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Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana

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11/05/2014 às 13:40
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Considerações Finais

Durante a elaboração deste trabalho verificou-se que a noção contemporânea de dignidade humana, segundo a qual todo homem possui valor intrínseco que é fundamento de certos direitos, nem sempre existiu. Ela se engendrou em detrimento da noção de honra (ou noção tradicional de dignidade), segundo a qual o valor de um homem está no cumprimento de certas obrigações e/ou papéis socialmente estabelecidos (sendo a honra, portanto, fundamento não de direitos, mas de deveres de autoaperfeiçoamento).

Concluiu-se, ainda, que a noção contemporânea de dignidade (a ideia de que todo homem possui valor em virtude de sua própria humanidade, valor que prescinde do desempenho de qualquer papel social), colocou os homens em pé de igualdade e configurou-se, desde o século XVIII, em um elemento que desafia moralmente o Direito, dando também aos direitos humanos sua “carga moral”.

No entanto, ou por isso mesmo, o uso judicial da noção de dignidade humana não é pacífico e mesmo fácil. A despeito do seu caráter universal em abstrato, essa concepção, por ser vazia de conteúdo, gera desconfortos quando de sua aplicação judicial ao caso concreto – situação em que ela pode ser invocada pelas partes para fundamentar a defesa de direitos inclusive contraditórios. Dessa maneira, sua aplicação, por vezes, parece mais apoiar-se em algum critério de justiça quase subjetivo do julgador.

Alguns doutrinadores, como Richard Posner, vêm princípios como o da dignidade humana com ceticismo e não acreditam que seu emprego judicial possa se dar de maneira racional. O julgador, quando o utiliza, quase sempre está, na verdade, sendo guiado por certos sentimentos ou até mesmo inconscientes crenças religiosas.

Outros estudiosos, da corrente neoconstitucionalista (e neste trabalho entendeu-se o Neoconstitucionalismo também como uma tentativa de resposta do Direito ao desafio moral trazido pela noção contemporânea de dignidade humana), acreditam que é possível a resolução racional de casos difíceis, justamente com o emprego / ponderação de princípios como o da dignidade humana. Ronald Dworkin afirma mesmo que o juiz não tem (ou não deveria ter) o 'poder discricionário' para decidir o caso de uma maneira ou de outra - ele é (ou deve ser) constrangido, se não pelas regras, pelo princípio, que é “uma razão” que o “inclina numa ou outra direção”.

Quanto ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a cessação do contrato de trabalho, viu-se que, desde que a OMS entendeu que o alcoolismo é uma doença (síndrome de dependência do álcool), o tema tornou-se uma espécie de “caso difícil”, pois a embriaguez habitual, ao menos quando configurada a dependência, deixou de ser mera violação da obrigação geral de conduta do empregado e passou a ser doença – ficando, portanto, questionável a aplicação do art. 482, “f”, da CLT.

Não obstante, verificou-se que inúmeros julgados anteriores e mesmo posteriores a 2001 continuaram aplicando o citado dispositivo Consolidado, ainda que fazendo referência à decisão da OMS, pelo que o fortalecimento da jurisprudência no sentido de não aplicá-lo, a partir de 2001 e, mais consistentemente, a partir de 2006, talvez encontre resposta em um fortalecimento do neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade humana no Direito brasileiro na última década.

De todo modo, a decisão do TST, no sentido de não aplicar o art. 482, “f”, da CLT, encerra em si a noção contemporânea de dignidade humana (em contraposição à noção tradicional de dignidade humana, expressada no referido dispositivo e nas palavras de doutrinadores como Délio Maranhão); é uma tentativa de resposta para um caso que envolve uma questão eminentemente moral (a validade da dispensa por justa causa de empregado que passou a ser considerado enfermo é uma questão moral); envolveu a flexibilização da lei, mas mediante a interpretação, conforme a Constituição, do art. 482, “f”, da CLT (que culminou em sua não incidência a uma determinada situação de fato).

Poder-se-ia afirmar que além de estar conforme a Constituição, o posicionamento do TST pode estar de acordo também, ao menos em algumas decisões, com o critério de eficiência de Kaldor – Hicks, segundo o qual o “ganhador deve ganhar mais do que o perdedor perde”, de modo a, teoricamente, compensar o último (MICELI, 2009). É que embora a empresa 'perca', na medida em que fica obrigada a manter o contrato, o empregado, por sua vez, ganha a manutenção do emprego, encaminhamento ao INSS, percepção de auxílio-doença e possibilidade de se tratar e recuperar-se (ou aposentar-se). Nos casos em que se recupera e retorna ao serviço (sobretudo se é o tipo do funcionário exemplar ou altamente qualificado), a compensação para a empresa deixa de ser teórica, pois há quem afirme que a recuperação de um empregado alcoolista pode ser menos custosa do que a sua dispensa seguida da contratação e treinamento de um substituto. Ademais, o empregado que teve o apoio da empresa no enfrentamento da doença provavelmente será leal a ela.

