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Adoção do maior incapaz ao arrepio da hierarquia legal

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05/01/2014 às 07:23
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III              ADOÇÃO DO MAIOR INCAPAZ AO ARREPIO DA HIERARQUIA LEGAL

3.1 O status da hierarquia como requisito para a adoção

Impera na adoção o requisito da diferença de idade entre adotante e adotado, que deverá ser de no mínimo dezesseis anos. A regulamentação deste requisito em uma linha histórica no Brasil a partir do Código Civil de 1916 era feita pelo art. 369, segundo o qual o adotante deveria ser pelo menos dezoito anos mais velho do que o adotado. Tal idade foi reduzida para dezesseis anos pela Lei nº 3.133 de 08 de maio de 1957. Posteriormente, o ECA manteve a mesma diferença legal no art. 42, §3º, bem como a confirmou o art. 1.619 do novo Código Civil. Este dispositivo no documento civil foi derrogado pela nova lei de adoção, a qual, de forma questionável, manteve o art. 42, §3º do ECA, suscitando dúvidas.

Segundo a doutrina, tal exigência legal na diferença de idade entre as partes envolvidas no processo de adoção requer “instituir ambiente de respeito e austeridade, resultante da natural ascendência de pessoa mais idosa sobre outra mais jovem, como acontece na família natural, entre pais e filhos”[27].

Além dessas palavras doutrinárias, há outra afirmação que também desarrima a situação do maior incapaz: a de que o filho não poderia ter idade superior à dos pais, porquanto, diz Maria Helena Diniz[28], o adotante não teria condições para desempenhar cabalmente o exercício do poder familiar.

Será considerada, segundo a doutrina, nula a adoção que viole as prescrições legais. Explica Maria Helena Diniz que “nula será, p.ex., a adoção (...) por não haver diferença de pelo menos dezesseis anos de idade entre adotado e adotante”[29]. Considerando nulidade o não preenchimento do requisito diferencial de idade, revela-se que a ação cabível se quer declarará a desconstituição do vínculo de filiação, pois, conforme Maria Helena Diniz, “a filiação nasceu ineficaz”, ou seja, nunca existiu.

Ao sobrepujarmos o conceito da palavra ineficaz, pelo Dicionário Priberam da língua portuguesa têm-se o significado daquilo que é “inútil, vão”[30]. Não há como deixar esta palavra imperar no que se relaciona à adoção do maior incapaz nos termos que se defende, haja vista que uma relação de afeto ligada por laços de maternidade, paternidade e filiação sócio-afetivos tem efeitos produzidos no universo da amabilidade que não se desfazem por vontade de lei, nem por decisão judicial.

3.2 A natureza da medida e as reais vantagens para o adotado

O deficiente mental como ser dotado de especificidade necessita de atenção especial em sua proteção, tanto que, além de suprir sua incapacidade nos atos da vida civil, requer, na falta de uma família natural ou extensa, a concessão de família adotiva empunhada do poder familiar, a qual proverá melhor tratamento na vida infante determinada pela sua mentalidade. Para tanto, a curatela deve ser afastada, concedendo-se a adoção em seu lugar, que é a medida ideal, adequada, à situação do amental, não podendo este ser colocado num instituto da interdição, que trata pessoas totalmente distintas como, por exemplo, o pródigo, o qual tem a maturação psicológica suficiente para se determinar como adulto, não podendo apenas praticar atos de disposição do patrimônio.  As limitações do deficiente mental correm muito mais do que os meros atos de administração de patrimônio, mas atingem toda a habilidade social, porquanto sua dependência é in totum.

Para adoção específica a que se defende, é descabida a explicação dos doutrinadores baseada nos dizeres de que a exigência legal em comento serve para colocar a adoção o mais próximo da natureza (do biológico) e evita adoções levianas.  Inclusive, Silvio de Salvo Venosa em sua obra comenta que:

Não havendo lapso mínimo de idade entre adotante e adotado o sistema, a nosso ver, ficará passível de distorções sociológicas de todas as espécies, para dizer o mínimo, e fraudes, que podem causar danos inimagináveis à família e à sociedade.[31]

