Introdução
A administração pública não raramente coloca-se diante de situações atípicas que demandam por soluções urgentes, de tal modo a evitar prejuízos pela interrupção de serviços contínuos que lhes são prestados, a exemplo dos serviços de fornecimento de software. Por vezes, as empresas contratadas são apenas detentoras do know-how e do código-fonte do software. Por disponibilizarem um produto exclusivo e que enseja inviabilidade de competição, acabam sendo contratadas de forma direta por inexigibilidade de licitação nos termos do art. 25 de Lei nº. 8.666/93 (Lei Geral de Licitações e Contratos), o que certamente não destoa das exigências legais.
Contudo, o problema emerge quando há vigência de contrato da administração pública com determinada empresa “A”, e esta perde os direitos que lhe foram outorgados para utilização da marca e que é o objeto contratual, quando então nova empresa “B” passa a deter a exclusividade do software, ensejando a substituição de empresas.
Nesse contexto, consubstanciado nos entendimentos da doutrina, decisões do Tribunal de Contas da União, e dispositivos da Lei Geral de Licitações e Contratos, o presente artigo vem elucidar as medidas que podem ser tomadas pela administração pública quando o objeto contratado trata-se de software exclusivo e a empresa contratada vem a perder os direitos de know-how e do código-fonte do software.
Desenvolvimento
Inicialmente cabe colacionar o que dispõe a Lei nº. 8.666/93[1]:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
(...)
VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato; (negrito nosso)
(...)
Embora comum no direito privado, a sucessão empresarial pode não ser admitida nos contratos administrativos, em face dos princípios gerais e do dever de licitar que regem a Administração pública.
Por possuírem cunho personalíssimo, os contratos administrativos podem ser rescindidos sempre que houver alterações na estrutura da empresa contratada, que modifiquem as condições inicialmente pactuadas, com prejuízo para a administração, o que não representa hipótese em análise, como será demonstrado.
Segundo Marçal Justen Filho[2], a possibilidade de rescisão deve ser avaliada "caso a caso", cabendo à Administração "evidenciar que o evento prejudica a execução do contrato ou importa outra categoria de vícios", para que não haja frustração da finalidade buscada pela contratação.
Contudo, ao revés do que se depreende a uma primeira impressão, em verdade, o objeto do contrato é um software que atende por determinada denominação de propriedade da empresa “X”, até então outorgados e comercializados pela empresa “A”.
A partir daí percebe-se que a mudança da contratada preservará integralmente o objeto constante do contrato exemplo, mantendo-se as condições ab initio celebradas com a Administração pública, tornado relevante o objeto em si – produto software exclusivo -, e não ferindo os fins almejados pela Administração por meio da contratação, que com a mudança, continuarão a ser prestados na mesma toada e nos mesmos termos estipulados no contrato.
Ademais, a empresa sucessora “B” e que passou a deter os direitos de comercialização dos produtos continuará a cumprir todas as obrigações contratuais, pois passou a ser distribuidora exclusiva dos produtos de “X”, sendo, outrossim, enquadrada no procedimento que ensejou a contratação direta, isto é, por inexigibilidade de licitação, para o desempenho e fornecimento de serviços até então prestados e em execução.
Na situação hipotética apreço, caso o entendimento fosse pela rescisão com fundamento no art. 78, VI da Lei 8.666/93, e se eleita pela Administração pública a via da contratação direta por inexigibilidade de licitação, motivada pelo que dispõe o art. 25 da Lei de Licitações e Contratos – Lei 8.666/93, certamente por inviabilidade de competição, procederia à contratação da nova empresa “B”, que é a única que passou a deter os direitos de distribuição dos produtos. Isso reflexo demandaria despesas desnecessárias para a administração pública, que teria que engendrar nova contratação direta da mesma empresa com contrato já em vigor e execução, o que somente acarretaria custos para a administração pública.
O Tribunal de Contas da União já enfrentou a matéria, decidindo pela possibilidade de continuidade contratual nos casos de cisão, fusão ou incorporação da empresa contratada, afigurando-se possível se atendidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) previsão no edital e no contrato, nos termos do art. 78, inciso VI da Lei nº 8.666/93;
b) cumprimento pela nova empresa dos requisitos de habilitação estabelecidos no art. 27 da Lei nº 8.666/93, originalmente previstos na licitação;
c) manutenção das condições estabelecidas no contrato original.
Posteriormente, nos acórdãos n.º 113/2006; 2071/2006 e 634/2007 o mesmo Tribunal de Contas, em posição mais flexível, passou a admitir, corroborando o entendimento já defendido por Marçal Justen Filho, a possibilidade de continuidade contratual, ainda que não prevista expressamente no edital e no contrato.
