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Regime disciplinar diferenciado: dissecando a constitucionalidade da execução de pena do inimigo

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09/04/2014 às 11:45
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4- Direito Penal do inimigo

Ao levantar um regime disciplinar diferenciado de execução de pena o Estado elege um inimigo potencial, tendo que combatê-lo para justificar e reafirmar a confiança no próprio sistema. Bodin já advertia que é saudável (c’ est une chose slutaire) para o corpo da República buscar e punir severamente os ‘bruxos’ (inimigos). De outra maneira, existe o perigo do próprio povo matar a pedradas os magistrados e os bruxos15.

O inimigo sempre existiu! O direito pré moderno já identificava o tratamento penal diferenciado16. A essência do inimigo tem suas origens no direito romano. Carl Schimit, teórico do Estado Absoluto resgatou os preceitos romanos ao estabelecer o estrangeiro como hostil17, elegendo-o como inimicus, negando-lhe toda sorte de direito, impondo, ao mesmo, por consequência, severas e pontuais repressões.

Desde sua própria origem18o poder punitivo mostrou formidável capacidade de perversão montada na perspectiva de contenção social pela imposição do medo, legitimando verdadeiras políticas de aniquilamento. Na idade moderna a Europa presenciou uma perseguição política e social denominada caça as bruxas. Calcava-se no malefício exponencial das mesmas19. A bruxa era o inimigo a ser combatido e eliminado, sua identificação detinha critérios, que hoje são compreendidos como absolutamente insensatos. Não longe, a brutalidade nazista vitimou centenas de milhares de judeus, enquanto o stalinismo eliminava diretamente aqueles que podiam se tornar indesejáveis segundo a paranoia do autocrata20.

A teoria do Direito Penal do Inimigo foi apresentada pela primeira vez durante uma palestra proferida no Seminário de Direito Penal, ocorrido no ano de 1985, em Frankfurt, pelo doutrinador Günther Jakobs. Sua doutrina21, ciente da gravidade de algumas atividades delitivas, impõe a reação diferenciada da sociedade contra o inimigo.

Jakobs cria, na verdade, a figura do não cidadão (inimigo/hostil), para o qual o direito penal vigente não teria eficácia. Quando alguém, por livre iniciativa, decide adotar o crime como “estilo de vida” ou modus vivendi, abandonando assim o status de cidadão, torna-se um inimigo do Estado. Para combatê-lo submerge um direito de reação contra o hostil e não mais contra o fato criminoso.

Jakobs não inova, não cria o inimigo e, muito menos, inaugura as medidas de emergência, porém, a franqueza do vocabulário é o seu acerto. Torna explícito a existência de inimigos estatais e seu inevitável caráter de não pessoa, ele desnuda o fenômeno, admite a figura do hostil dentro do Estado de Direito, muito embora, tente fazê-lo, alocando o direito do inimigo fora do dogma do direito penal.

O grande problema é que a aplicação de um direito penal do inimigo que desconheça os limites do próprio direito penal, da lei e dos sistemas de garantias, remete-nos a um sistema de não direito, colocando em jogo a existência ou a identidade constitucional do próprio Estado.

Ao consagrar o conceito de hostil alvorece um modelo de Estado absoluto onde a neutralização do mal eleito e a eliminação do obstáculo coligido justificam, por si só, o direito penal do inimigo. Suprimem-se garantias individuais sob a perspectiva de que a agressão Estatal é necessária para salvaguarda da sociedade.

Toda identificação do inimigo se baseia em um mito, gerando uma relação inversa entre o grau de irracionalidade e brutalidade do poder repressivo e o nível de elaboração do discurso que procura legitimá-lo22. O poder punitivo sempre esteve pautado em uma seletividade estrutural, reprimindo de modo diferente os iguais e os estranhos, os amigos e os inimigos.

A prerrogativa de escolha do inimigo é do Estado, o qual, nem sempre o elege em razão da gravidade do crime praticado, mas sim, por vezes, do caráter do agente, seu estilo de vida, personalidade, antecedentes, conduta social e dos motivos que o levaram à infração penal. Dentro desta concepção, surge a culpabilidade do caráter, culpabilidade pela conduta de vida ou culpabilidade pela insegurança que a mera existência do indivíduo gera para o estado. Inaugura-se uma culpabilidade por “eleição estatal”23, não raro, pela bandeira de um direito penal do autor.