As afirmações da doutrina não sopesaram situações como a adoção do maior incapaz. Para explanar isto, há incontáveis teses. A primeira delas resvala-se na consideração do deficiente mental como criança, posto que o desenvolvimento biológico físico do adotado não foi acompanhado pela maturação psicológica. O deficiente mental maior não tem condições de se adaptar ao meio social sem o suporte familiar, assim também se encontram as crianças. O site Psicoweb Psiquiatria Geral caracteriza o retardado mental como pessoa que tem:

funcionamento intelectual significativamente inferior à média, acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação, auto-cuidados, vida doméstica, habilidades sociais, relacionamento interpessoal, uso de recursos comunitários, auto-suficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança.[32]

Faz-se conhecer a clareza de que, comparativamente ao deficiente mental maior, uma criança tem todas estas características que a enquadram num grau de dependência, o qual a lei superou fornecendo ao infante a proteção do poder familiar em sua vida. Questiona-se o porquê da lei tratar de forma diferente pessoas tão iguais, com as mesmas dependências, pois tem a norma ofertado ao maior incapaz órfão a curatela, cujo caráter é frio e distante do molde familiar, visto que ela se conecta apenas aos interesses negociais do curatelado e da outra parte contratante do negócio jurídico.

A extensão do poder familiar à pessoa deficiente mental maior mostra-se mais viçosa do que o emprego da curatela, pois certo terá este indivíduo o direito a uma relação de pais e filhos que o completará além da necessidade dos negócios jurídicos, mas no âmbito emocional, produzindo a garantia de permanecer sempre regido pela mútua compreensão, proteção e amor.

A perda do poder familiar nesta linha de pensamento só se justificaria quando o deficiente mental deixasse de assim ser considerado, atingindo a maturação cerebral de uma pessoa capaz, o que na maioria das vezes é impossível.

Veja que o deficiente mental se enquadra positivamente na conceituação de uma criança, porque tem ele a equivalência de idade mental que a desta. Segundo o site Psiqueweb[33], a organização mundial de saúde (OMS) atribuiu idade mental de acordo com o coeficiente intelectual (QI), gerando a divisão do grau de deficiência em: profundo, quando o coeficiente intelectual é menor que vinte, sendo, então, a idade mental correspondente de zero até dois anos; agudo grave, o coeficiente intelectual está entre vinte e trinta e cinco, enquanto a idade mental equivale de zero a dois anos; moderado, tem coeficiente intelectual entre trinta e seis e cinquenta e um, com idade mental entre dois a sete anos, e, por último, grau leve aquela em que o QI posiciona-se entre cinquenta e dois e sessenta e sete e a idade mental varia de sete a doze anos.

A justiça brasileira tem revestido a adoção com a importância da afetividade, e não da priorização em aproximar o instituto à ordem natural biológica da família natural. Um exemplo desta pacificação jurisprudencial está na concessão da adoção por casais homoafetivos, pois, biológica e naturalmente, não estão aptos, no momento, a comungar, por si sós, a figura do nascimento de um filho com suas próprias estruturas físicas. Em outras palavras, o juízo doutrinário de que a diferença legal de idade vai colocar a adoção o mais próximo da natureza não se constitui como finalidade precípua da lei, conforme leitura dos julgados brasileiros.

Explana Silvio de Salvo Venosa, citando o autor Jean Carbonier, que, hodiernamente, a filiação adotiva baseia-se na “na presunção de uma realidade não biológica, mas afetiva[34](grifo nosso). O mesmo autor cita trecho da obra A cidade antiga, de Fustel de Coulanges[35], que diz: “adotar é pedir à religião e à lei aquilo que da natureza não pôde obter-se”[36]. A inteligência destes trechos justifica uma adoção que vai se diferenciar do curso da natureza, pois, de fato, um filho mais velho do que seus pais não poderia naturalmente ser concebido por estes, logo a adoção vai ser meio hábil a dar filhos aos adotantes nos termos em que a natureza não permitiria.

Partindo para a desconstituição do entendimento de que manter o requisito da diferença mínima de idade entre adotante e adotado vai evitar adoções levianas, usa-se como instrumento de embate o poder que o Estado concede ao juiz para que este analise os motivos da adoção, com apreciação pessoal do adotante, a aptidão psicológica deste, bem como a verificação de folha de antecedentes penais e outros meios eficazes concedidos ao julgador para analisar as intenções escusas de um adotante de comportamento anti-social. Em outras palavras, o requisito legal em questão não é suficiente para impedir que o adotado não seja vítima de um adotante inescrupuloso, o que configura que a exigência legal foi emplacada como uma forma minguada que o legislador encontrou para expressar que o judiciário tem de proteger o adotado por meio da verificação das intenções na adoção.

