Resumo: A validade da Lei da Ficha Limpa perante a Constituição de Federal de 1988 constitui o objeto deste trabalho, o qual analisa o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato eletivo, considerada a vida pregressa do candidato, bem como os princípios constitucionais que devem ser ponderados para justificar a constitucionalidade da nova lei.
Apresentam-se, inicialmente, algumas noções gerais sobre os institutos relacionados com o tema central do trabalho, tais como: conceito e força normativa dos princípios; princípios da Moralidade e da Presunção de Inocência; aspectos relevantes sobre o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato, conforme art. 14, §9º, da Constituição Federal; necessidade e relevância da ponderação de princípios constitucionais; surgimento da Lei da Ficha Limpa; princípios da Anualidade e da Irretroatividade da Lei; prevalência da Moralidade e a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/2010).
Durante o desenvolvimento do trabalho, introduzidos alguns conceitos básicos para compreensão do tema, especialmente sobre os princípios constitucionais, apresentam-se fundamentos de ponderação do Princípio da Moralidade com o Princípio da Presunção de Inocência, já que presente o conflito entre estes princípios na Lei Complementar n. 135/2010. Defende-se que a validade da Lei da Ficha Limpa deve fundar-se na vontade constitucional de prestigiar o Princípio da Moralidade, o qual deve ser maximizado quando em colisão com o Principio da Presunção de Inocência.
Ao final, expõe-se que o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato, por tutelar o interesse coletivo, deve prevalecer sobre o direito individual do candidato que pretende disputar um mandato eletivo, mesmo que alegue Presunção de Inocência, ante a falta do trânsito em julgado de decisões que ensejam inelegibilidade nos termos da nova lei.
Palavras-chave: Princípios. Presunção. Inocência. Moralidade. Mandato. Vida Pregressa. Inelegibilidade.
Sumário: Introdução. 1. Princípios – Força Normativa. 2. Princípio da Presunção de Inocência. 3. Princípio da Moralidade. 4. Princípio da Moralidade para o Exercício do Mandato. 5. A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/2010). 6. Ponderação de Princípios Constitucionais na Lei da Ficha Limpa. 7. A Moralidade como princípio validador da Lei da Ficha Limpa. Conclusão. Referências.
“A moralidade é a melhor de todas as regras para orientar a humanidade.”
[Friedrich Nietzsche]
INTRODUÇÃO
Cansados com a habitual corrupção praticada pelos candidatos eleitos, mais de um milhão e meio de brasileiros apoiaram a iniciativa popular que originou a Lei Complementar n. 135/2010. A norma acrescentou novas hipóteses de inelegibilidades à Lei Complementar n. 64/1990.
O objetivo da nova lei, também conhecida como Lei da Ficha Limpa, é o de impedir que candidatos com vida pregressa reprovável participem das eleições. Conseqüentemente, permite que apenas os que detenham moralidade possam participar das eleições e, se eleitos, exercer o mandato eletivo, conforme prevê o §9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988.
A edição da lei veio em resposta ao clamor do povo, que está notoriamente enfastiado com o habitual domínio da corrupção no poder, praticada pelos mandatários eleitos. Esse cenário impulsionou a aprovação das alterações na Lei Complementar n. 64/1990 de forma a se aviltar a necessidade da moralidade para o exercício das funções públicas eletivas.
Tem-se notado que não há mais razoabilidade em se permitir que candidatos com vida pregressa desabonadora participem das eleições, pois a história tem mostrado que, se eleitos, são indignos de representar o povo, porquanto atentam - em regra - contra o interesse da coletividade.
O cidadão tem o direito e o Estado tem o dever de manter a higidez das eleições, depurando-as para impedir a participação de pessoas que não reúnam a moralidade mínima para exercer o mandato. O povo não pode correr o risco de ter como opções apenas candidatos com vida pregressa inidônea, até porque o modelo brasileiro de representação popular é carente de instrumentos mais rápidos e eficientes de destituição do mandatário inidôneo, como é o recall, por exemplo, onde o próprio povo revoga o mandato. Esse importante instituto ainda não fez parte das tímidas reformas eleitorais que o Brasil tem realizado, embora a Lei da Ficha Limpa represente razoável modificação.
A Lei Complementar n. 135/2010, ao prever novas hipóteses de inelegibilidade, contribui sobremaneira para a purificação das eleições e, consequentemente, para o ganho qualitativo na representação popular. Nesse aspecto, surge importante o papel do Poder Judiciário que, pelo seu poder contramajoritário, poderá decidir pela validade ou não da nova lei, ainda que isso seja contrarie a vontade popular que impulsionou a lei.