Aqui reside o grande flagelo do direito penal no inimigo, pois, mais cedo ou mais tarde, o conceito de inimigo pode ser estendido àquele a quem o soberano tiver interesse em reprimir, viabilizando ações de neutralização por razões de poder ou conveniência.

Ao admitir o inimigo, assistimos a possibilidade da própria neutralização do Estado de Direito. O verdadeiro perigo do direito penal do inimigo não está na sua severidade de tratamento e sim na volatilidade da eleição do inimigo pela autoridade Estatal.

Jakobs, navega pela história da filosofia política e iluminista, indo de Hobbes até Kant, apresentando diversas fundamentações de um tratamento diferenciado para cidadãos e inimigos. A distinção feita por Jakobs tem cunho descritivo, e não, propriamente, crítico.

A doutrina contemporânea serve-se da nomeclatura (direito penal do inimigo) para descrever, criticamente, tendências da moderna legislação penal. Como enredo, parte do pressuposto lógico, de que, é impossível recusar a seres humanos o status de pessoa, para, por fim, inadmitir o tratamento do indivíduo como inimigo. Esta doutrina não ignora a funcionalidade de Jakobs, o qual, pretendia reestabilizar a norma violada em sua vigência. Ninguém desconhece que o propósito do criador fora edificar doutrinariamente um direito penal do inimigo que não contaminasse o direito penal do cidadão24.

O discurso de Jakobs aflora problemas de ordem conceitual, os quais dificultam a apreciação crítica da matéria. A expressão <<direito penal do cidadão>> é um pleonasmo; enquanto o <<direito penal do inimigo>>, uma contradição em seus termos25. A própria nomenclatura “direito penal do inimigo” não está suficientemente clara. De um ponto de vista semântico, sim: o direito penal do inimigo é o tipo ideal de um direito penal que não respeita o autor como pessoa, mas que almeja neutralizá-lo como fonte de perigo. Mas se o conceito é claro do ponto de vista semântico, permanece ele deveras obscuro no que diz respeito ao seu significado pragmático, isto é, às finalidades ou funções que se tentam alcançar com sua utilização no discurso científico26. Parte da doutrina utiliza a expressão com função crítico-denunciadora, ou seja, visa identificar em algum dispositivo a doutrina do inimigo para estigmatizá-lo, de plano, como antiliberal e contrário ao estado de direito, apontando, assim, a necessidade de reforma.

O que podemos afirmar, prematuramente, é que nem Jakobs, muito menos seus opositores são claros quanto ao conceito do ‘direito penal do inimigo’ o que leva a utilização não unívoca da expressão. Assim, a partir deste capítulo, pouco nos importará a maneira com que o criador vê sua criatura, e tampouco como ela é vista pelos participantes da discussão. O que nos importa é um questionamento de legitimidade: a aplicação do RDD, em si, pode contrastar os dogmas maiores do direito penal, que são a igualdade e a dignidade da pessoa humana?

Não negaremos a doutrina de Jakobs. Enfrentaremos o dogma do direito penal do inimigo na perspectiva do seu conceito legitimador-afirmativo27. Isto significa que, ao identificarmos no regime disciplinar diferenciado fragmentos da doutrina do direito penal do inimigo não condenaremos, de plano, o instituto. Teremos sim, a cautela de apreciar a legitimidade do RDD com base em pressupostos diversos daqueles que valem para os dispositivos tradicionais do direito penal do cidadão. Estes pressupostos serão a proporcionalidade e racionalidade.

Não iremos indagar se o direito penal do inimigo é ‘justo’, uma vez que a expressão justiça é instável, sujeita a ótica pessoal do hermeneuta. Mas, daremos vazão a análise da ‘legalidade, adequabilidade e constitucionalidade’ desta proposta de direito que, definitivamente, inspira o Regime Disciplinar Diferenciado.