O que de fato importa é a condição moral para desempenhar a função de família. Não há como dizer que a hierarquia de uma estrutura familiar será ferida quando é deficiente mental o filho adotivo maior de dezoito anos que não preenche a diferença de idade mínima entre os pais adotivos, pois não tem ele noção e habilidade social para conhecer que é mais velho do que aqueles a ponto de rebelar-se. O indispensável no processo adotivo é a qualidade do vínculo por um afeto que se dissemina no ambiente familiar.

Outro estorvo que se configura com a exigência do requisito em discussão ocorre no caso do deficiente mental possuir uma idade biológica muito avançada, pois a lei, permitindo sua adoção condicionada ao mencionado requisito, deixaria como opção um adotante praticamente senil, que, por razões obvias, poderia não conter a vitalidade no acurado de um adotado com tantas cobranças nos cuidados.

Com a permissão legal da adoção de pessoa deficiente mental maior de dezoito anos sem o empecilho do preenchimento do requisito legal diferenciador de idade, o adotando com estas características teria extirpado o preconceito que sobre ele recai existente na conjuntura do processo de adoção, pois tem a lei até hoje voltado a atenção apenas à adoção do menor de idade. Este convencionalismo dotado de discriminações consiste em abuso aos princípios de direito, como o da igualdade e da dignidade da pessoa, além de ferir direito de personalidade do deficiente incapaz.

Uma legislação com menos entraves e que fosse voltada para esta adoção tão específica é o ideal. A atual regulamentação, apesar de banhada com legislação recente, terá como consequência o desuso, já que o legislador age melindroso em não tratar de assuntos de relevante interesse, apesar de polêmicos.

3.3 Motivos legítimos para a extensão do poder familiar e adoção ao arrepio da hierarquia legal: Sistemas de preenchimento da lei

Os meios de integração e interpretação do direito que se passam a analisar servem para arrazoar a adoção do maior incapaz livre do rigor legal em exigir idade mínima entre adotante e adotado, chegando a eliminar o instituto da curatela nesta situação peculiar, substituindo-a pela entrega do poder familiar ao curador que deseje adotar. A discussão que segue irá, também, evidenciar, reflexamente, que há a necessidade da permanência do poder familiar quando findada a menoridade do deficiente mental que já se encontrava sob a responsabilidade dos pais biológicos ou adotivos.

Também quer se demonstrar que a concessão da adoção é a alameda mais justa a se percorrer no provimento judicial, se curador e seu curatelado amental e maior já detêm convivência de ligação afetiva próxima a uma relação de família, cujos cuidados são com esmeros.

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 Relembra-se que o poder familiar está adstrito a todos os filhos menores, não emancipados, advindos ou não da relação matrimonial, adotados ou não, por força do art. 1.630 do CC. No espaço deste capítulo, tramam-se tentativas de prolongar tal poder nos caso específico do deficiente mental maior.

Com o advento da nova lei de adoção o primitivo conteúdo do art. 1.619 do CC foi retirado da legislação. No entanto, não ficou nítido se o requisito da diferença de idade entre adotante e adotado continuou operando, pois, como dito outrora, a legislação sobre adoção não é clara nem suficiente quando o assunto é adoção de maior de dezoito anos.

Washington de Barros Monteiro[37] defende que a exigência ainda vigora, já que a novel legislação determina a aplicação das regras gerais do ECA, no que couber, à adoção de pessoa maior.

Entrementes, Silvio de Salvo Venosa, enxergou mais além, e entendeu que a nova lei de adoção derrogou “surpreendentemente” esse princípio da legislação, não sendo mais aplicável, e ainda, completou que “caberá aos magistrados o máximo de bom senso ao deferir adoções que não imitam a vida”[38].

Ensina a doutrina que a adoção do maior de dezoito anos é regida pelo Código Civil, que, após a recente lei de adoção, ficou mais omisso do que antes, trabalhando com apenas dois artigos. A regulamentação ficou tão abstrata que de fato o juiz só tem como ferramenta de trabalho as fontes integradas do direito, ou seja, a analogia, a equidade e os princípios gerais do direito.

Quando o novo preceito, advindo da nova lei de adoção, do art. 1.619 do CC dispõe que se aplicam, no que couber, as regras gerais do Estatuto da Criança e do Adolescente, acredita que o juiz vai encontrar nesta legislação uma norma que se coadune com a adoção do maior de dezoito anos. Contudo, o próprio ECA não regulamenta de forma nítida a adoção peculiar que aqui se discute, evidentemente, o juiz não pode se negar a julgar. Verifica-se, então, que há uma lacuna na lei, a ser remediada nos termos do art.4º da Lei de introdução ao Código Civil (LICC).