Ocorre que essas novas hipóteses de inelegibilidades, embora objetivamente previstas na norma, têm sido duramente criticadas, principalmente pelos candidatos, os quais alegam que a lei ofendeu inúmeros princípios constitucionais, notadamente os da Presunção de Inocência (art. 5º, LVII), da Anualidade (art. 16) e da Irretroatividade da Lei (art. 5º, XL, XXXVI). Essa é a problemática central deste trabalho.
Nesse contexto, ergue-se imprescindível o estudo do tema para identificar uma solução razoável que venha harmonizar essa alegada colisão de princípios constitucionais e, por conseqüência, confirmar a validade da nova lei diante da Carta da República.
Em assim sendo, opta-se por identificar, compreender, desenvolver, avaliar e criticar, sucinta e especialmente com fundamentos utilizados pela doutrina, a validade da Lei da Ficha Limpa frente à Constituição da Federal, a fim de visualizar uma solução ponderada para a problemática que do tema exsurge.
A metodologia a ser utilizada justifica-se pela tendência atual de enfocar, sempre que possível, nos trabalhos acadêmicos, um viés crítico, comparativo e empírico. Tudo no interesse do debate necessário teoria/prática, de forma a não ficar afeito a abstrações purificadas, infensas às ligações direito/sociedade. A pesquisa desenvolvida é do tipo bibliográfica e documental. Em relação à tipologia, segundo a utilização dos resultados colhidos, é pura, porquanto, sem querer modificar a realidade, o que se espera é a busca de conhecimentos; quanto à abordagem, é qualitativa, uma vez que se objetiva uma maior compreensão das ações e relações humanas e uma observação dos fenômenos sociais causados pelo objeto analisado. No que se refere aos objetivos, a pesquisa é descritiva e exploratória, tendo em vista que classifica, explica e interpreta os dados e fatos, procurando aprimorar idéias e buscar mais informações sobre o tema estudado. Feitas essas considerações, esclarece-se o plano de trabalho.
O presente estudo inicia-se com a demonstração que os princípios detêm força normativa e função fundamentadora, interpretativa e supletiva do ordenamento jurídico, o que é de basilar importância para se compreender mais adiante a ponderação de princípios constitucionais.
Em seguida, faz-se breve exposição sobre o Princípio a Presunção de Inocência, destacando-se sua imprescindibilidade para os indivíduos, sua relatividade e sua aplicação ao Direito Eleitoral.
O próximo capítulo trata do Princípio da Moralidade em sentido amplo, ocasião em que se destaca sua relação com o Princípio da Legalidade e relevância para a coletividade.
O capítulo seguinte trata ainda sobre o Princípio a Moralidade, só que limitado ao exercício do mandato, oportunidade que se chama atenção para o desejo do legislador constitucional de considerar a vida pregressa do candidato para o exercício da função pública.
Por fim, a última parte do desenvolvimento do trabalho enfrenta a ponderação dos princípios constitucionais relacionados com a Lei da Ficha Limpa, de maneira a demonstrar o sentido validador do Princípio da Moralidade. É feito um balanceamento especial entre o Princípio da Presunção de Inocência e o da Moralidade. Demonstra-se que há um efetivo conflito de interesses. De um lado existe o direito de pleno exercício de direitos políticos do cidadão, no caso pretenso candidato, e de outro à proteção à moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato.
O candidato quer participar das eleições e invoca que algumas das novas hipóteses de inelegibilidade ofendem o Princípio da Presunção de Inocência previsto no art. 5º, LVII, CF/88. O legislador, por sua vez, invocou o prestígio à moralidade como supedâneo para regulamentar hipóteses de inelegibilidade, ainda que para isso fosse preciso dispensar em alguns casos o trânsito em julgado das decisões, bastando que fossem editadas por órgão colegiado.
Sabe-se que os princípios não se excluem do ordenamento jurídico, pois a Carta da República constitui uma unidade e suas normas devem ter a máxima efetividade. Portanto, havendo colisão entre princípios, necessária se faz admitir a adoção do critério da ponderação, vale dizer, deve o intérprete perquirir qual deles deve prevalecer e qual deve ser mitigado com o menor sacrifício possível.
O tema, dessa forma, leva à adoção da técnica do juízo de proporcionalidade para identificar qual seria a solução constitucionalmente adequada para manter válida a Lei da Ficha Limpa nas hipóteses que prevê inelegibilidade em decisões que dispensam o trânsito em julgado.