5- RDD: A legitimidade da execução de pena do inimigo

O RDD se auto justifica na perspectiva de que viabiliza a neutralização do criminoso. Não se trata de um direito penal simbólico28. A dureza da sanção é fator de reafirmação da norma, pela utilização de seu caráter geral protetivo. Combate-se um ‘hostil’, o integrante das organizações criminosas

É inquestionável que o RDD identifica-se com o dogma do direito penal do inimigo, uma vez que, se atinge, de forma acentuada, o direito de liberdade do reeducando, suprimindo, ao máximo, todo seu contato com o mundo extra muro.

Fragmento da doutrina, contemplando uma perspectiva funcionalista da sanção, subentende que a política brasileira de cumprimento de pena não ampararia a execução de pena em Regime Disciplinar Diferenciado. Esta corrente parte do pressuposto que o artigo 1° da LEP 29 traça, uma política criminológica pautada pela necessidade de integração social do ergastulado, visando o processo de reinserção comunitária30.

Com o surgimento do RDD, outorgou-se a reclusão nova natureza, com dúplice função: intimidadora (pedagógica) e acautelatória, visando promover o isolamento necessário para a segurança dos presídios e da sociedade.

No RDD a pena se justifica pelo seu caráter negativo geral (intimidação) e especial (segregação e inocuização)31, percebendo-se um afastamento da política ressocializadora, mas, sem que haja abandono à humanidade da pena.

O aspecto ressocializador da sanção não é a expressão máxima e única da dignidade da pena. A prisão é a modalidade de pena mais estigmatizante que existe no direito brasileiro, independentemente de como ela seja aplicada. A reclusão é, por si só dessocializante.32

O ideal ressocializador é do Estado e não, específico da pena, de modo que não podemos transferir para instância punitiva estatal, de forma inoportuna o fardo de “transformar” o delinquente. A instância adequada para transformação social é a educacional ou assistencial. É saudável que políticas sociais sejam implementadas na execução da pena, mas elas não são requisitos necessários e imperativos da sanção extrema, que é a privativa de liberdade.

É vã ilusão, esperar que a segregação de liberdade possa provocar a ressocialização do indivíduo. O problema da violência criminal, seja ela difusa ou organizada, não será resolvido por meio da promulgação de leis penais segregativas.

A prisão, no regime que for, perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece, é uma fábrica de reincidentes, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime, normalmente, pelo ambiente perverso que ela propicia. Entretanto, este argumento não pode ser subterfúgio para inércia estatal. O Estado deve cumprir sua função social de garantir a segurança pública, mesmo quando, para tanto, deva o ‘indivíduo infrator’ sofrer acentuada restrição em suas liberdades individuais.

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A bem da verdade, o RDD demonstra toda a incompetência do Estado no combate a grave criminalidade e, principalmente, anuncia a falência do sistema prisional ordinário. A segregação extrema fomenta alguns aspectos maléficos da pena privativa de liberdade33, mas garante a gênese do estado democrático de direito, que é a segurança da sociedade. Sem segurança, há falsa liberdade de todos.

O cárcere é ambiente nefasto, promiscuo e subversor extremo do reeducando, mas, infelizmente, necessário, no estágio evolutivo que nos encontramos. Enquanto novas alternativas não surgem, um embate ideológico deve ser resolvido: Direitos Individuais x Segurança Pública da Sociedade.

Para Becaria34 a prevenção é melhor solução do que a punição. As instâncias de contenção social como a escola e família são ambientes mais seguros e, ao mesmo tempo hábeis para tornar os homens menos inclinados à pratica do mal35. Políticas sociais36, desvinculadas da pena de segregação, estas sim, seriam hábeis a diminuir as desigualdades e efetivar processos de inclusões sociais eficientes para diminuir as taxas de criminalidade. É uma utopia, pensar que, a pena privativa de liberdade alcançaria este objetivo.

O RDD busca eficiência na neutralização do inimigo pungente, ciente de que toda prisão, ao tempo que furta a liberdade retira certa "dose" de dignidade do indivíduo. A prisão é um dos preços que se impõe à violação das normas penais, e, como medida extrema, deve provocar no espírito público a impressão mais eficiente e perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado37.

Só existe uma forma de resolver o impasse posto (Dignidade Humana x Segurança Pública): analisar os efeitos do confinamento em RDD, identificando a possível existência de excessos na segregação rígida. Inauguramos, pois, a análise da suposta crueldade do regime, sem nos esquivar de apreciar a necessidade de proteção eficiente da segurança pública.