A analogia se concretiza na busca de um dispositivo de outra lei que trate fatos semelhantes ao que a lei específica do caso não abordou. Este trabalho interpretativo é perfeitamente aplicável quando se adéqua a adoção ao deficiente mental maior, concedendo a medida de forma desimpedida. Inclusive, a analogia é lavrada pelo judiciário quando defere a pessoas do mesmo sexo serem pais adotivos.

Sabendo que o deficiente mental equipara-se a uma criança, o juiz deve se amparar na aplicação do ECA, por meio da analogia, para conceder a adoção ao referido incapaz, conjugando-se as peculiaridades deste indivíduo à necessidade de mitigar os rigores desta lei.

Os princípios gerais do direito são de uso corrente da justiça para costurar as omissões legais. Compõem-se de orientações genéricas que advém da legislação e facilitam a compreensão e aplicação da ordem jurídica. O juiz age no caso concreto como se legislador fosse. Assim sendo, o tipo de adoção do maior incapaz afastando o requisito da diferença legal de idade seria concedido com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da função social da lei e do melhor interesse do adotado, além, analogamente, dos princípios específicos previstos no art. 100 do ECA, apresentados como princípio da proteção integral e prioritária do adotando e o princípio da responsabilidade primária e solidária do poder público.

O princípio da dignidade da pessoa humana é inerente à personalidade. Tal princípio alicerça a República Federativa do Brasil, como bem apresenta o art. 1º, III, da CFB, do mesmo modo equivale a entendê-lo como um mandamento constitucional a ser cultivado. Alexandre de Moraes ensina que:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (grifo do autor)[39]

Não permitir que o maior incapaz, criança permanente enquanto pairar sua deficiência, seja adotado equivale ao menosprezo da sua dignidade de pertencer a uma família que lhe resguarde como se infante fosse. Esta impossibilidade fere direito de personalidade de moral e psicologicamente possuir pais adotivos. Entendendo que o direito de personalidade é universal e à criança e ao adolescente se resguarda o direito a uma família adotiva, questiona-se o motivo da lei em afastá-lo dos maiores incapazes.

Não se contesta que o direito a uma família adotiva conjugado à extensão do poder familiar ao maior incapaz afastando o requisito da diferença legal de idade é direito de personalidade, pois o rol destes direitos é inumerável, dinâmico, variando no tempo e no espaço, como profere Washington de Barros Monteiro[40].

Como forma de evitar tratamentos desiguais o ordenamento jurídico oferece o princípio da isonomia de direitos, pelo qual todos os cidadãos em situações idênticas têm as mesmas prerrogativas, sendo vedadas discriminações despóticas. No caso da não aplicação da adoção ao deficiente mental maior sem rigores legais extremos tem-se um elemento discriminador, cuja finalidade é alheia à função social do direito, sendo que a lei só autoriza a diferenciação para situações desiguais, o que não ocorre no caso em comento.

Não se vislumbra nenhum juízo valorativo genericamente aceito para que se trate o maior incapaz com a curatela quando há pleito de adoção ou quando os pais requerem a prorrogação do poder familiar sobre ele. O preceito da igualdade vincula o intérprete julgador a afastar o erro de injustiça no caso concreto, e estimula o legislador a editar normas que se coadunem com a situação do deficiente mental maior.

A Organização das Nações Unidas (ONU), pela Resolução nº 2.856, de 20 de dezembro de 1971, apresentou a declaração dos direitos de pessoas com deficiência mental, a qual estipula, em seu art. 1º, a igualdade de tratamento do deficiente mental, e, em seu art. 4º, o direito a um ambiente familiar, nos seguintes moldes:

Art. 1º O deficiente mental deve gozar, no máximo grau possível, os mesmos direitos dos demais seres humanos;

(...)

Art. 4º Sempre que possível o deficiente mental deve residir com sua família, ou em um lar que substitua o seu, e participar das diferentes formas de vida da sociedade. O lar em que vive deve receber assistência. Se for necessário interná-lo em estabelecimento especializado, o ambiente e as condições de vida nesse estabelecimento devem se assemelhar ao máximo aos da vida normal;[41]

 Como se observa o tratamento isonômico do deficiente mental e o seu direito a uma família competem a interesses que vão além das fronteiras brasileiras, atingido o plano internacional.

