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Regime disciplinar diferenciado: dissecando a constitucionalidade da execução de pena do inimigo

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09/04/2014 às 11:45
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7- CONSTITUCIONALIDADE DO RDD: penas cruéis x dignidade da pessoa humana.

Identificar o RDD como silhueta do Direito Penal do inimigo e não analisar sua constitucionalidade, seria como descrever o funcionamento de uma cadeira elétrica, sem se pronunciar a favor ou contra a pena de morte46.

O rigor do RDD atentaria contra o princípio da humanidade das penas e por conseguinte representaria violação a dignidade da pessoa humana? Seria o RDD sanção disciplinar cruel? Se a resposta a umas destas indagações for positiva, ressoa a inconstitucionalidade do sistema.

Não existe legislação complementar que forneça o conceito de tratamento desumano, cruel ou degradante, assim, em face da ausência de uma definição precisa utilizamos o conceito de tortura, uma vez esta é uma das versões patentes de desumanidade e crueldade.

O Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, promulga a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes47. De acordo com a mencionada Convenção tortura é:

Artigo 2º. Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica48.

O artigo 1º da Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ratificada pelo Brasil em 28/09/1989, disciplina que: "Artigo 1º - [...] Não se considerará tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequências unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”

O legislador brasileiro ordinário, para efeitos penais, definiu como tortura, o ato de

I- Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II- submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (artigo 1º da Lei nº 9.455/97).

O legislador brasileiro49 afastou-se do conceito internacional de tortura. Enquanto os tratados exigem que o sofrimento físico ou mental seja agudo, para a Lei 9.455/97, basta que a lesão seja praticada com dolo, sem mensuração do suplício sofrido pela vítima. A legislação penal pátria exige um elemento subjetivo especial do agente, consistente na finalidade de obter informação, declaração ou confissão, para provocar ação ou omissão de natureza criminosa.

A restrição de liberdade conjecturada pelo RDD não representa manifestação de tortura. Representa, aflição corporal e psíquica, naturais a espécie de segregação (prisão). Não existe, na conduta do agente carcerário, um fim específico de torturar. A sanção imposta pelo RDD decorre da legislação regularmente imposta, razão pela qual, inexiste violação a humanidade da pessoa segregada.

A jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, subentende que uma conduta só pode ser enquadrada como tortura quando possuir quatro elementos: “envolvimento de funcionário público, dolo de torturar, intenso sofrimento ou graves sequelas sofridas pela vítima – físicas, morais e psicológicas – e a finalidade de obter informação, confissão da vítima ou de terceiro, castigar, intimidar, coagir ou discriminar”50.

A ordem constitucional brasileira51, atenta a regência internacional, veda a imposição de qualquer espécie de pena cruel ao tempo em que reafirma o fundamento da dignidade da pessoa humana. De tudo dito, ressoa uma pergunta instigante: Identificada a patente severidade do RDD, podemos afirmar que a segregação diferenciada representa, por tal razão, ofensa a dignidade da pessoa humana ?

O debate gira em torno da ponderação entre a dignidade individual da pessoa, que se encontra inserida no Regime Diferenciado, e a segurança pública de toda a sociedade.

Não existem garantias absolutas.

Visando harmonizar os interesses em conflito, o RDD se justifica, na perspectiva de que, o Poder Público tem a obrigação de aplicar medidas capazes de garantir a proteção eficiente para segurança da coletividade.

Neste sentido é o Habeas Corpus nº 40.300 do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a constitucionalidade do RDD:

[...] não há falar em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), à proibição da submissão à tortura, a tratamento desumano e degradante (art. 5º, III, da CF) e ao princípio da humanidade das penas (art. 5º, XLVII, da CF), na medida em que é certo que a inclusão no RDD agrava a restrição á liberdade de locomoção, já restrita pelas próprias circunstâncias em que se encontra o custodiado, contudo não representa, per si, a submissão do encarcerado a padecimento físico ou psíquico, impostos de modo vexatório, o que somente restaria caracterizado na hipóteses em que houvesse, por exemplo, o isolamento em celas insalubres, escuras ou sem ventilação. Ademais, o sistema penitenciário, em nome da ordem e da disciplina, bem como da regular execução das penas, há que se valer de medidas disciplinadoras, e o regime em questão atende ao primado da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a severidade da sanção52.

Na aplicação do RDD não ocorrem sofrimentos físicos ou psíquicos imotivados e despropositados, razão pela qual, desponta nítida a constitucionalidade do RDD no plano do controle abstrato de constitucionalidade.

O sofrimento decorrente do isolamento é consequência única da sanção imposta pela legislação53. Se reconhecermos o RDD como cruel, frente a austeridade da pena privativa de liberdade colocaríamos, em cheque, a própria constitucionalidade do regime fechado, uma vez que, os dois, levam os detentos a semelhantes fastídios.

