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Crimes de trânsito e o Tribunal do Júri

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Este trabalho apresenta o estudo das hipóteses em que as ocorrências de trânsito são atraídas pela competência do Tribunal do Júri.

RESUMO: Este trabalho apresenta o estudo das hipóteses em que as ocorrências de trânsito com resultado morte são atraídas pela competência do Tribunal do Júri. Busca-se analisar as situações hipotéticas e a aplicação dos correlatos institutos jurídicos, contribuir e harmonizar o tema sob a ótica da legislação e jurisprudências contemporâneas e – sem esgotar o tema – chegar um senso comum.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Crime de Trânsito. Tribunal do Júri. Culpa Consciente. Dolo Eventual. Legislação. Jusrisprudência.


INTRODUÇÃO

Há muito tempo vem-se debatendo sobre a aplicação de políticas criminais e, mais especificamente, sanções mais severas em crimes que abalam a tranquilidade quer pela gravidade do delito quer pela aversão social ao mesmo.

Notoriamente, temas vêm repercutindo constantemente nos diversos meios sociais, incluindo os meios eletrônicos, a exemplo da maioridade penal, restrições mais severas aos crimes hediondos, penas mais rigorosas para corrupção e o cerne desta composição: rigor em punir os motoristas alcoolizados.

A preocupação de mortes no trânsito tem sua justificativa em razão de seus números alarmantes, visto que pelos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) só no ano de 2010 foram registradas no Brasil cerca de 40.610 mortes em acidentes nas vias, quase 7,5% a mais que o ano anterior, chegando à assombrosa quantidade de aproximadamente 112 pessoas mortas por dia, equiparando-se a proporções de guerras civis. (Disponível em <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/11/04/acidentes-de-transito-causam-mais-de-40-mil-mortes-no-brasil>. Acesso em: 05 nov. 2013.).

Inquestionavelmente grande parte desses sinistros decorre da imprudência dos condutores na direção do veículo, em excesso de velocidade, distraído enquanto fala ao celular, inabilitado (inapto), embriagado, competindo ou praticando outra conduta de risco.

A lei nº 9.503/1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, traz em seu âmago sanções a todas essas condutas, estabelecendo também algumas delas como crime, tendo como seu espécime mais famoso o artigo 306, que pune a mistura álcool e direção, fonte de diversas alterações legislativas no intuito de fomentar a fiscalização e repressão deste delito, popularmente conhecidas como Lei(s) Seca(s).

Dentre essas alterações, destaca-se a remoção pela lei nº 11.705/2008 do inciso V do art. 302 e do parágrafo único do art. 291 que caracterizavam hipóteses respectivamente de homicídio culposo e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, possibilitando, por presunção, a adequação da modalidade dolosa no caso de acidente de trânsito com resultado lesão corporal ou morte em que o condutor encontrava-se embriagado ou que por uso de substância psicoativa análoga ao álcool tivesse suas capacidades psicomotoras alteradas.

Mediante a aplicação nos juízos e tribunais dessa adequação surgiu a problemática através do conflito entre institutos jurídicos conceitualmente similares e o encaminhamento da questão para um Colegiado Leigo devendo, pois, ser explanada.

1 CONCEITOS

O Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 1º, § 1º dispõe que “Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga”, assim, os delitos cometidos por aquele que conduz veículo automotor na utilização das vias é tido, genericamente, como crime de trânsito.

A constrição da liberdade de locomoção, assim como a restrição de outros direitos na forma de sanção jurídica respeitar diversos princípios, e, em face da legalidade ou reserva legal, toda conduta tida como crime deve ser prevista em lei, assim também ocorre com os crimes de trânsito devidamente tipificados do arts. 302 a 312 do CTB.

Coerentemente, definido o que vem a ser crimes de trânsito, cumpre conceituar o último termo que compõe o título deste artigo, qual seja, o Tribunal do Júri. Referida instituição trata-se de um colegiado popular formado para julgar os crimes dolosos contra a vida e aqueles que lhe são conexos, tendo sua competência conferida pela Constituição Federal em seu art. 5º, XXXVIII, “d” e as espécies delitivas que lhe são pertinentes para julgamento definidas do art. 121 a 127 do Código Penal (conforme art. 74, § 1º do Código de Processo Penal).

Conhecendo o significado de cada termo apresentado, é possível analisar os delitos que conflitam entre a norma de trânsito e a penal, quais sejam, a lesão corporal dos arts. 303, CTB e art. 129, Código Penal, bem como o homicídio dos arts. 302, CTB e 121, CP, versando estes últimos do que será melhor trabalhado aqui.

2 CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA

Os crimes tidos pela legislação nacional como dolosos contra a vida constam no Capítulo I, do Título I, da Parte Especial do Código Penal (decreto-lei nº 2.848/1940) compreendidos do artigo 121 a 128, sendo este, causas que excluem a punibilidade do médico em caso de abortamento.

