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Competência para edição, âmbito de aplicação e legalidade/constitucionalidade da Resolução n.º 1.995/2012 do CFM sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente

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IV – DA ALEGAÇÃO DE VÍCIO MATERIAL POR INIDONEIDADE DO INSTRUMENTO DE EXTERNALIZAÇÃO DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE DOS PACIENTES

Não cabe, ainda, a alegação de inidoneidade do instrumento destinado à documentação das diretivas externadas pelo paciente, pois o prontuário médico estaria, por ordem do Conselho Federal de Medicina, jungido de sigilo médico, sonegando seu conteúdo até mesmo aos familiares, informação que, como se demonstra abaixo, é errônea.

Nesse mister, a Constituição Federal assegura a todos os cidadãos o livre acesso à informação[3], bem como o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular[4]. Contudo, o exercício desses direitos não é ilimitado, pois deve ser compatível com o bem-estar social, com o interesse público, e, sobretudo, com a privacidade e a intimidade da pessoa humana. Assim, frise-se que, o direito de solicitar ou receber informações deve ser interpretado de forma restritiva porque não se pode admitir a violação de direitos de igual calibre, em especial o direito à intimidade e à vida privada.

Com efeito, é sabido que a Carta Magna tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando, ainda, o direito a indenização pelo dano material ou moral sofrido[5].

 Ao consultarmos a Obra Direito à Intimidade e à Vida Privada[6] colhemos os seguintes conceitos para o que sejam intimidade e vida privada, litteris:

“A intimidade e a vida privada constituem um conjunto de informações pessoais submetidas a um regime jurídico de contenção que se define distintamente em vários ramos do pensamento doutrinário: a) como a exclusão do conhecimento alheio – entendido como ‘modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento alheio daquilo que se refere à pessoa mesma’ ou ‘o interesse de uma pessoa no sentido de que seus assuntos não sejam conhecidos nem sua imagem exposta’; ainda ‘interesse de a pessoa manter no âmbito da própria esfera privada aqueles atos, acontecimentos e notícias que deseja preservar desconhecidos de terceiros’; ‘direito à exclusão do conhecimento alheio daquilo que se tem na esfera privada’.” (...) b) como controle de informação pessoal – essa concepção insere em seu núcleo um elemento decisional de controle de informações pessoais no estabelecimento de relações com os outros, de tal modo que todos têm o direito de escolher ‘quando, como e em que extensão informações sobre eles devam ser comunicadas aos outros.”

  Para o CFM, desde longa data, não há nenhuma dúvida de que o conteúdo do prontuário médico, que pertence ao paciente, é um documento amparado pelo sigilo profissional (art. 5º, XIV da CF/88), pelo direito à vida privada e à intimidade (art. 5º, X, CF/88); sendo vedada a sua divulgação (art. 154, CP).

  Frise-se que as informações constantes do prontuário médico possuem amparo constitucional, pois se ligam à ideia de preservação da intimidade, de viabilização do exercício profissional, bem como do sigilo profissional, e fazem parte de um conjunto de documentos que servem para aferir a prestação do serviço médico.

  Vale destacar que os médicos, no exercício de seus misteres, se deparam com inúmeras situações que, se não existisse o sigilo profissional, inviabilizariam a sua profissão, posto que ninguém iria procurá-los e confiar-lhes os seus segredos com medo de que essas informações fossem transmitidas a outrem, ainda que depois de sua morte.

Ao contrário do que ingenuamente concluem alguns, em muitas situações, os parentes são as principais razões para se manter o sigilo do prontuário médico, pois podem conter informações pessoais que o paciente não deseja que os mesmos tenham conhecimento.

  O Conselho Federal de Medicina não defende a ideia de um direito fundamental absoluto do sigilo ou da intimidade, pois o próprio STF já assinalou que tal hipótese não existe[7].