A LICC evidencia em seu art. 5º a função social da lei nos seguintes termos: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Toda norma possui sua finalidade, por esta razão o aplicador da lei deve ir ao seu encontro no momento da interpretação do direito. Observando o texto do art. 5º da LICC, verifica-se que simples ato do judiciário que acolha o fim social da lei equivale a atender ao bem comum, ou seja, o motivo da lei é o objetivo de uma sociedade.

No instituto da adoção a sua finalidade se apresenta como o princípio do melhor interesse do adotado. O indeferimento da adoção peculiar do maior incapaz livre de entraves legais equivale a uma forma de burlar a norma, pois nega a sua finalidade social e rejeita o direito de uma família afetivamente já construída se materializar como família no mundo jurídico.

Sendo a adoção norteada pelo princípio do melhor interesse do adotado, ater-se ao formalismo exagerado da lei de adoção, incompatível com os ditames constitucionais, para afastar uma adoção livre do requisito legal diferenciador de idade retira do adotado amental a oportunidade da proteção integral e prioritária, explicitado no art. 100 do ECA, e todas as demais vantagens que advêm de um meio familiar constituído. Uma decisão judicial que afasta os mencionados direitos torna-se incivil, pois estes pertencem ao adotado e não ao Estado.

Pelo sentido em que se toma do inciso III do art. 100 do ECA, a efetivação plena dos direitos assegurados ao adotado é de responsabilidade dos três poderes, judiciário, legislativo e executivo, sendo que a intervenção destes deve ser prioritariamente acatar ao interesse do adotado, observando a peculiaridade dos casos concretos.

Se a convivência de curador e curatelado já é de ligação afetiva próxima a uma relação de família, de cuidados com primores, a concessão da adoção é a via mais justa a se cursar no provimento judicial. Este atenderá aos objetivos fundamentais previstos no art. 3 º da CFB de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicar a marginalização do deficiente mental, reduzindo as desigualdades sociais.

Miguel Reale traduz, nas seguintes palavras, o guardião que se torna o aplicador do direito quando justapõe todos os termos interpretativos e integradores retro mencionados:

o judiciário, ao ter de aplicar  uma regra em conflito com valores do ordenamento,  atenua, quando não elimina seus efeitos aberrantes, dando-lhe interpretação condizente com o espírito do sistema geral, graça à sua correlação construtiva  com outra regras vigentes[42]

Regina Maria Fonseca Muniz[43], em sua tese de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) sobre a proteção prolongada do amental, ressaltou a penúria em que se encontra o conjunto de leis brasileiras quando o tema é o deficiente mental, havendo o dever de se criar um novo regime para o deficiente intelectual maior de idade.

A lei de adoção pode ser sepultada pelo desuso, já que praticamente com todas estas ferramentas explanadas, o nobre julgador pode fazer justiça ao conceder, no lugar da curatela, a adoção conjugada com a extensão do poder familiar nos casos em que envolvam deficientes mentais maiores de dezoito anos, afastando as exigências legais de caráter desvairado da mencionada lei.

3.4 A extensão do poder familiar por meio da adoção do maior incapaz ao seu curador

Ratifica-se que, pela lei, o poder familiar não pode conviver com a tutela, muito menos com a curatela dos adultos incapazes, o que mostra o caráter puramente administrativo destas medidas sobre o tutelado e curatelado, não derramando sobre estes as prerrogativas do laço de afetividade para a realização plena das partes envolvidas. Embasado nisto, o legislador criou a adoção, para entregar esta vantagem ao adotante e ao adotado.

As ferramentas de integração da lei, veementemente explanadas, permitem o provimento judicial positivo do pleito de conversão da curatela em adoção quando os curadores prestarem contas de sua administração. Este fenômeno concessivo deve ocorrer por simples equiparação ao direito da criança tutelada ser adotada por seu tutor, disposto no art. 44 do ECA, uma vez que o incapaz adulto pela lei é um infante pela psiquiatria.

A analogia explicita-se como um dos recursos que o juiz deve se debruçar na conversão em comento. Apesar de a lei entregar somente aos menores de dezoito anos a possibilidade de mutação da tutela em adoção, a ferramenta analógica requer que a troca da curatela em medida adotiva também seja ofertada ao amental maior, pois seria a solução mais contígua. 