Procedendo a individualização das espécies delitivas, os crimes contra a vida são: o homicídio simples (art. 121); o homicídio privilegiado ou passional (art. 121, § 1º); o homicídio culposo (art. 121, § 3º); o homicídio qualificado (art. 121, § 2º); o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122); o infanticídio (art. 123); o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124); o aborto provocado por terceiro com (art. 126) ou sem (art. 125) o consentimento da gestante e suas qualificadoras (art. 127).

Como se vê, das espécies de infrações narradas a mais comum no trânsito, sem dúvidas, é o homicídio, seja na modalidade dolosa, em que a apreciação cabe ao emérito Conselho de Sentença, seja na modalidade culposa, situação em que se aplica o art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro por ser norma especial, e cuja competência foge ao âmbito do Tribunal do Júri.

A lesão corporal está tipificada no art.129 e pormenorizada em seus parágrafos, mas por integrar o Capítulo II (Das Lesões Corporais) têm sua apuração e julgamento pelo juízo comum se dolosa, contudo, se culposa na condução de veículo automotor será do Juízo ou Vara de Trânsito.

3 CRIMES DE TRÂNSITO

O Código de Trânsito Brasileiro teve seu advento para reger a utilização de qualquer natureza das vias terrestres, impondo sanções desde administrativas até criminais de acordo com a conduta praticada, quer seja uma infração (arts. 161 a 255) com penalidades previstas no Capítulo XVI (arts. 256 a 268), quer seja um crime (arts. 302 a 312), cabendo em qualquer caso as medidas administrativas do Capítulo XVII (arts. 269 a 279).

Em azo a objetividade do trabalho, serão tratados e continuamente explorados apenas três crimes de trânsito, e oportunamente transcreve-se seu texto legal para abster-se de posteriores reproduções:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.

[...]

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alteração da capacidade psicomotora.

§ 2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

§ 3o O CONTRAN disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

[...]

Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:

Penas - detenção, de seis meses a dois anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

(Arts. 302, 306 e 308, CTB, grifo nosso)

Note-se que propositadamente fora grifado o vocábulo “culposo” no artigo 302 do CTB, pois na culpabilidade se encontra o embaraço debatido sem uniformidade nas decisões dos tribunais e juízos pátrios.

Nesse momento chega-se ao cerne, ou seja, agora é possível esmiuçar os institutos da culpa e do dolo com suas peculiaridades para, ao fim, aferir se a morte ocorrida no trânsito ocorreu culposamente, sendo assim a competência do Juízo ou Vara de Trânsito ou dolosamente, quer de modo direto ou indireto (eventual), sendo assim de competência do egrégio Tribunal do Júri.

4 DOLO E CULPA

4.1 DOLO

O dolo pode ser simplificado como a intenção ou vontade do agente dirigida a conduta tipificada como crime, seja por ação ou omissão, podendo o desígnio visar o resultado ou somente a conduta que o provocou.

Para entendê-lo melhor é necessário visualizar as teorias que tratam sobre o dolo e delas depreender quais e como se harmonizam ao ordenamento jurídico brasileiro e, então, entender suas espécies.

A primeira teoria que trata do dolo é a Teoria da Vontade. Nessa teoria há dolo quando o agente pratica a conduta delituosa consciente e voluntariamente, não só prevendo a produção do resultado, mas o pretendendo, então não só existe a consciência da conduta como também a do resultado, ambas são consequências da volição.

A segunda é a Teoria da Representação dispondo que para haver o dolo basta existir a previsão do resultado, o agente pratica a conduta prevendo o resultado. O que se leva em conta foi o instante intelectual quando age com previsão do resultado, sendo sua vontade na produção do mesmo irrelevante. Não é aceita atualmente por conflitar o conceito de dolo lato sensu com culpa consciente.

A terceira e última é a Teoria do Assentimento ou Consentimento atestando que há dolo mesmo quando o agente não quer, ao menos diretamente, o resultado mas pratica a conduta em que o mesmo é previsível, aceitando com seu ato que ele ocorra, logo, assumindo o risco de produzi-lo.

O sistema jurídico pátrio, ao definir que há dolo “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (art. 18, I, CP) recepcionou duas das três teorias: a da Vontade (que de certa forma abrange a da Representação) personalizando o Dolo Direto, e a do Assentimento, personalizando o Dolo Indireto, mais conhecido como Eventual.

4.1.1 DOLO EM ESPÉCIE

Faz-se necessário saber que dolo stricto sensu é somente o dolo direto de primeiro grau sendo as demais espécies situações em que o instituto culpa ocorreu, mas devido ao seu grau de reprovabilidade, pela severidade da conduta, a doutrina e a jurisprudência entendem que o agente deve incorrer nas mesmas penas da infração na modalidade dolosa.

O dolo direto, consoante à lei nº 2.840/1940 (Código Penal), é quando o agente quer o resultado, então ele pratica a ação criminosa objetivando como fim um resultado específico, lesivo a um bem jurídico, independendo para sua configuração a consumação do intento.