  Logo, não há dúvidas de que o direito ao sigilo médico ou a intimidade privada podem sofrer certa mitigação, pois em determinadas situações previstas em Lei (em sentido lato) admite-se eventual restrição mínima desses direitos fundamentais. Entretanto, o que se sustenta é que o acesso ao prontuário médico é possível, desde que respeitados os ditames da Res. CFM n.º 1605/2000 ou mediante autorização judicial para realização de perícia. Assim, o direito individual de per si das pessoas está sendo resguardado na medida em que é possível, para afastar a cortina da confidencialidade, buscar a tutela jurisdicional sem que se banalize o direito fundamental da privacidade e da intimidade da pessoa humana, ainda que já esteja morta.

 Com efeito, o CFM acredita que o conteúdo do prontuário médico só poderá ser revelado a terceiros se houver a autorização formal do paciente, conforme estabelece o artigo 5º da Resolução CFM n.º 1605/2000, ou se houver a anuência do Conselho Regional de Medicina da jurisdição, ex vi do artigo 8º do mesmo diploma, bem como autorização judicial. Ademais, constate-se que com esse proceder estar-se-á evitando que todo o conteúdo do prontuário seja aberto a terceiros, ainda que familiar do paciente. Assim, quando necessário, o Poder Judiciário dará acesso apenas às informações pontuais e pertinentes conforme justificativa apresentada pelo familiar interessado. Ressalte-se, com esse proceder evita-se a devastação de todo o prontuário médico que, não raras vezes contém detalhes íntimos da vida privada do paciente consultado.

Frise-se, também, que no caso de investigação criminal o CFM defende o posicionamento de que o conteúdo dos prontuários médicos, na parte que interessar para a apuração do crime, será colocado à disposição da Justiça para perícia judicial.

Portanto, como a lei não o fez, a Resolução do CFM não pode exigir forma especial para que paciente expeça suas diretrizes antecipadas de vontade, podendo expressá-las por quaisquer meios que possuam idoneidade e que tenham validade jurídica.

Nesse ponto, o art. 2º, § 4º, simplesmente informa que o médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente, dando ênfase, portanto, a relação de confiança que deve ser estabelecida entre médico e paciente.

Neste ponto, colaciona-se o art. 5º da Portaria n.º 1820/2009 do Ministério da Saúde que dispõe sobre as condições para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde, a organização e funcionamento dos serviços correspondentes; e Considerando a Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão do SUS:

Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe:

I - a escolha do tipo de plano de saúde que melhor lhe convier, de acordo com as exigências mínimas constantes da legislação e a informação pela operadora sobre a cobertura, custos e condições do plano que está adquirindo;

II - o sigilo e a confidencialidade de todas as informações pessoais, mesmo após a morte, salvo nos casos de risco à saúde pública;

III - o acesso da pessoa ao conteúdo do seu prontuário ou de pessoa por ele autorizada e a garantia de envio e fornecimento de cópia, em caso de encaminhamento a outro serviço ou mudança de domicilio;

IV - a obtenção de laudo, relatório e atestado médico, sempre que justificado por sua situação de saúde;

V - o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo nos casos que acarretem risco à saúde pública, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputadas à pessoa sanções morais, financeiras ou legais;

VI - a não-submissão a nenhum exame de saúde pré-admissional, periódico ou demissional, sem conhecimento e consentimento, exceto nos casos de risco coletivo;

VII - a indicação de sua livre escolha, a quem confiará a tomada de decisões para a eventualidade de tornar-se incapaz de exercer sua autonomia; (grifo nosso)

Assim, tem-se que as diretivas lançadas pelo CFM na Resolução n.º 1.995/2012 refletem opinião do próprio Ministério da Saúde quando regulamenta os direitos do paciente que se submete a atendimento pelo SUS, não representando inovação do Conselho Federal de Medicina no contexto ora ressaltado.


V – DA ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

Deixe-se claro, por oportuno, que diversos países já têm em seus códigos de ética médica a previsão quanto à possibilidade do paciente em estabelecer diretivas antecipadas de vontade quanto aos tratamentos que deseja ou não se submeter, demonstrando, assim, que se trata de tema amplamente estudado e difundido no contexto médico em âmbito mundial.