Não são somente aplicáveis aos filhos menores de dezoito anos a assistência do Estado na adoção e o princípio da igualdade jurídica dos filhos, previstos nos parágrafos 5º e 6º do art. 227 da CFB, apesar da inserção deste dispositivo em um capítulo discriminador pelo cabeçalho que se intitula como “DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO”.

O autor Carlos Roberto Gonçalves adverte que:

No regime do novo diploma, tanto a adoção de menores quanto a de maiores revestem-se das mesmas características, estando sujeitas a decisão judicial, em atenção ao comando constitucional de que a adoção será sempre assistida pelo Poder Público(CF, art.227, §5º)[44].

O autor em referência mostra que não se pode afastar os trilhos constitucionais do art. 227 da CFB dos adotandos maiores de dezoito anos, por consequência lógica de o ato ser inconstitucional. Sendo deste modo, se aos filhos menores cabe a conversão da tutela em adoção, aos maiores incapazes deve, pelo princípio da igualdade jurídica dos filhos e pelo princípio do direito à assistência do Estado na adoção, ser concedida a transformação da curatela em medida adotiva.

Além disso, Regina Maria Fonseca Muniz, em sua tese de doutorado, fornece argumentos importantes: “o deficiente intelectual, após a declaração judicial de incapacidade, é comparado ao menor, segundo a inteligência do art. 1.774 do Código Civil”[45]. Corroboram estes termos ao entendimento de que a lei, pelo art. 1.774 do CC, considerou o maior de dezoito anos deficiente intelectual como uma criança, podendo utilizar-se dos mesmos meios de proteção legal a ela oferecidos. Assim, porque determina o artigo em comento a aplicação à curatela dos dispositivos concernentes à tutela, vislumbra-se perfeitamente cabível a modificação da curatela em adoção, uma vez que a lei consente que a tutela passe à adoção, nos termos do art. 44 do ECA.

Em caráter de culminância, os maiores de dezoito anos incapazes, que também são considerados crianças sob o ponto de vista psicológico, têm o direito, analogamente, à adoção no lugar da curatela, devendo esta ser enterrada no caso característico em questão. Acrescenta-se que o igual direito de se proteger o deficiente mental maior com o poder familiar da adoção procede da equivalência da idade mental deste com os filhos de idade inferior a dezoito anos, adicionado ao princípio da igualdade jurídica dos filhos e do dever de assistência do Estado na adoção.

3.5 A adoção do maior incapaz ao arrepio da hierarquia legal à luz das decisões Judiciais

Com as jurisprudências que seguem se entende que o direito à adoção livre de requisitos esdrúxulos se revela como um direito que se processou através do exercício da jurisdição. Esta vem interpretando os requisitos da lei de adoção como relativos, quebrando seus rigores e amoldando a medida aos casos reais que são apresentados à justiça brasileira com freqüência.

Os julgados apresentados seguem uma linha de coerência em atender a função social da lei e o melhor interesse do adotando. Há ainda uma timidez do julgador em integrar experiências humanas que bradam pela anuência da adoção do maior incapaz em substituição à curatela. Por outro lado, o requisito diferenciador de idade entre as partes do processo de adoção já não é uma pedra imutável, e vem sendo afastado, podendo cair pelo desuso.

Iniciando-se pela Corte Suprema Brasileira, no ano de 1986, esta firmou importantíssimo entendimento, quando do deferimento de homologação de sentença estrangeira, segundo o qual a regra de diferença de idade mínima de dezesseis anos entre adotante e adotado não é de ordem pública, mas de interesse público, como se observa a seguir:

Sentença estrangeira. Adoção. A regra do art. 369 do Código Civil Brasileiro não é de ordem pública, mas de interesse público, não tendo eficácia de lex-fori, em face da adoção regida por lei de outro Estado.

O código Civil Alemão prevê,no § 1.745, a dispensa do requisito da diferença mínima de idade entre adotante e adotado, podendo a sentença de adoção, proferida naquele país ser homologada.[46]

À época da concessão da referida homologação o adotante e adotado, no episódio apresentado, possuíam, respectivamente, a idade de trinta e nove anos e vinte e sete anos, requerendo a homologação de sentença alemã que lhes concedeu a adoção. A Procuradoria Geral da República (PGR) fez opção pelo indeferimento do pleito, pois as partes contavam apenas com doze anos de diferença entre suas idades, existindo clara ofensa ao requisito da lei para a adoção do maior de dezoito anos evidenciado no art. 369 do anterior Código Civil, vigente naquela ocasião. Entendia a PGR que a condição imposta pela lei continha disposição de ordem pública.