No intuito de atingir determinados objetivos, as pessoas podem se valer artifícios que lesionam outros bens além do pretendido e ao se valer dos mesmos conhecem os riscos. Desta lógica, o dolo direto subdivide-se em dois graus.

Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 238) define em sua obra o dolo direto como “a vontade do agente dirigida especificamente para a produção de um resultado típico, abrangendo os meios utilizados para tanto”, e é desses meios e finalidade específica que se extrai os respectivos graus do dolo direto, em que o de primeiro grau ocorre quando o resultado se enquadra perfeitamente a vontade do agente, como quando um homicida mata a vítima pretendida, e o de segundo grau ocorre quando há dano, efeitos ou consequências colaterais lógicos para consumação do resultado, como quando um incendiário objetivando matar uma vítima específica explode ou ateia fogo em um ambiente matando seu desafeto e terceiros com sua ação.

No dolo de segundo grau as consequências são necessárias, seus efeitos são certos, logicamente previsíveis, pois o agente se volta à realização da ação com fim determinado, e pra alcançar o resultado desejado utiliza meios com efeitos paralelos claramente certos, consequências colaterais próprias da ação delituosa.

Como em regra o dolo direto de segundo grau decorre do primeiro grau, em face da certeza e assunção de todos os resultados diretos e colaterais, faz com que a presença dos dois graus num único delito caracterize o concurso formal impróprio de crimes, pois os “desígnios autônomos” narrados na segunda parte do art. 70 do Código Penal existem nessa situação, determinando que o agente responda nos moldes do art. 69 do CP, ou seja, apliquem-se cumulativamente as penas nos crimes em que concorreu.

Há ainda uma espécie pouco lembrada, o dolo geral, contudo recentemente utilizado em casos de grande notoriedade pública, como no caso Mércia (Mizael) e no Yoki.

O dolo geral consiste quando o agente, certo da consumação de sua conduta dolosa, acreditando firmemente ter obtido o resultado pretendido, realizada outra conduta, e em razão deste segundo ato o resultado se produz, ou seja, o dolo pretendido na primeira ação se perfaz culposamente na segunda. Nessa circunstância, a vontade do agente no ato inicial alcança o ato derradeiro e o agente responde por apenas um crime doloso consumado.

Um exemplo claro desta espécie é o Caso Yoki, em que Elize Matsunaga, certa que o disparo de arma de fogo matou Marcos Kitano Matsunaga, esquartejou o corpo da vítima, sendo esta laceração a causa mortis.

Por último, a espécie mais debatida: o Dolo Indireto ou Eventual (art. 18, I, segunda parte, CP), em que o agente não possui vontade na ocorrência do resultado, porém atuou assumindo o mesmo.

Atente-se que para configurar o dolo eventual deve haver três fatores: a previsão concreta do resultado, a consciência de sua possível produção (que a conduta pode gerar o resultado e mesmo assim é indiferente às possíveis consequências), e a ação aceitando os frutos da conduta.

Cumpre salientar que, em se tratando de dolo eventual o Superior Tribunal de Justiça admite a tentativa, por entendê-lo plenamente equiparado ao direto por transcurso da premissa de que “arriscar-se conscientemente a produzir um resultado equivale a querê-lo”. Esse posicionamento está presente no AgRg no REsp 1199947 / DF (julgado em 11/12/2012, ministra-relatora Laurita Vaz) que segue o HC 6797 / RG (julgado em 16/12/1997, ministro-relator Edson Vidigal), decisões do próprio STJ.

Não obstante, parte da doutrina filia-se a posição de que não há o que se falar em tentativa, há uma impossibilidade lógica, pois, para que se configure é necessária vontade do agente no resultado, característica ausente nessa espécie de dolo, logo o agente só responde pelo que produziu que, nos casos do tema, seria o homicídio em si ou a lesão corporal, e nessa linha de pensamento, existem precedentes jurisprudenciais como o RESE 70034503961 / RS, julgado em 31/03/2010, desembargador-relator: Manoel José Martinez Lucas.

Por fim, apesar de não integrar verdadeiramente a figura do dolo tem-se o preterdolo, em que o agente tem volição direcionada a um fim danoso, porém um resultado mais grave ocorre diverso do pretendido, por culpa. Nessa situação o resultado da conduta excede a vontade do mesmo, sendo mais grave que o almejado.

O Codex Penal o prevê a agravação genérica pelo resultado decorrente do preterdolo em seu art. 19, trazendo consigo a informação que o resultado, não pretendido pelo delinquente, deve ocorrer ao menos culposamente para que deste possa ser imputado, e como principal exemplo dessa espécie de crime tem-se a lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º, CP).

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4.2 CULPA

A culpa de modo simples ocorre quando o indivíduo age sem a cautela esperada ou atua de maneira displicente a que se espera do homem médio.