Dessa forma, o ponto “4” da exposição de motivos da Resolução CFM n.º 1.955/2012, aduz que:

4) O que dizem os códigos de ética da Espanha, Itália e Portugal

Diz o artigo 34 do Código de Ética Médica italiano: “Il medico, se ilpaziente non è in grado diesprimerelapropriavolontà in caso di grave pericolodivita, non può non tener conto di quanto precedentemente manifestatodallostesso” (O médico, se o paciente não está em condições de manifestar sua própria vontade em caso de grave risco de vida, não pode deixar de levar em conta aquilo que foi previamente manifestado pelo mesmo  – traduzimos). Desta forma, o código italiano introduziu aos médicos o dever ético de respeito às vontades antecipadas de seus pacientes. 

Diz o artigo 27 do Código de Ética Médica espanhol: “[…]Y cuandosu estado no le permita tomar decisiones, el médico tendráenconsideración y valorará lasindicaciones anteriores hechas por el paciente y laopinión de las personas vinculadas responsables”.

Portanto, da mesma forma que o italiano, o código espanhol introduz, de maneira simples e objetiva, as diretivas antecipadas de vontade no contexto da ética médica.

O recente Código de Ética Médica português diz em seu artigo 46: “4. A actuação dos médicos deve ter sempre como finalidade a defesa dos melhores interesses dos doentes, com especial cuidado relativamente aos doentes incapazes de comunicarem a sua opinião, entendendo-se como melhor interesse do doente a decisão que este tomaria de forma livre e esclarecida caso o pudesse fazer”. No parágrafo seguinte diz que o médico poderá investigar estas vontades por meio de representantes e familiares.

Deste modo, os três códigos inseriram, de forma simplificada, o dever de o médico respeitar as diretivas antecipadas do paciente, inclusive verbais.

As leis de países como Portugal (2012), Espanha (2002) e Argentina (2009) sobre Diretivas Antecipadas de Vontade foram precedidas, por semelhante norma inserida nos Códigos de Ética Médica destes países, respectivamente em 1985, 1999 e 2001. Na Itália foi inserido no Código de Ética Médica ainda em 1998, mas a lei não foi aprovada ainda, embora esteja em processo de tramitação. No Brasil foi inserida na deontologia médica em 2012, mas a lei não está ainda em tramitação.

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Nestes países, não se tem conhecimento que alguma tentativa tenha sido feita para sua eliminação na deontologia médica por parte do poder público. A tendência de sequência no Brasil é a mesma: foi inserida na deontologia e o projeto de lei está sendo preparado pelo CFM para ser enviado ao Senado e iniciar a tramitação.

Dessa forma, é nítido que o tema relativo às diretivas antecipadas de vontade não é uma inovação do CFM, pois foram admitidas como um conceito da Bioética ainda nos anos oitenta e aparecem consagrados na fundamental obra Princípios da Ética Biomética, de Tom Beauchamp e James Childress, cujo primeiro livro foi editado no Brasil somente em 2002, mas corresponde à quarta edição norte-americana, de 1994, cuja 1ª edição fora lançada ainda em 1979. Na Europa a relevância deste direito do paciente está prevista como no tradicional Livro da Bioética Personalista intitulado Manual de Bioética: fundamentos da Ética Biomédica (2009, p. 887) de Elio Sgreccia.

Por derradeiro, constata-se que não se trata de tema novo, mas ideais extremamente difundidos no âmbito da bioética e que necessariamente exigem regulamentação por parte deste Conselho Federal para que os profissionais da medicina não se vejam alijados de um posicionamento técnico, ético e moral no relacionamento com seus pacientes.


VI – DISCUSSÃO DA MATÉRIA EM ÂMBITO JUDICIAL

Após tecer tais comentários, cumpre consignar que o Ministério Público Federal propôs Ação Civil Pública perante a Seção Judiciária do Estado Goiás, visando questionar a legalidade/constitucionalidade da Resolução CFM n.º 1.995/2012. Tal ação foi distribuída ao Juízo da 1ª Vara Federal, tramitando sob o número 1039-86.2013.4.01.3500. Conforme consta do andamento processual, a demanda foi sentenciada no dia 21/02/2014.

Calha destacar que o magistrado federal, em sua sentença, acolheu in totum as alegações do Conselho Federal de Medicina na defesa da juridicidade da Resolução questionada pelo MPF, julgando totalmente improcedentes os pedidos formulados.