6- OS EFEITOS DO CONFINAMENTO DISCIPLINAR DIFERENCIADO

Na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.162 a Advocacia Geral da União manifestou-se, categoricamente, no sentido de que o Regime Disciplinar Diferenciado "não imprime dor nem sofrimento físico ou mental ao agente"38. Percebe-se que o então Advogado-Geral da União, e atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, parte de uma premissa equivocada, a qual furta-lhe a oportunidade de melhor análise do tema.

Em 1983, por determinação da Corte de Apelações do Estado de Massachusetts, Stuart Grassian, renomado psiquiatra e professor da Universidade de Harvard, realizou a avaliação de quinze presos da Prisão de Walpole, mantidos em confinamento solitário pelo período médio de dois meses. Embora os presos, a princípio, tentassem convencer o entrevistador de que não se sentiam afetados pelo isolamento, por temerem a retaliação por parte dos guardas prisionais, as entrevistas e testes a que foram submetidos apontaram sintomas específicos comuns a todos os detentos, indubitavelmente resultantes da solidão e da privação de estímulos sensoriais39: hipersensibilidade generalizada a estímulos externos; distorções de percepção; alucinações; delírios; distúrbios físicos; agressividade; paranoia e perda do autocontrole.

Grassian sustenta que:

[...] o isolamento social, associado ao confinamento extremo são nocivos para o funcionamento da mente. O dano causado por tal confinamento pode resultar em prolongada ou permanente deficiência psiquiátrica, incluindo limitações que podem comprometer seriamente a capacidade do detento de se reintegrar à comunidade após ser solto da prisão (GRASSIAN,1994)40.

As conclusões de Grassian foram corroboradas por Craig Haney (1994), doutor em psicologia social e Diretor do Departamento de Estudos Legais da Universidade de Santa Cruz, no Novo México, em um estudo realizado com 100 detentos do presídio de segurança máxima de Pelican Bay, na Califórnia41.

O que se constata é que o isolamento extremo tem efeitos a longo prazo, que resulta na perda das habilidades sociais, da capacidade de conviver e de estabelecer relacionamentos42. Negar a severidade da segregação diferenciada imposta pelo RDD equivale a negar a existência do próprio regime. Não será negando os problemas que alcançaremos as soluções.

O RDD detém a função, bem definida, de neutralização do grave delinquente, visando a salvaguarda da sociedade. Ele rompe com a romântica percepção da pena como veículo único de ressocialização. O Regime Disciplinar Diferenciado Brasileiro aplica severo isolamento em cela individual com a imposição de considerável sofrimento mental ao preso43. ?Rômulo de Andrade Moreira44 chega a denominar o RDD de “monstro”, identificando o regime posto como veículo capaz de levar o detento a loucura e debilidade, avesso a qualquer possibilidade de ressocialização.

A criminalidade grave não é uma patologia social, mas sim, parte da fisiologia natural de qualquer sociedade sã45. Toda nação constrói alternativas hábeis ao combate do transgressor. Ocorre que, em um Estado de Direito, há limites para a opressão estatal, e, um destes limites é a proibição de imposição de penas cruéis. Assim, elevamos o seguinte questionamento: Seria o Regime Disciplinar Diferenciado uma alternativa constitucionalmente válida para o combate às organizações criminosas e o grave delinquente?

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Sobre o autor
Danni Sales Silva

Promotor de Justiça no Estado de Goiás Ex. Promotor de Justiça no Estado do Tocantins. Pós Graduado em Direito Penal. Especialista em Ciências Criminias pela UL (Universidade Lisboa). Especialista em Direito Processual Penal. Mestrando em Ciências Criminias pela Faculdade de Direito de Lisboa. Bacharelando em Filosofia pela PUC-GO. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Professor de Pós Graduação em Direito Processual Penal na Rede Juris de Ensino e PUC/GO. Pesquisador pelo Max Planck Institute for Foreign and International Criminal Law in Freiburg i. Br., Germany. Membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Membro da Confraria do Júri

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Danni Sales. Regime disciplinar diferenciado: dissecando a constitucionalidade da execução de pena do inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3934, 9 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27564. Acesso em: 22 nov. 2024.

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