O homem médio é uma ficção jurídica que representa a capacidade de discernimento, reflexão esperada de uma pessoa comum, imaginada e aludida pelo magistrado em sua decisão, que idealizado praticando a mesma conduta do imputado agiria em determinado sentido, igual ou diverso.

O Código Civil em seu artigo 186 define que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Embora, inicialmente, pareça tratar-se de ilicitude, a ilicitude é a contrariedade ao ordenamento jurídico, o fato antijurídico, logo, o texto versa essencialmente de culpabilidade, que trata da censurabilidade e reprovação da conduta do imputado, como se vê na patente similitude presente no Código Penal Brasileiro ao definir o crime doloso e culposo, este em especial no art. 18, II diz que o mesmo ocorre quando o agente “deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.

A legislação já citada ao trabalhar culpabilidade deixou acepções amplas, estando a culpa melhor desenvolvida no Decreto-Lei nº 1.001/1969 (Código Penal Militar), que de forma mais exaustiva e precisa determina o conceito culpa em seu art. 33, II quando descreve:

Art. 33. Diz-se o crime:

[...]

II - culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo.

Percebe-se que a legislação castrense aborda cautela, atenção ou diligência ordinária ou especial, em que a ordinária seria a atuação do homem médio, de como a pessoa comum atuaria na mesma situação e a especial versa basicamente do dever de agir atribuído a determinadas pessoas em face da situação.

Tal dever de agir tem previsão legal constante nas alíneas do § 2º do artigo 13 do Codex Penal, qual seja: “a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”; que “de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado”; ou que “com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”.

Há de se ressaltar que na culpa sempre há a previsibilidade, ou seja, a possibilidade de prever/antever o resultado, não sendo necessária a previsão, isto é, a visualização concreta do possível resultado antes da pratica do ato que o produziu. Logo sem previsibilidade, que abrange a previsão, não há culpa ou dolo e consequentemente não existe crime. Contudo, mesmo havendo culpa, salvo nos casos expressos em lei, o agente só responderá pelo delito se o praticar dolosamente (parágrafo único, art. 18, CP).

É de boa cepa trazer as palavras de NUCCI (2012, p. 242) asseverando que culpa “é o comportamento desatencioso do agente, voltado a determinado objetivo, lícito ou ilícito, produzindo um resultado ilícito, embora não desejado, porém previsível, que podia ter sido evitado”. O agente se volta volitivamente a uma conduta produzindo resultado lesivo a terceiro ao desrespeitar regras genéricas, agindo sem observância ao dever de cuidado e ultrapassando o risco tolerável juridicamente.

Para explicar a culpa surgiram diversas teorias apresentando-se inicialmente a Teoria do Defeito Intelectual, que a caracteriza por um vício ou defeito da inteligência derivada da ausência de reflexão do indivíduo na realização da conduta.

Seguidamente surge a Teoria do Vício da Vontade em que a ação culposa é uma omissão voluntária de cautela do autor em antever as consequências possíveis e previsíveis do fato.

E, por último, a Teoria Finalista, embutida nas citadas palavras de NUCCI. Aquela em que a culpa é uma atividade destinada a uma finalidade, ainda que juridicamente irrelevante, em que seus meios negligentes ou imprudentes levam a um resultado ilícito, ou seja, há uma reprovabilidade pelo ordenamento jurídico da conduta eleita pelo autor para sua finalidade, em face da inobservância do dever de cuidado.

4.2.1 MODALIDADES DE CULPA

Ao aprofundar o estudo da culpa deve-se saber que ela é exercida em três modalidades citadas no art. 18, II do CP (imprudência, negligência e imperícia) e subsiste em duas espécies.

Quando se fala em imprudência, está se falando de uma ação positiva (comissão) de um ato arriscado ou perigoso, em regra de forma precipitada, imoderada, sem a cautela ou sensatez devida.

O caso mais comum de imprudência no trânsito é o excesso de velocidade, uma das principais causas de acidente e morte nas estradas, imprudência também presente nas disputas automobilísticas sancionadas no art. 308 do CTB.

Quanto a negligência, ela é uma ação negativa (omissão) do agente que indiferente à situação deixa de adotar as medidas cabíveis, é displicente ao agir e podendo precaver o resultado não atua no sentido de impedi-lo ou evita-lo.

Já a imperícia é uma falta de aptidão técnica, é a atuação do agente com despreparo ou insuficiência de habilidade técnica, teórica ou prática ao exercer arte, profissão ou ofício, decorre da inexperiência ou ignorância da atividade que exerce ou que deveria saber exercer. Logo, para haver imperícia é necessário que o agente seja perito ou é esperado que seja naquela área do conhecimento.

Ao tratar das circunstâncias de infrações de trânsito, o condutor habilitado que comete infração ou crime de trânsito incorre na modalidade de imperícia, afinal ele passou por avaliação e treinamento teórico e prático, exigindo-se dele o conhecimento e a habilidade necessária como condutor.