O relatório do Supremo Tribunal Federal (STF), citando o autor Clóvis Beviláqua, explanou, inicialmente, que a exigência da lei defendia uma “distância que efunde respeito, pressupõe maior experiência e põe cada um em seu próprio lugar: os pais para velar e dirigir, o filho para venerar e confiar”[47]. Todavia, o STF confrontou este pensamento, o qual condiciona, de maneira generalizada, o respeito à idade das partes e retira o foco do benefício da adoção. Para reverter este quadro imposto pelo legislador, o Supremo Tribunal firmou o entendimento de que esta benfeitoria banha de interesse social a regra legal agitada, e não de ordem pública, podendo a justiça afastar a exigência do legislador brasileiro.

Outrossim, países como a Alemanha dispensam a exigência deste requisito legal, § 1.744 do Código Civil alemão. Este fato demonstra que o comportamento internacional na adoção é de facilitá-la, afastando emperros. O que equivale a um exemplo para o legislador brasileiro adquirir.

Seguindo no estudo das decisões judiciais, a apelação cível n° 371.001.4/1-00 da comarca de Campinas-SP ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), processo n° 2.810/2003, foi deferida conforme a ementa seguinte:

ADOÇÃO - Requisito: que o adotante seja dezesseis anos mais velho que o adotado (art. 1.619 do CC e § 3o do art. 42 do ECA) - Objetivo: instituição de ambiente de respeito e austeridade, resultante da ascendência de pessoa mais idosa sobre outra mais jovem, reproduzindo tanto quanto possível a família natural - Hipótese em que a diferença de idade aproxima-se dos quinze anos - Requisito não preenchido – Indeferimento do pedido, por impossibilidade jurídica - Caso, no entanto, em que a adotante foi casada com o pai da adotanda, cuida dela desde que tinha dezessete anos, e foi-lhe nomeada curadora em processo de interdição em 1.987, com ela estabelecendo relação filial, sendo mesmo chamada de mãe - Peculiaridades que justificam a conclusão de que, permitida a adoção, estar-se-á atendendo ao fim social da lei - Decisão reformada para afastar a extinção do processo.Apelo provido.(grifo nosso) [48]

Conforme o relatório deste acórdão, este episódio se refere a um pleito adotivo feito por uma madrasta que, durante a convivência conjugal com o pai da adotanda, cuidou desta como se filha fosse. Adiciona-se que a madrasta é curadora desta, a qual, durante o lapso de convivência com aquela, apresentou distúrbios mentais graves com consequente interdição. A partir desta situação, a madrasta recebe de sua curatelada frases do tipo: “minha mãezinha querida”, “quero ficar com você” e “você é minha mãe”.

Primeiro ponto a apresentar é que a adotanda deste caso contava, na época do julgamento da apelação, ano de 2006, com quarenta e três anos de idade, pois nasceu em 1963. Este fato entrega suporte para esta monografia, a adoção do maior incapaz afastando o requisito da diferença legal de idade, pois a requerente, madrasta, nascida em 1948, não preenchia o requisito da lei para a adoção, uma vez que a diferença de idade entre curadora e curatelada era menor de dezesseis anos.

Na decisão desta apelação o Tribunal de Justiça de São Paulo invocou que o STF, outrora, já havia firmado entendimento de que a norma que estipula diferença de idade entre adotante e adotado não é matéria de ordem pública, mas de interesse público, portanto, deve considerar os aspectos benéficos da adoção.

Abrindo parênteses aos termos do acórdão, afirma-se que, sendo tal requisito legal uma ficção jurídica de garantir o respeito do filho aos seus pais, não haveria razões para um maior incapaz, já submetido a um convívio familiar que ainda não existia juridicamente, mas a reverência como filho já se apresentava, vir a confrontá-los porque a adoção foi deferida.

Inclusive, a orientação do Pretório Excelso, referenciada no acórdão em evidência, foi produto do exame de um pedido de homologação de sentença estrangeira, porque, logicamente, no país que originalmente concedeu a adoção era a exigência legal na diferença de idade de limites não estabelecidos.

Para provimento do pleito, o TJSP também considerou a peculiaridade do caso, afastando o rigor da lei, o qual só traria dissabores para as pessoas envolvidas, principalmente à interdita, que necessitava da melhoria de sua situação jurídica, transformando-se de curatelada à filha. O tratamento filial pré-existente também deu suporte ao caso, pois aumenta o direito da concessão da medida. Por conclusão, rematou o acórdão pelo atendimento do fim social da lei.