Afinal, o que se pergunta e se verá neste trabalho é se a exigência de moralidade para o exercício do mandato pode relativizar outros princípios constitucionais, notadamente o clássico Princípio da Presunção de Inocência.
1. PRINCÍPIOS – FORÇA NORMATIVA
É fácil perceber a importância que a comunidade jurídica, notadamente os tribunais superiores, tem atribuído aos princípios quando se depara com casos polêmicos (hard cases) que exigem maior fundamentação e interpretação como forma de convencer os destinatários das decisões judiciais. Esse prestígio dos princípios ficou evidente nos julgamentos dos registros de candidaturas nas Eleições Gerais de 2010 no Brasil.
Por ocasião da edição da Lei Complementar n. 135/10, a qual atribuiu nova redação à Lei Complementar n. 64/90 para regulamentar hipóteses de inelegibilidades com base na vida pregressa do candidato, a sociedade e os tribunais travaram longos debates sobre os princípios relacionados com o tema. Discutiu-se a constitucionalidade da nova lei diante de princípios clássicos como o da Irretroatividade da Lei, Presunção de Inocência, Duplo Grau de Jurisdição, Moralidade, Legalidade, Anualidade, dentre outros.
É imperioso, portanto, discorrer brevemente sobre os princípios e, considerando o enfoque deste trabalho, que busca analisar a Lei da Ficha Limpa em relação aos princípios da Moralidade e da Irretroatividade da Lei, deve-se tratar ainda quanto à força normativa que os princípios detêm no ordenamento jurídico atual.
A doutrina constitucional mais moderna tem afirmado que os princípios não são destituídos de força normativa, embora já se tenha defendido o contrário em outros tempos. Isso significa que os princípios não são meras orientações. Pelo contrário, princípios são postulados irradiantes com força vinculante e normativa, especialmente quando estão encartados na Constituição Federal. Na classificação mais moderna, eles integram o conceito do gênero norma jurídica, da qual são espécies os princípios e as regras, ou para outros, as normas-princípios e as normas-regras.
Nesse sentido, José Afonso da Silva destaca que os princípios são ordenações que se irradiam para os sistemas de normas. Ao traçar a diferença entre os princípios e normas, diz ainda que:
As normas são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem.
Os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais’. Mas, como disseram os mesmos autores, ‘os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional.
Há, no entanto, quem concebe regras e princípios como espécies de norma, de modo que a distinção entre regras e princípios constitui uma distinção entre duas espécies de normas (2006, p. 669).
Princípios são assim normas que confluem valores e se irradiam para os sistemas jurídicos fixando balizas a todas as espécies de ação jurídica. Servem de base para o Direito e são instrumentos imprescindíveis para a solução de casos difíceis (hard case) como o da Lei da Ficha Limpa, já que, segundo Dworkin (1989, p.72),[2] derivam do campo da moral como standarts ou padrões de valores socialmente consagrados. Vale dizer, como lembra Ivo Dantas, os princípios revelam a própria estrutura ideológica estatal representada pelos valores consagrados pela sociedade, in verbis:
[...] princípio é categoria lógica e, tanto quanto possível universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal, representativa dos valores consagrados por uma determinada sociedade (1995, p. 59).
Nota-se que os princípios são ordens mandamentais, nucleares e fundamentais de um sistema, de um todo, a base principal do ordenamento normativo, sendo que para uma norma ser classificada como princípio é indispensável sua qualidade de irradiar balizas, de ser transcendental. Celso Antônio Bandeira de Melo traz objetiva lição sobre a questão.
Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido (1994, p. 450).
Assim, considerada a delimitação do tema neste trabalho, e não se distanciado do contexto jurídico, deve-se ficar bem claro que, atualmente, a natureza jurídica dos princípios é eminentemente normativa e não apenas declarativa. Eles representam os valores consagrados pela sociedade.
Fixadas essas primeiras premissas, impõe-se reconhecer que os princípios desempenham papel determinante no ordenamento jurídico, servindo-o por meio de suas tríplices facetas, como bem pontua Paulo Bonavides (2000, p. 54).
Afirma o autor que os princípios têm três facetas específicas no ordenamento jurídico, a saber: fundamentadora, interpretativa e supletiva.
A primeira se refere à capacidade de os princípios servirem de base ao ordenamento jurídico em razão de representarem os valores maiores da sociedade. Eles embasam o sistema normativo, bem como têm a capacidade de expurgar todas as normas que lhe forem adversas.