4.2.2 CULPA EM ESPÉCIE

Versar sobre culpa em espécie, requer inicialmente considerar que os dois tipos aceitos pela doutrina é encontrado, não claramente no Código Penal, mas no Código Penal Militar, no já mencionado art. 33, em sua parte final ao trazer a informação de que a culpa ocorre quando o autor do fato não prevê o resultado danoso ou prevendo-o supõe levianamente que não se realizaria ou poderia evitá-lo, e, nesse sentido a culpa ocorre de maneira consciente ou inconsciente.

A culpa inconsciente, também conhecida como comum, por excelência, sem representação ou ex ignorantia, é aquela em que o realizador da conduta não prevê o resultado antijurídico, embora previsível, efetuando o ato por inobservância do dever de cuidado apropriado. Nessa condição inexiste o nexo psicológico, o resultado, ainda que esperável, não foi antevisto pelo autor.

Nesse diapasão, não é constitucionalmente aceita a culpa presumida por confrontar diretamente com o princípio da presunção de inocência ou não culpabilidade, uma vez que ninguém pode ser responsabilizado penalmente se não cometeu o delito ao menos culposamente, nos casos em que se admite culpa.

Atente-se que a previsibilidade de resultado, exigida pelo direito, consequente da conduta humana não foge do discernimento comum, portanto, o caso fortuito e força maior não se enquadram como culpa, afastando a seara penal.

A segunda espécie é a culpa consciente, igualmente denominada como com representação ou com previsão, sendo aquela em que o autor prevê a ocorrência do resultado danoso, mas levianamente crê que o mesmo não acontecerá ou ao menos pode evitá-lo por confiar em suas habilidades, em sua destreza para tanto.

Como se vê, o dolo eventual e a culpa consciente são bem similares, devendo-se, pois, distingui-los.

5 DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE

O dolo eventual vincula-se essencialmente no consentimento da eventual produção do resultado, o indivíduo não possui intenção no desfecho da sua conduta, no entanto, prevê concretamente a eventualidade e com indiferença age assentindo no risco do episódio danoso acontecer.

Diferentemente ocorre com a culpa consciente que se relaciona com a negativa do eventual resultado ou plena convicção de impedi-lo, nela o sujeito também não possui intento para o desfecho. Embora preveja o resultado, ele confia piamente em suas capacidades e com a certeza da inexistência da futura consequência danosa, ele age crente de que pode evitar o corolário.

Na prática, como os institutos são similares, a determinação da viável incidência de qualquer dos dois deve ser demonstrada fundamentadamente na decisão do magistrado com base nas provas dos autos, e, nas hipóteses do Colegiado Popular, a possibilidade do dolo eventual não exclui a culpa consciente, exigindo a apresentação técnica da incidência dos institutos na sentença de Pronúncia para que o Conselho de Sentença decida.

Mediante o ostentado, a partir daqui adentra-se em como e quando os crimes de trânsito se colocam na competência do egrégio Tribunal do Júri.

6 CRIMES DE TRÂNSITO NO TRIBUNAL DO JÚRI

O legislador pátrio, ao analisar a utilização das vias por condutores e pedestres, asseverou quanto à reprovabilidade de determinadas condutas nocivas ao meio social, que geram por sua natureza um risco demasiado à coletividade, entre as quais cumpre destacar a embriaguez (art. 306, CTB) e a prática conhecida como racha (art. 308, CP).

Essas condutas tratadas pela lei nº 9.503/1997 como crime são severas ameaças a incolumidade pública, relacionadas como algumas das principais causas de acidentes com morte ou lesões graves no trânsito e o comportamento de risco é punível ainda que não tenha gerado dano concreto.

A alcoolemia na condução de veículos vem sendo repreendida de maneira mais firme pelas autoridades, e uma vez que as consequências da mistura direção e álcool são divulgadas pelos mais variados meios midiáticos, logo fugiria ao senso comum contemporâneo a utilização do erro permissivo por desconhecimento da ilicitude do fato (art. 21, CP).

Por sua vez a alteração das capacidades psicomotoras é sancionada não só quando em razão de bebidas alcoólicas, mas qualquer substância psicoativa a exemplo dos narcóticos, drogas lícitas ou ilícitas, que juntamente com as competições automobilísticas desautorizadas (“racha”) compõem as duas hipóteses aceitas pela jurisprudência pátria para aplicação do dolo eventual nos delitos ocorridos no trânsito.

Essas duas hipóteses vêm bem definidas no art. 291, § 1º, I e II do CTB ao tratar das exceções ao uso dos arts. 74, 76 e 88 da lei nº 9.099/1995 à lesão corporal decorrente do trânsito. O inciso III constante no mesmo parágrafo traz mais uma exceção: quando o agente transita em velocidade 50km/h superior a máxima permitida, valendo lembrar que quando não houver sinalização na via valem as regras do art. 61, § 1º do CTB.