A aplicação do Regime Disciplinar Diferenciado deve devotar atenção a dupla dimensão do princípio da proporcionalidade: a proibição do excesso (Übermassverbot) e a proibição da proteção deficiente (Untermassverbot). Assim, sempre que a medida se demonstrar excessiva e desarrazoada, posta-se por ilegítima a segregação diferenciada.

Se o RDD detém natureza de medida cautelar/disciplinar, a sua aplicação deve obedecer um critério de excepcionalidade. É imprescindível que haja ponderação dos valores constitucionais em jogo, razão pela qual, apenas o caso concreto poderá realçar a dimensão dos princípios em conflito. Será a motivação da sentença, em sede de controle difuso ou concreto que outorgara a racionalidade necessária para aplicação do RDD, de modo que, não se pode falar, antecipadamente, que o RDD é medida que sempre violará o princípio da proporcionalidade.

Identificamos a possibilidade de incorporar o RDD na lógica securitária da exceção, sem implodir, isto é, sem alterar a configuração política do Estado de Direito. Preceituamos a possibilidade de outorgar a doutrina do inimigo, contornos de constitucionalidade, quando a medida de exceção imposta (RDD) guardar completa obediência ao sistema constitucional em que é inserida. A aplicação racional do RDD respeita as garantias individuais ao tempo em que preserva a segurança pública.

Muito embora a doutrina do inimigo vislumbre a possibilidade de imposição de ‘medidas aflitivas, eficazes e excepcionais’, percebemos que, a severidade e rispidez do RDD encontra-se circunscrita dentro da razoável reação Estatal, revestindo-se de constitucionalidade. Mesmo que identificássemos, singela opressão a integridade do preso, deveríamos sopesar que nem as garantias devem ser entendidas tão rigidamente que impeçam a eficácia no combate ao crime organizado, nem a busca de eficácia deve levar à dissolução das garantias e do Estado de Direito. Sempre que este equilíbrio é rompido ou por via de excesso de garantismo ou por via de uma eficácia a qualquer preço, é dado um passo, respectivamente, no sentido da descrença na capacidade de os Estados de Direito lidarem com situações extremas ou no sentido da sua corrupção e conversão em Estado autoritário (DIAS, 2009, p. 687).


8- Teoria da Proporcionalidade e o Direito Penal do Inimigo

O princípio da proporcionalidade nasce no direito americano, onde é conhecido como princípio da razoabilidade, mas atinge o seu ápice no direito alemão Verhaltnismaßigkeitsgrudsatz. Tanto o direito americano como o alemão dão a esse princípio fundamentos distintos: neste, ele funda-se no estado democrático de direito; naquele, no devido processo legal, no que foi seguido pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro no julgamento da ADIN 958-3/RJ.

Nenhum direito fundamental é ilimitado, visto encontrar os seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). Surge a teoria da proporcionalidade como instrumento de ponderação, principalmente, entre o interesse particular vulnerado e o interesse estatal na persecução penal ou segurança pública.

Alexy54 resolve o problema da colisão de princípios constitucionais através da ponderação dos interesses opostos, observando, de forma pontual, que a ponderação abstrata dos valores se impõe no caso concreto, onde os princípios ganham, cada qual, peso particular. O processo de ponderação pode levar a um inquestionável subjetivismo na decisão judicial, entretanto, não há um decisionismo abstrato, uma vez que a ponderação deve ser operada em uma juízo de racionalidade fundamentada, que estabelecerá a preferência lógica entre os princípios opostos.

Para fundamentar a preferibilidade de um princípio ao outro, as razões elencadas, podem ser, a título de exemplo, a intenção original do legislador, as consequências benéficas ou maléficas de certa decisão e as opiniões dogmáticas e jurisprudenciais.

Entretanto, a aplicação desmedida da proporcionalidade pode servir de instrumento de frustração das garantias constitucionais, tornando letra morta a disposição constitucional.

É tênue a linha que divide a mitigação de um princípio da abolição do mesmo. A proporcionalidade não deve ser instrumento de aniquilamento, mas sim de harmonização, submetendo o princípio de menor relevância ao de maior valor social. A sua aplicação não pode estar condicionada, simplesmente, à identificação de determinada criminalidade. O poder seletivo, de eleger o ‘grave criminoso’ está sempre nas mãos de agências que o empregam segundo interesses conjunturais e o usam também com outros objetivos, como o de seleção dos inimigos estatais55.

O uso desmedido da teoria da proporcionalidade pode tornar a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, ilusória, inútil e frágil. Sem contenção da força pública, o Estado de direito pode se transformar em Estado de Polícia, residindo aqui a importância das garantias.

