatamente após a instauração do IP; (iii) se o Ministério Público receber a comunicação da instauração do IP e deixar de tomar as medidas necessárias para assegurar uma adequada participação no esclarecimento do desvio policial desde seu início. Se a lei dá diretrizes claras de atuação e não há a respectiva atuação legal, ela apenas se justifica por um sentimento pessoal de não querer atuar de acordo com a lei, o que significa a possibilidade de responsabilização pelo crime de prevaricação[5].
É certo que essas novas garantias de integração entre a Corregedoria de Polícia e o Ministério Público possuem a virtualidade de elevar o esclarecimento do desvio policial a um novo patamar de eficiência, desde que os sujeitos intervenientes efetivamente se engajem. Mas, ainda assim, se o Ministério Público considerar em um caso concreto que a investigação conduzida pela Corregedoria não será suficiente para o esclarecimento do desvio policial, por razões diversas (risco de corporativismo, risco de influência política na atuação correcional, falta de estrutura notória do órgão correcional), nada impedirá que ele mesmo instaure e conduza uma investigação autônoma, conforme as diretrizes de tratados internacionais. É claro que quanto mais as Corregedorias de Polícia forem eficientes em investigarem os desvios praticados por policiais, menos será necessária uma investigação direta pelo Ministério Público. Mas o juízo dessa necessidade não pertence à Polícia, e sim ao Ministério Público, pois não cabe ao órgão controlado ditar os limites do órgão controlador. E mesmo os países mais avançados em termos de interiorização de valores democráticos por suas forças policiais não dispensam uma investigação independente pelo órgão de controle externo da atividade policial.
Espera-se que as Corregedorias de Polícia e os Ministérios Públicos efetivamente se articulem para a efetividade da nova legislação de enfrentamento ao crime organizado integrado por policiais.
Notas
[1] Dentre tantos estudos, ver os seguintes: ALSTON, Philip. Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions: follow up to country recommendations – Brazil. (Relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU: A/HRC/14/24/Add.4), 26 maio 2010. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/issues/executions/docs/A.HRC.14.24.Add.4.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2013. ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2011: el estado de los derechos humanos en el mundo. Madri: Ed. Amnistía Internacional, 2011. MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos). Nota pública à sociedade brasileira sobre a violência em São Paulo. São Paulo: MNDH, 2012. Disponível em: <http://www.mndh.org.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=3183>. Acesso em: 08 nov. 2012. LEEDS, Elizabeth. “Serving States and Serving Citizens: Halting Steps toward Police Reform in Brazil and Implications for Donor Intervention”. Policing and Society, v. 17, n. 1, Londres: Routledge, mar. 2007, p. 21-37. LEMGRUBER, Julita; MUSUMECI, Leonarda; CANO, Ignácio. Quem vigia os vigias?: um estudo sobre o controle externo da polícia no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003.
[2] Conferir: Alston, op. cit. PILLAY, Navanethem. 2009 report on activities and results (Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU). Genebra: ONU, 2010. Disponível em: <http://www.ohchr.org/Documents/Publications/I_OHCHR_Rep_2009_complete_final.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2013. LASSO, José Alaya. Direitos humanos e aplicação da lei: manual de formação em direitos humanos para as forças policiais. Genebra: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 2001. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/Manual1.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2013.
[3] Alston, op. cit., itens 46-48.
[4] Endossando essa ligação entre controle externo da atividade policial e poder de investigação autônomo pelo Ministério Público, conferir outros precedentes do STJ: HC 96347/SP, HC 83858/SP, HC 37316/SP, HC 50095/MG, HC 84266/RJ, AgRg no REsp 887240/MG, REsp 761938/SP, HC 37641/MG, HC 37392/MG, RHC 16267/DF, RHC 13.823/RS, REsp 494320/RJ, HC 12704/DF, RHC 11600/RS, RHC 10111/DF, RHC 10225/DF.
[5] Em sentido semelhante, sobre a possibilidade de responsabilização por prevaricação no caso de omissões praticadas por policiais, ver: STJ, 5ª T., RHC 3.457/SP, rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, j. 18 abr. 1994, DJ 2 maio 1994, p. 10015; STJ, RHC 1.695/MG, rel. Min. José Dantas, 5ª T., j. 24 jun. 1992, DJ 17 ago. 1992, p. 12506.