Por regra, os resultados lesivos nas vias de circulação de pessoas e veículos serão culposos, afinal presume-se que o condutor nunca desejaria gerar dano em terceiro, mas por uma falta de zelo gerou, devendo ser responsabilizado.

Nesse sentido, o encaminhamento de acidentes de trânsito com resultado morte para modalidade dolosa, em especial para o tribunal do júri, versa sobre uma excepcionalidade, quando o agente pretendeu o resultado ou assumiu o dano em potencial, visto que conhecendo dos riscos realizou a conduta mesmo assim.

Para melhor entender a adequação das ocorrências faz-se necessário a análise de alguns aspectos, quais sejam:

Como já dito, o STJ entende como compatíveis os institutos da tentativa e do dolo eventual, assim, ainda que o resultado concreto tenha sido apenas lesão corporal é possível na feitura da inicial acusatória falar-se de tentativa de homicídio. Lembrando também que para fins de Defesa a doutrina entende que se tratando de dolo indireto o agente somente responde pelo resultado concreto, afastando-se desde logo o instituto da tentativa, dado que, para haver tentativa, o autor tem que querer o resultado e este não se realizar por razões contrárias a sua vontade, e no dolo eventual, embora o agente assuma o risco de produzir o resultado, ele não o quis, ou seja, ainda que as consequências tenham sido vistas como possíveis não houve volição quanto a elas, ele não pode desistir de produzir o resultado, mas produzido somente responde pelo que causou.

Quando a alteração da capacidade psicomotora por influência de substância psicoativa como a embriaguez voluntária ou culposa, e a competição automobilística não autorizada são utilizadas como demonstrativos da ocorrência do dolo eventual, servem como majorantes de pena, ou seja, um delito que inicialmente tratar-se-ia de culpa passou a ser tratado como dolo para que a sanção correspondesse a reprovabilidade da conduta. Assim a jurisprudência, pelo princípio da consunção, entende não haver o que se falar em concurso de crimes sendo a embriaguez (art. 306, CTB) ou a competição (art. 308, CTB) absorvidos pelo homicídio (art. 121, CP) (consoante Apl. do Processo nº 0000848-61.2006.8.26.0653, julgado em 03/07/2012, ministro-relator: Eduardo Braga, 4ª Câmara Criminal, TJSP) e assim teambém entende o STJ entende na aplicação do referido princípio ao homicídio culposo no trânsito, como demonstrado no julgamento do Recurso Especial nº 629.087-MG (2004/0021054-9).

Nesse caminho, assim como no cometimento de qualquer outro delito, a embriaguez deve ser preordenada, caso contrário, será causa de isenção ou redução de pena positivada no art. 28, II, §§ 1º e 2º do CP.

Doutro ponto, somente com a lei nº 12.760/2012 passou a ser verdadeiramente aceito como prova para constatação de alteração da capacidade psicomotora outros meios em direito admitidos diverso da perícia técnica, como vídeos e testemunhos, meios que até então eram utilizados arbitrariamente por analogia do art. 167 do CPP quando o condutor negava-se a fazer o teste de sangue ou bafômetro, uma vez que a lei exigia tais exames para tanto.

Esta lei também transferiu a responsabilidade de estabelecer a equivalência dos meios de prova e questões relevantes do crime do art. 306, CTB para o CONTRAN que editou a Resolução nº 432/2013 nesse sentido.

Até a vigência da lei nº 11.705/2008 por força normativa expressa na lei nº 11.275/2006, o homicídio ocorrido no trânsito ainda que o condutor estivesse embriagado tinha a natureza culposa. Disso extrai-se que até 20 de junho de 2008, data de sua publicação, não se teria outra tipificação senão a do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro.

Cumpre ressaltar ainda que não há homicídio qualificado na ocorrência de dolo indireto, pois não houve cogitação ou vontade do autor na consequência danosa, incompatibilizando inclusive o “recurso que dificulte ou impossibilite a defesa do ofendido” prevista no art. 121, § 2º, IV do CP, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgado do HC 111.442/RS.

De modo genérico só será encaminhado ao Plenário do Júri a ocorrência em que o condutor encontrava-se efetuando corrida ou competição desautorizada pela autoridade competente ou quando se encontrava com capacidade psicomotora alterada por efeito de álcool ou substância psicoativa análoga que consumiu voluntária ou culposamente desconforme a disciplina legal ou do CONTRAN, desde que a consequência lesiva fosse previsível e podendo abster-se do ato, agiu assumindo a produção do resultado.

As mudanças recentes na legislação de trânsito impondo mais rigor nas sanções em desfavor dos motoristas alcoolizados têm mais cunho político do que autenticamente de ciência criminal, de modo que o problema nunca esteve na existência de leis brandas, mas na falta de fiscalização e de aplicação pelas autoridades competentes, afinal, uma lei que não tem sua finalidade executada não passa de palavras insólitas.