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Daniel Sarmento busca, então, equacionar uma fórmula matemática para aplicação da proporcionalidade preconizando que "o nível de restrição de cada interesse será inversamente proporcional ao peso específico que se emprestar, no caso, ao princípio do qual ele se deduzir, e diretamente proporcional ao peso que se atribuir ao princípio protetor do bem jurídico concorrente" (SARMENTO, 2000, p. 104).

A fórmula de Sarmento demonstra a imprecisão da própria equação. A maior incerteza na aplicação do princípio da proporcionalidade está na errônea individualização dos valores em jogo56.

Os direitos e garantias individuais não são responsáveis pelo aumento dos conflitos sociais e da violência, mas enfrentar o problema sob essa perspetiva é mais simples, mais fácil, menos oneroso e politicamente mais vantajoso57. O sistema penal, de forma autofágica, alimenta-se do argumento ideológico da segurança para justificar as suas extrapolações de limites. Desta forma, o princípio da proporcionalidade pode se constituir em instrumento de negação do direito, reduzindo a Constituição a uma simples folha de papel. A invocação ideológica do princípio da proporcionalidade tem constituído a válvula de escape das agências judiciais para atender os reclames “da lei e da ordem”, acolhidos pelo senso comum com a aparência de que atuam de acordo com a sua finalidade constitucional, fulminando, dia-a-dia, a eficácia dos direitos e garantias tão duramente conquistados ao longo da história.

Conter a aplicação vulgarizada do princípio da proporcionalidade a partir do reconhecimento da sua deslegitimação parcial é uma exigência da democracia. Garantir a sua aplicação excepcional para defesa da segurança pública e prevenção de perigo é uma necessidade prudente. O tormento da jurisprudência estará em achar o ponto de equilíbrio, um vez que os critérios de tal ponderação não poderão encontrar assento seguro exclusivamente na lei, mas sim no caso concreto e, especificamente, na decisão judicial. Se nenhuma garantia é absoluta o processo de ponderação se torna inevitável, encontrando, na suficiente motivação da sentença a possibilidade de controle judicial pertinente da razoabilidade.

O uso do princípio da proporcionalidade, embora seja manifestação de um direito processual penal do inimigo, representa um Estado de polícia que pulsa no coração de um Estado de direito. Haverá sempre um dialética contínua entre o poder investigativo estatal e os direitos e garantias individuais, entre o Estado de direito e o Estado de polícia. Zaffaroni afirma que:

O Estado de polícia que o Estado de direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e romper os muros que o Estado de direito lhe coloca. Quanto maior é a contenção do Estado de direito, mais próximo se estará do modelo ideal, e vice-versa, mas nunca se chegará ao modelo ideal porque para isto seria preciso afogar definitivamente o Estado de polícia e isso implicaria uma redução radical – ou uma abolição – do próprio poder punitivo (ZAFFARONI, 2007, p. 170).

As garantias são limites redutores, mas não aniquiladores, das pulsões naturais do Estado de polícia. Será na ponderação sensata dos interesses que a proporcionalidade se legitimará no caso concreto validando a opressão pontual da liberdade do reeducando.

O Regime Disciplinar Diferenciado é medida disciplinar contemplada pela lei. Com respeito ao contraditório e o devido processo legal a medida é imposta em caráter excepcional e por tempo determinado. Equipe multidisciplinar (psicólogos e assistentes sociais), assim como, atividades intelectuais visam diminuir o flagelo do cárcere duro. Por tudo dito, a medida é humana e respeita os primados constitucionais que asseguram a dignidade do reeducando sem se descurar da segurança pública.

Impossível negar sua severidade, tão quanto é inquestionável sua humanidade. Será no processo de ponderação, observados os postulados da proporcionalidade em sua tríplice dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito)58 que a jurisprudência vai delimitar sua aplicação e não no controle abstrato de constitucionalidade. Nesta perspectiva, garantimos a possibilidade de combate ao ‘inimigo’ com medidas eficazes, dentro do sistema de garantias, assegurando que estas medidas sejam excepcionais, para não contaminar o Estado de Direito.

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Sobre o autor
Danni Sales Silva

Promotor de Justiça no Estado de Goiás Ex. Promotor de Justiça no Estado do Tocantins. Pós Graduado em Direito Penal. Especialista em Ciências Criminias pela UL (Universidade Lisboa). Especialista em Direito Processual Penal. Mestrando em Ciências Criminias pela Faculdade de Direito de Lisboa. Bacharelando em Filosofia pela PUC-GO. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Professor de Pós Graduação em Direito Processual Penal na Rede Juris de Ensino e PUC/GO. Pesquisador pelo Max Planck Institute for Foreign and International Criminal Law in Freiburg i. Br., Germany. Membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Membro da Confraria do Júri

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Danni Sales. Regime disciplinar diferenciado: dissecando a constitucionalidade da execução de pena do inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3934, 9 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27564. Acesso em: 22 dez. 2024.

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