Já a faceta interpretativa serve de vetor de orientação ao exegeta jurídico na interpretação das normas para adequá-las aos valores básicos. Daniel Sarmento aprofunda esse aspecto interpretativo, lecionando que:
Os princípios constitucionais desempenham também um papel hermenêutico constitucional, configurando-se como genuínos vetores exegéticos para a compreensão e aplicação das demais normas constitucionais e infraconstitucionais. Nesse sentido, os princípios constitucionais representam o fio-condutor da hermenêutica jurídica, dirigindo o trabalho do intérprete em consonância com os valores e interesses por eles abrigados (2000, p. 54).
Afinal, por todas as razões lançadas, quer se demonstrar que o princípio é o início, a base, o trilho, a fonte irradiativa, a "prima ratio, primeira concretização normativa de um valor, é um fundamento das regras, com força prospectiva, revelando o conteúdo e o limite das demais normas, como seus alicerces" (MELLO, 2007, p. 193).
Por tais fundamentos, uma vez que os princípios possuem força normativa e são superiores às regras, porque estruturantes, devem ser observados e respeitados tais quais as regras, sendo de grande e inarredável importância para a solução das questões jurídicas sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa.
2. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Inúmeros candidatos barrados na Lei da Ficha Limpa nas Eleições Gerais de 2010 sustentaram a tese que Lei Complementar n. 135/2010 era inconstitucional, pois ofendia o Princípio da Presunção de Inocência previsto na Carta da República ao imputar como inelegíveis os que detinham, por exemplo, condenação judicial por órgão colegiado ainda sem trânsito em julgado.
Por tais razões e diante do propósito deste trabalho, cumpre fazer breve menção ao que vem a ser exatamente o Princípio da Presunção de Inocência alegado pelos candidatos.
O Princípio da Presunção de Inocência está previsto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Trata-se de um dos preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito e destina-se especialmente à tutela da liberdade pessoal dos acusados no processo penal.
O princípio teve origem na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual dispõe em seu art. 9º que:
Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.
Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948[3] também previu o Princípio da Presunção de Inocência, especificamente:
Artigo XI. Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa.
Em seguida, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, firmado em 1969, em seu artigo 8º, número 2, do qual o Brasil é signatário, repetiu o principio da Presunção de Inocência, estabelecendo que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.[4]
A previsão do princípio em declarações internacionais revela sua importância como uma das mais relevantes garantias constitucionais do cidadão. Com esse status internacional, pode-se até cogitar que o cidadão poderá invocar os tribunais internacionais para que seja observado o princípio, caso desrespeitado por seu país de origem.
A propósito, o Princípio da Presunção de Inocência, ou do “Estado de Inocência” para alguns, também é entendido por parte da doutrina como “Presunção de Não Culpabilidade”. Nesse aspecto, Mario Chivario assevera que:
Embora não se trate, de perspectivas contrastantes, mas convergentes, é forçoso reconhecer que no primeiro caso se dá maior ênfase aos aspectos concernentes à disciplina probatória, enquanto que no segundo se privilegia a temática do tratamento do acusado, impedindo-se a adoção de quaisquer medidas que impliquem sua equiparação com culpado (1982, p. 12).
Para Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, o Princípio da Presunção de Inocência é sinônimo de Não Culpabilidade e apresenta dimensão multifacetária, in verbis:
A propósito da dimensão do princípio da presunção de inocência, George Sarmento enfatiza a necessidade de ‘cristalizar a presunção de inocência como um direito fundamental multifacetário, que se manifesta como regra de julgamento, regra de processo e regra de tratamento’. Cria-se assim ‘um amplo espectro de garantias processuais que beneficiam o acusado durante as investigações e a tramitação da ação penal’, porém, ‘sem impedir que o Estado cumpra sua missão de investigar e punir os criminosos, fazendo uso de todos os instrumentos de persecução penal previstos em lei’, assegurando o combate legítimo e efetivo da criminalidade.
Vale destacar ainda que o princípio da presunção de inocência tem sido encarado como sinônimo de presunção de não-culpabilidade. São expressões equivalentes. Está é a nossa posição. Não podemos desmerecer, contudo, que em face da redação esboçada no inc. LVII do art. 5º da CF, ensaiou-se uma distinção entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade (2009, p. 45).