A partir da lei 12.760/2012 ampliaram-se as matrizes probatórias para constatação do efeito do álcool ou similares, e em descompasso ao atender o ânimo de punir das massas, em tais situações com resultado lesivo a exceção passou a tratar-se de regra, permitindo ao órgão acusador já na inicial suscitar na culpabilidade a existência do dolo, transferindo a competência dos juízos de trânsito para o comum (lesão corporal) ou do júri (morte). Daí o direito periclitou, afastando a Justiça para aplicar um “direito penal do inimigo” baseado no espírito de vingança.

Anteriormente, a falta de prova técnica, ainda que em face da negativa do acusado em realizar o exame, fazia que, em respeito ao princípio do “in dubio pro reo”, a infração penal se mantivesse na Vara de Trânsito aplicando-se a modalidade culposa prevista nos art. 302 e 303 do CTB.

Hoje, como a acusação procura demonstrar de todos os modos a ocorrência de dolo eventual e os juízes visando dar uma resposta satisfatória à sociedade e não propriamente aplicar a Justiça, quando o imputado facultando pelo uso do direito de silêncio (art. 186, parágrafo único, CPP), calcado no princípio “nemo tenetur se detegere”, nega-se por exemplo ao bafômetro, a perda dessa chance de formar prova em seu favor ocasiona uma assunção potencial de riscos a uma sentença condenatória, consoante disciplina Aury Lopes Junior (2011, p. 525).

Em contrapartida, atento ao arbítrio de diversos juízos e tribunais, o STF no Habeas Corpus nº 107.801/SP, de relatoria do ministro Luiz Fux, sustentou a necessidade de provas diversas que aliadas a embriaguez indicassem que o autor assumiu o risco de produzir o resultado, só então a responsabilidade passaria a dolo.

Vale então a transcrição da fundamentação presente na ementa:

1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.

2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.

3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.

4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.

5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2005, p. 243)

6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990.

7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).

8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.

(HC 107.801, min. rel. Luiz Fux, julgado em 06.09.2011, STF)

Com esse posicionamento, dotado de razoabilidade e ponderação, rechaçou-se a aplicação matemática de dolo indireto ao condutor que, ao lesionar bem jurídico de terceiro, se encontrava embriagado, devendo-se, pois, presumir culpa consciente ante a existência de tipificação legal específica no Código de Trânsito Brasileiro (arts. 302 e 303), só configurando-se o dolo eventual apenas quando tratar-se de embriaguez preordenada baseada em prova manifesta de que o agente entrou em estado alcoólico com a finalidade ou assunção do risco de matar ou lesionar.

Nesse acórdão, excelentíssimo ministro-relator, em seu voto de vista, asseverou que a desclassificação incube ao magistrado, assim como o encaminhamento ao juízo competente, recordando o caráter atécnico e apaixonado do julgamento pelo Júri, ou seja, mais voltado a emoção que a razão, divergindo do realizado por juízo togado.

Assim, cabe ao juiz e não aos jurados definir a ocorrência do dolo eventual, não se podendo valer de mera presunção, caso contrário, estar-se-ia desrespeitando a presunção de inocência do réu tão somente para colocar o peso da condenação, ou não, aos jurados que sendo leigos teriam, por causa da errônea Pronúncia, também que atestar a configuração de um instituto amplamente discutível e sem consenso pelos mais renomados juristas.

Logo, com base no apresentado, deve-se destrinchar o possível fato concreto para então poder enquadrá-lo juridicamente, ou seja, além do simples conduzir embriagado o fato deve conter outras informações demonstrativas da assunção do risco morte para, só então, encaminhar ao julgamento pelo Tribunal do Júri.

Essas informações transpõem-se a probabilidade da lesão, desvinculando-se do agente e fixando-se em fatores fáticos a exemplo do excesso de velocidade (como trazido no arts. 218, III ou 291, §1º, III, CTB), o racha (art. 308, CTB) ou outras práticas perigosas a exemplo da roleta russa automobilística (ultrapassar sinais vermelhos em alta velocidade), ziguezaguear etc.

Comumente é aplicado o dolo eventual na mistura de álcool e direção ou competição e direção, por se tratarem de situações já consideradas crime, quer exista dano concreto ou não. Em se tratando do segundo cenário, sua sustentação legal situa-se no art. 308 do CTB que traz o verbo participar ligado à conduta de corrida, disputa ou competição automobilística desautorizada desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada.

Tendo-se a ideia de que dano potencial conceitua-se por probabilidade de dano ou perigo, para sua concreção como delito basta a realização da conduta de risco, versando assim de crime de mera conduta, sem a necessidade da ocorrência de prejuízo, pois a possibilidade de sua efetivação está pressuposta no tipo penal.