De todo modo, embora gere algum desconforto o uso judicial de um princípio como o da dignidade humana (ainda mais em detrimento da lei positiva), observou-se que esse foi aplicado com propriedade pelo TST, já que não implicou a criação de um novo direito, mas apenas invalidou a incidência do art. 482, “f”, da CLT a uma situação de fato (configuração do alcoolismo).

Assim, o posicionamento do TST quanto à não incidência do art. 482, “f”, da CLT no caso de empregado alcoólatra (embora vá ser sempre passível de críticas, sobretudo para quem vê com ceticismo tanto a noção de dignidade humana, quanto a pretensão de se fazer uma “leitura moral” do Direito) acabou por expressar, como diria Habermas, a “fusão explosiva entre conteúdos morais e a lei, como um meio no qual a construção de ordens políticas justas deve ser realizada” (HABERMAS, 2010, p. 479).


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Notas

[1] Cf. HABERMAS (2010), SENSEN (2011) e WHITE (2011)

2 As referências bibliográficas em inglês serão traduzidas pela autora.

3 Segundo Zéu Palmeira Sobrinho (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, pp. 168/169), o termo alcóolatra tem “conotação pejorativa”. Assim, a “terminologia corrente na ciência médica recomenda que o doente seja tratado como alcoolista, termo este que confere destaque apenas à prática reiterada do consumo, sem o escopo de estigmatização ou zombaria. Alcoolista é termo mais abrangente para designar não apenas o dependente, mas quem, ao abusar do álcool, situa-se em estágio de iminente dependência, razão pela qual se justifica separar as diferentes espécies de bebedores, isto é, o moderado, o exorbitante e o dependente”.

4 Como bem salienta Palmeira Sobrinho (2012, pp. 182/183), a Primeira Turma do TST, em dezembro de 2010, condenou uma empresa ao pagamento de indenização por danos morais a dependentes de empregado alcoolista que foi dispensado e, em seguida, cometeu suicídio. Trata-se de acórdão relativo ao RR-1957740-59.2003.5.09.0011, da lavra do Exmº Ministro Walmir Oliveira da Costa.

5 Os direitos humanos nascem, no século XVIII, influenciados pela noção jusnaturalista de que os homens possuem direitos anteriores ao Estado. Sendo assim, os direitos humanos limitam a soberania do Estado que, por sua vez, tem como principal função garanti-los e protegê-los. Outro entendimento da época sobre tais direitos (menos 'radical' que o jusnaturalista) é o de que esses direitos nascem de um contrato, “expresso pela Constituição, entre as diversas forças políticas e sociais” (constitucionalismo). Outro entendimento é o de que o Estado é que concede ao indivíduo tais direitos, com base em sua “autônoma soberania” (cf. MENGOZZI, 2000, pp. 353-361). De todo modo, muitos entendem que os direitos humanos, tal como expressos nas Bills of Rights de 1776 e na Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, de 1789, são muito anteriores à ideia contemporânea de dignidade humana, possuindo existência independente dela. Autores como J. Habermas, como se verá, defendem entendimento bem diverso: a noção de dignidade humana, desde o nascimento dos direitos humanos no século XVIII, deu a eles sua validade, seu fundamento moral e sua força (cf. HABERMAS, 2010).

6 Há que se lembrar, aqui, que Peter Berger é um autor austríaco radicado nos Estados Unidos. Quando escreve que as sociedades contemporâneas liquidaram “qualquer concepção de honra” (BERGER, 1986, p. 175), deve-se ter em mente que não está pensando em um país latino como o Brasil, em que essa noção certamente existe com alguma força. Ademais, pode-se criticar o texto de Berger justamente por defender a ideia de que a noção de honra foi completamente aniquilada, o que é discutível mesmo em países ultra desenvolvidos como os nórdicos.

7 A Declaração dos direitos do homem e do cidadão, produzida pela Revolução Francesa de 1789, e os Bills of Rights das colônias norte-americanas que se rebelaram contra a Inglaterra em 1776 são os mais famosos.

8 Importante mencionar que Habermas, se por um lado acha que não se deve abrir mão desse “investimento da lei com uma carga moral” (HABERMAS, 2010), por outro teme que uma hipermoralização do Direito poderia, em última análise, comprometer sua eficácia (cf. LUDWIG, Roberto José. Princípios na relação entre Direito e moral. In: Revista dos Tribunais, RT 915, janeiro de 2012).

9 Cabe notar que Carozza critica McCrudden pelo número de “amostras” relativamente limitado de sua pesquisa (cf. CAROZZA, 2008, p. 935).