Já para Mirabete, a Constituição Federal sequer presume a inocência. No seu entender, ela apenas declara a não culpabilidade, in verbis:
O que se entende hoje, como diz Florian, é que existe apenas uma tendência à presunção de inocência, ou, mais precisamente, um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. Assim, melhor é dizer-se que se trata do ‘princípio de não-culpabilidade’. Por isso, a nossa Constituição Federal não ‘presume’ a inocência, mas declara que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII), ou seja, que o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e se estado só se modifica por uma sentença final que o declare culpado (2001, p. 42).
O objetivo central do princípio é que o Estado estabeleça procedimentos que equacionem a pretensão punitiva estatal - jus puniendi - e o direito de liberdade assegurado ao acusado, a fim de suspender sua periculosidade com medidas razoáveis (prisões provisórias), se necessárias, até sentença penal condenatória com trânsito em julgado, única ocasião que poderá ser considerado definitivamente culpado.
O princípio serve de trilho para que o Estado, no exercício de seu direito-dever de punir, mantenha-se de acordo com os preceitos fundamentais que tutelam o direito a liberdade do individuo, não podendo ultrapassar os limites legais. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade surgem nesse norte para assegurar que a liberdade dos indivíduos não será restringida de forma indevida, pois, caso contrário, poderá o acusado reclamar a devida correção socorrendo-se ao duplo grau de jurisdição.
O Princípio da Presunção de Inocência assegura ao acusado as seguintes conseqüências processuais: o direito à ampla defesa, ao duplo grau de jurisdição, ao direito de apelar em liberdade, ao direito de prova, ao direito de silêncio, ao direito de ser tratado com dignidade, ao direito de inviolabilidade da sua intimidade, à vida privada, à honra e à imagem.
Destarte, no ordenamento jurídico pátrio, antes de ser aplicada qualquer forma de sanção ao indivíduo, aquele que se encontra na condição de réu deve passar por uma acurada averiguação de todos os elementos e provas que compõem o fato delituoso, de forma que não seja tolhido o fundamental direito de liberdade de pessoas inocentes até sentença penal condenatória com trânsito em julgado.
A esta altura já pode se verificar que, no aspecto penal, está clara a aplicação do Princípio da Presunção de Inocência, até porque para esta finalidade se destina expressamente na Constituição Federal. Porém, cumpre estudar se poderia ser utilizado pelos candidatos como princípio no Direito Eleitoral, especificamente nos processos de registro de candidatura, os quais têm natureza cível-eleitoral.
O referido princípio pode ser aplicado à seara cível-eleitoral, já que pode ser entendido como princípio basilar dos processos em geral, destinados a qualquer acusado, ainda que no campo cível. Inclusive esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, esboçado no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 144, em agosto de 2008, na qual se concluiu pela aplicação do Princípio da Presunção de Inocência no Direito Eleitoral.
Eficácia irradiante da presunção de inocência – Possibilidade de extensão desse princípio ao âmbito do processo eleitoral - Hipóteses de inelegibilidade – Enumeração em âmbito constitucional (CF, art. 14, §§ 4º A 8º) – Reconhecimento, no entanto, da faculdade de o Congresso Nacional, em sede legal, definir ‘outros casos de inelegibilidade’ – Necessária observância, em tal situação, da reserva constitucional de lei complementar (CF, art. 14, § 9º) – Impossibilidade, contudo, de a lei complementar, mesmo com apoio no § 9º do art. 14 da constituição, transgredir a presunção constitucional de inocência, que se qualifica como valor fundamental, verdadeiro ‘cornerstone’ em que se estrutura o sistema que a nossa carta política consagra em respeito ao regime das liberdades e em defesa da própria preservação da ordem democrática - Privação da capacidade eleitoral passiva e processos, de natureza civil, por improbidade administrativa – Necessidade, também em tal hipótese, de condenação irrecorrível – Compatibilidade da Lei n. 8.429/92 (Art. 20, ‘caput’) com a Constituição Federal (art. 15, V, c/c o art. 37, § 4º) – O significado político e o valor jurídico da exigência da coisa julgada [...]
O efeito irradiante da ADPF, embora vincule a Justiça Eleitoral por força do art. 10, §3º, Lei n. 9.868/99 (efeito vinculante), não significa que o princípio não poderá ser balanceado com outro de mesmo patamar constitucional, conforme se demonstrará mais adiante.
Veja-se, assim, que o Princípio da Moralidade, postulado de proteção positivado na Constituição Federal, não se contem apenas ao processo penal, decerto transcende para o campo cível, em especial para o Direito Eleitoral.