A embriaguez, presente no art. 306 da mesma norma, segue a mesma ideia de risco potencial, contudo a problemática é um pouco mais extensa, afinal para que haja a sanção o verbo conduzir (veículo automotor) deve se coadunar com a fática alteração psicomotora em razão de substância psicoativa que determine dependência, e essa alteração constatar-se-á mediante prova técnica (teste de alcoolemia, exame clínico ou perícia) ou outros meios em direito admitidos (vídeos, prova testemunhal...).

Essas as provas técnicas estão estabelecidas em leis e regulamentos, inclusive na Resolução nº 432/2013 – CONTRAN, ressalvando-se desde já que as baseadas em percepções leigas requererem ponderação no seu uso, dado que, excetuado o hálito alcoólico, o impacto da colisão pode causar algumas alterações psicomotoras no indivíduo como tontura e perda da dicção, situação facilmente confundível com a embriaguez.

Atendendo ao narrado, somente é devido o encaminhamento do sinistro de trânsito com desfecho morte ou lesão corporal para apreciação e julgamento pelo Tribunal do Júri quando o juiz entender, por seu livre convencimento fundado em prova manifesta, que o condutor pretendeu ou assumiu o risco de matar no momento que participou de corrida disputa ou competição automobilística desautorizada por encarregado competente ou no momento em que consumiu preordenadamente substância que determine dependência ou altere a capacidade psicomotora do indivíduo antes ou durante a condução do veículo.

Essa prova manifesta, no caso do uso de substâncias psicoativas, é o próprio consumo do entorpecente relacionado com outros fatores de risco presentes na ocorrência que indiquem a assunção do resultado.

O mesmo tratamento é dado quando o resultado for lesão corporal, de natureza grave ou gravíssima, que pelo perigo de morte da vítima, permite a configuração do instituto da tentativa, sendo, então, de competência do Tribunal do Júri.

CONCLUSÃO

Com todos os avanços e retrocessos advindos sobre o tema tratado, concordando-se ou não com eles, deve-se ter em mente que o direito muda com a sociedade e cada posicionamento individual ou coletivo sobre um assunto vem repleto de experiências pessoais e da cultura advinda, sendo diverso para cada local e época.

De certo quão mais elevado o Tribunal ou Colegiado mais tempo seus componentes possuem no exercício da função jurídica, sendo em regra mais conservadores, mas também mais intelectualmente desenvolvidos em razão da experiência, permitindo-lhes maior discernimento ao analisar as mudanças e inovações jurídicas e suas complexas consequências.

Em se tratando dos crimes de trânsito não é diferente, a liberdade interpretativa das leis são restringidas pelos juízos e tribunais de hierarquia superior que limitam o uso de diversos institutos com base em princípios gerais de direito, em especial ao se correlacionarem com a seara penal.

Assim o foi com o surgimento de diversas novatio legis sobre crimes de trânsito, que ao tratarem com rigor desmedido as ocorrências com consequências lesivas o próprio STF exigiu indícios diversos da alcoolemia que somados a ela indiquem que o autor de fato assumiu o risco do resultado, para só então falar-se de dolo.

De fato ainda são necessários alguns avanços interpretativos que se coadunem com o in dubio pro reo, mas inquestionavelmente o direito está sempre em constante mudança, e essas mudanças baseadas em novos pontos de vista poderão trazer reparos a diversos pontos controversos e preferencialmente trarão consigo o exercício da mais lídima Justiça, dando a cada fato lesivo concreto sua equivalente repreensão.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 05 nov. 2013.

BRASIL. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm>. Acesso em: 05 nov. 2013.

BRASIL. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503.htm>. Acesso em: 05 nov. 2013.

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BRASIL. Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008. Altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, e a Lei no 9.294, de 15 de julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4o do art. 220 da Constituição Federal, para inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11705.htm>. Acesso em: 05 nov. 2013.

BRASIL. Lei nº 12.760, de 20 de dezembro de 2012. Altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12760.htm>. Acesso em: 05 nov. 2013.

BRASIL. Resolução do CONTRAN nº 432, de 23 de janeiro de 2012. Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados pelas autoridades de trânsito e seus agentes na fiscalização do consumo de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, para aplicação do disposto nos arts. 165, 276, 277 e 306 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Disponível em:<http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/(resolução 432.2013c).pdf>. Acesso em: 05 nov. 2013.

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BRASIL. STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.199.947 - DF (2010/0124228-5), Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 11.12.2012. Disponível em <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=1202353&sReg=201001242285&sData=20121217&formato=PDF>. Acesso em: 05 nov. 2013.

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LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional: Vol. I. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral: Parte Especial. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

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Sobre o autor
Igor Ewerton Florindo Rytchyskyi

Advogado inscrito na OAB/AL. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Maceió - FADIMA/CESMAC; Pós-graduando em Direito Processual pela Faculdade Integrada Tiradentes - FITS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Igor Ewerton Florindo Rytchyskyi. Crimes de trânsito e o Tribunal do Júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3973, 18 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27987. Acesso em: 22 dez. 2024.

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