Nesse sentido, cabe destacar parte do voto do Ministro Marcos Vinícios Vilaça, relator do Acórdão TCU n.º 2071/2006:
“[...] 5. Acerca da legalidade de fusão, incorporação ou cisão em contratos administrativos, frente ao disposto no art. 78, inc. VI, da Lei nº 8.666/93, o TCU entendeu, em consulta formulada pela Câmara dos Deputados, por meio do Acórdão 1.108/2003 do Plenário, que é possível a continuidade dos contratos, desde que sejam observados os seguintes requisitos: - tal possibilidade esteja prevista no edital e no contrato; - a nova empresa cumpra os requisitos de habilitação originalmente previstos na licitação; e - sejam mantidas as condições originais do contrato.
6. Vale dizer, acerca do primeiro requisito, que o Tribunal vem evoluindo para considerar que, restando caracterizado o interesse público, admite-se a continuidade do contrato, ainda que não prevista a hipótese de reorganização empresarial no edital e no contrato. Essa é a posição, aliás, da Unidade Técnica, do autor da representação e do órgão contratante do Distrito Federal. Ademais, está contida no recente Acórdão nº 113/2006 - Plenário.
7. Penso ser louvável a evolução jurisprudencial ocorrida no TCU sobre essa matéria. A dinâmica empresarial inerente a um mercado competitivo e globalizado, que impõe a necessidade de alterações na organização da sociedade para a sua própria sobrevivência, não pode ficar engessada por falta de previsão, nos contratos administrativos, sobre a possibilidade de alteração organizacional, por meio de cisão, fusão ou incorporação.
8. A proibição de alteração da organização da sociedade contratante com a Administração pública poderia, ao contrário do desejado pela norma, levar ao seu enfraquecimento e, assim, oferecer riscos à plena execução contratual.
9. É sabido que, nos contratos administrativos, a Administração pública participa com supremacia de poderes na relação jurídica, com suporte no objetivo de fazer prevalecer o interesse público sobre os interesses particulares. E para isso, a Administração dispõe de prerrogativas, entre elas a possibilidade de alterar ou rescindir unilateralmente os ajustes e de aplicar sanções legais.
10. Assim, a previsão contida no art. 78, inc. VI, no que tange à ocorrência de fusão, incorporação ou cisão, deve ser vista como uma prerrogativa, uma faculdade da Administração, e não como uma conseqüência direta e inexorável da reorganização empresarial, que não admite avaliação acerca do interesse público na adoção da medida extrema.
11. A rescisão há de ser aplicada quando a hipótese prevista no dispositivo mostrar-se inconveniente para o serviço público ou quando ferir os princípios básicos da Administração pública.” (grifos nossos)
Não obstante os entendimentos acima externados, Marçal Justen Filho sustenta a possibilidade de manutenção da avença, ainda que ausente a previsão editalícia e contratual, desde que haja comprovado interesse público e tal ato não cause prejuízo à execução do contrato:
“A alteração subjetiva deve ser admitida quando não importar sacrifício das condições originalmente pactuadas acerca da execução do contrato. Se as condições objetivas da proposta forem mantidas, a alteração subjetiva não representará qualquer infringência ao postulado da prevalência das funções estatais” (cf. in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 12ª ed., Dialética, São Paulo, 2008, p. 777).
Ademais, há ainda que frisar a consonância do caso com os princípio da eficiência e economicidade, servido-se aquele não apenas para regular a atividade da administração pública perante a coletividade, mas também em suas decisões internas.
E quanto ao princípio da economicidade, é significante o que leciona Jussara Maria Moreno Jacintho, no seu Livro "A participação Popular e o Processo Orçamentário", LED - Editora de Direito, 2000, pg. 104, quando menciona que
"O princípio da economicidade tem como objetivo complementar restabelecer o ideal de eficiência da Administração, que se consubstancia em empreender os maiores esforços para que, com o mínimo de recursos empregados, se obtenha o fim pré-estabelecido".
Considerações finais
Destarte, entendemos que a administração pública deverá proceder nesses casos com a competente alteração contratual, observadas as exigências legais, promovendo a continuidade do contrato administrativo nas hipóteses de sucessão empresarial, por ser menos oneroso e mais viável para a ente público, não prejudicando a execução do contrato e o interesse público almejado, tudo em consonância com o entendimento doutrinário e jurisprudencial mais recente, primando pela possibilidade de continuidade do contrato, uma vez mantidas todas as condições inicialmente pactuadas, inclusive no que tange aos requisitos de habilitação e qualificação técnica.
[1] Estabelece normas gerais sobre licitações e contratos.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 586.