Tal sentença, até a data da edição deste artigo, não transitou em julgado, em vista da interposição de recurso de apelação pelo MPF, sem efeito suspensivo, o qual será apreciado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Todavia, como defendido no teor desta fundamentação, a Resolução CFM n.º 1.995/2012 está em pleno vigor, devendo ser observada em todos os seus aspectos pela comunidade médica nacional, a qual está submetida aos limites da atuação normativa e fiscalizatória dos Conselhos de Medicina.


VII – CONCLUSÃO

Face o exposto, pode-se concluir que:

  • A edição da Resolução CFM n.º 1.995/2012 se deu com fulcro na competência atribuída exclusivamente aos Conselhos de Medicina pela Lei nº 3.268, de 30.09.57 para tratar de matérias médicas, no campo ético, técnico e moral.
  • O CFM, ao editar a Resolução n.º 1.995/2012, tinha por objetivo apenas preservar a dignidade da pessoa humana no sentido de que o médico deve respeitar a pré-determinação de vontade do paciente ao informar que não quer se submeter a determinados tratamentos médicos, de modo que o profissional da medicina estará atuando com base na ética que deve reger seu mister.
  • A Resolução CFM n.º 1.995/2012 não possui qualquer vício material por violação da segurança jurídica.
  • Não prosperam as alegações de vício material por alijamento da família, uma vez que esta deve participar ativamente das opções de tratamento médico, salvo quando a opinião familiar contrariar a vontade do próprio paciente.
  • Não prosperam as alegações de vício material por inidoneidade do instrumento de externalização das diretivas antecipadas de vontade do paciente que poderá expressá-las por qualquer meio admitido em direito, inclusive pronunciando-as diretamente ao médico que fará a devida anotação em prontuário.
  • Na análise da bioética comparada, a adoção da temática de diretrizes antecipadas de vontade é pacífica e tem previsão em códigos de ética médica de vários países do mundo, não havendo qualquer inovação sobre o tema pelo CFM.

BIBLIOGRAFIA

  1. Constituição Federal. BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Senado, 1988. - Código. BRASIL. Acessado em 16 de abril de 2014.
  2. Código Civil de 2002. BRASIL. Novo Código Civil. Lei nº 10.403 de 10 de janeiro de 2002. Aprova o novo código civil brasileiro. Brasília, DF, 2002.
  3. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à Intimidade e à Vida Privada. (uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte); Belo Horizonte: ed. Del Rey, 1998, pág. 239/240.
  4. STF - RE n.º 91218/SP, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ. 16/04/1982, p. 13407.
  5. RIBEIRO, Diaulas Costa in Família e Dignidade Humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Organizador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte. P.279.
  6. http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf. Acessado em 16 de abril de 2014.

    Notas

[1]RIBEIRO, Diaulas Costa in Família e Dignidade Humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Organizador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte, p. .275

[2]RIBEIRO, Diaulas Costa in Família e Dignidade Humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Organizador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte. P.279.

[3] Artigo 5º, inciso XIV.

[4] Artigo 5º, inciso XXXIII. 

[5] Artigo 5º, inciso X.

[6]SAMPAIO, José Adérico Leite. Direito à Intimidade e à Vida Privada. (uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte); Belo Horizonte: ed. Del Rey, 1998, pág. 239/240.

[7]STF - RE n.º 91218/SP, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ. 16/04/1982, p. 13407.

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Sobre o autor
Rafael Leandro Arantes Ribeiro

Promotor de Justiça Adjunto do MPDFT. Pós graduado em Investigação Criminal pela Universidade Católica de Brasília. Aprovado nos concursos públicos para Promotor de Justiça Adjunto - MPDFT/2016 em 8ª lugar; Procurador da Fazenda Nacional/2016; Delegado de Polícia da PCDF/2016 e Notário e Registrador (tabelião) do TJDFT/2015.Já ocupou os cargos de Advogado do Conselho Federal de Medicina; Agente da Polícia Civil do DF e Técnico do TRT da 10ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Rafael Leandro Arantes. Competência para edição, âmbito de aplicação e legalidade/constitucionalidade da Resolução n.º 1.995/2012 do CFM sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27787. Acesso em: 21 nov. 2024.

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