A apelação cível n.° 76.637.4/2 ao TJSP revelou-se outro julgado que, apesar de mais antigo, pois sendo do ano de 1999 aplicou o velho Código Civil, manteve o raciocínio da aplicação do melhor interesse do adotando e da função social da lei:

Adoção. Maiores. Sentença de extinção. Não observância do artigo 369 do C. Civil (diferença de 16 anos entre adotante e adotado). Prazo de interesse público, não de ordem pública.

Aplicação do preceito que deve ter em conta, principalmente, o aspecto benéfico da adoção e as condições dos adotantes e adotandos. Hipótese em que a limitação temporal não tem nenhum efeito prático em razão da maioridade dos adotandos. Extinção mantida, contudo, porque a adoção, no caso, pode ser feita por escritura pública, sem necessidade da via judicial, que só se legitimaria havendo óbice à prática do ato notarial. Apelo improvido, embora por fundamento outro. (grifos nossos) [49]

Nesta apelação novamente resolveu o julgador invocar que o prazo diferenciador de idade estipulado pelo legislador não é de ordem pública, mas de interesse público.

Para afastar os rigores da lei e trazer à tona a importância da função social desta e do melhor interesse do adotando, a justiça do Distrito Federal também vem aplicando os mesmos termos dos julgados já mencionados, conforme a apelação nº 2000.01.3.001788-7:

CIVIL E PROCESSO CIVIL. ADOÇÃO. ECA. DIFERENÇA DE IDADE ENTRE O ADOTANTE E O ADOTADO. MÍNIMO LEGAL. MITIGAÇÃO DOS RIGORES DA LEI EM BENEFÍCIO DO MENOR. 1. Quando o Estatuto exige a diferença mínima de idade entre o adotante e o adotado de 16 (dezesseis) anos, fá-lo somente para assegurar o papel paterno assumido, o que já restou claro, quando se fala dos fortes laços afetivos que os unem, e quando a inicial diz que o menor o respeita como a um pai e inclusive assim o chama. 2. Assevero que, neste caso, em que a diferença de idade perfaz 15 anos e 3 meses, portanto o adotante quase atinge a idade mínima, considero ser conveniente aos interesses do menor, ante a possibilidade de fornecer ao adotando ambiente familiar saudável, propício a seu desenvolvimento completo.(grifo nosso) [50]

O parecer da promotoria neste julgado foi utilizado para fundamentar a decisão, cujos argumentos eram constituídos da finalidade da lei, ou seja, a exigência legal diferenciadora de idade se resguardava tão apenas para assegurar que o adotante revele a capacidade de assumir o encargo, orientando e promovendo o adequado desenvolvimento do adotado.

Sustentou também a promotoria que o § 3º do art. 42 do ECA tem o intuito de resguardar que de um lado exista a figura de maturidade capaz de orientar o desenvolvimento do adotado. Pode-se aqui usar tais argumentos para conjugá-los à situação do amental, ou seja, se o pleito judicial envolve a adoção do maior incapaz, o adotante estaria carregado da referida maturidade, que seria a única existente sobre o amental, pois este não possui alguma.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ainda na solução deste caso, transcreveu em seu acórdão:

Valdir Sznick, discorrendo sobre o tema, observa que “esta diferença, dados os casos especiais, pode cair, e deve ocorrer, sempre, por decisão dos Tribunais. Assim o é, na França, quando a diferença se reduz a 10 anos, se o adotante adota o filho de seu próprio cônjuge”. J. Franklin Alves Felipe, magistrado mineiro e autor de renomado prestígio na área do direito de família afirma que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que mesmo a ausência de requisitos essenciais não leva, necessariamente à nulidade da adoção, tendo em vista o interesse do menor, a ser preservado.” (grifo nosso) [51]

Esta transcrição arreda todo o empecilho aproveitado para afastar a adoção caracterizada do deficiente mental maior, aliviando os fardos da lei que afugentam a medida para este indivíduo.

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Sobre a autora
Suellen da Costa Gonçalves

Servidora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Pós-Graduada pela Escola da Magistratura do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Suellen Costa. Adoção do maior incapaz ao arrepio da hierarquia legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3840, 5 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26330. Acesso em: 19 abr. 2024.

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