10 Quando se atinge o ótimo de Pareto, diz-se que os bens da vida estão com quem mais os valoriza (todos ganham) e “as partes não realizarão novas trocas voluntariamente”. Contudo, “são raras as situações nas quais o Poder Judiciário se vê diante da possibilidade de proferir uma decisão que resulte em ganho para todas as partes envolvidas”. Daí o uso da noção de Kalder – Hicks, que “admite a existência de uma mudança social eficiente mesmo quando o aumento do bem-estar de uma parte resulta na redução do bem-estar de outra (…). Pode-se dizer que uma decisão eficiente no sentido KALDOR-HICKS deve aumentar o bem-estar dos ganhadores em um montante tal que seja possível, ao menos em tese, a compensação da redução do bem-estar dos perdedores” (NIED, PAULO SÉRGIO). Em outras palavras, na noção de eficiência de Kaldor – Hicks, o “ganhador deve ganhar mais do que o perdedor deve perder”; as trocas consensuais devem “garantir ganhos mútuos” e nas não consensuais “aqueles que perdem em virtude de uma política [policy no original] ou decisão irão se beneficiar de outras e, no geral, todos ganham, à medida que a riqueza agregada aumenta”; “as mudanças na política ou na lei são eficientes se os ganhos excedem as perdas” (MICELI, 2009, p. 6). De todo modo, há que se salientar que o juiz brasileiro não poderá decidir em consonância com nenhum desses critérios, ao que parece, se existente norma legal aplicável ao caso, em sentido contrário a eles (NIED, PAULO SÉRGIO).

11 No Brasil talvez a situação não seja tão diferente, ao contrário do que se poderia pensar. Uma das críticas dos partidários brasileiros da análise econômica do Direito é a de que os juízes, influenciados pelo neoconstitucionalismo, têm, nos últimos anos, deixado muitas vezes de aplicar a lei positiva. Ou seja, pode-se dizer que a lei brasileira, em boa parte, traduz o ideal de eficiência econômica / maximização de riquezas (defesa da propriedade) e que alguns juízes, nos últimos anos, é que a estariam relativizando.

12 Cf. entrevista de Posner em https://www.nybooks.com/articles/archives/2011/sep/29/court-talk-judge-richard-posner/?pagination=false [acesso em 23/12/2013 – conteúdo parcialmente pago). Cf. também (POSNER, 2008, pp. 13. e 94).

13 Cabe referir (como se procurou demonstrar neste trabalho) que a noção de dignidade humana tem origens históricas na dignitas romana. Mas é verdade que foi fortalecida no interior de algumas tradições religiosas como o Cristianismo. Por outro lado, até em razão de estudos como os do psicólogo Paul Bloom, poder-se-ia concluir que as Religiões é que se beneficiam de uma moralidade humana inata (ou pelo menos rudimentos de moralidade inatos). Cf. “The moral life of babies”, disponível em: https://www.nytimes.com/2010/05/09/magazine/09babies-t.html? pagewanted=all&_r=0

14 Interessante notar que a Biologia evolutiva tanto tem embasado conclusões no sentido de que o homem não possui uma dignidade especial, quanto tem fundamentado ideias de que não apenas o homem, mas também os animais, possuem dignidade.

15 A pesquisa jurisprudencial teve como recorte temporal os anos de 1999 a 2013, em que foram produzidas cerca de 132 decisões sobre o binômio álcool e trabalho no âmbito do TST. Foram descartados da presente análise todos os acórdãos que não analisaram o mérito ou que não trataram especificamente da “embriaguez habitual” (alcoolismo), detendo-se, por exemplo, no tema da embriaguez em serviço ou no tema do ônus probatório acerca da responsabilidade do empregado quando da configuração de acidentes de trabalho envolvendo abuso esporádico de álcool, etc.

16 Há de se lembrar que o recorte temporal deste pequeno trabalho vai de 1999 a 2013.

17 Cf. “Managing alcohol problems in the workplace: treatment works” (JOSS, Bray): “Supporting an employee through to recovery is likely to result in a more loyal and more committed employee who is an asset to the organisation”. Disponível em https://www.hrmagazine.co.uk/hro/features/1075213/managing-alcohol-workplace-treatment#sthash.5BJiDP6B.dpuf. Também: “Since more than 7 percent of full -time 18 to 49-year-old workers had drinking problems during the past year, treating alcohol problems can curb health care costs and boost productivity” - A sound investment: identifying and treating alcohol problems (HARWOOD, Henrick, p. 10). Disponível em https://www.integration.samhsa.gov/clinical-practice/sbirt/A_sound_investment.pdf. Ademais, cabe acrescentar, quantoa o tratamento do alcoolismo, que “Dados mostram que a perspectiva de recuperação dentro da empresa é de 65 a 70%, enquanto centros de tratamento apresentam índices de abstinência de 30 a 35%” (MORAES, Gláucia T. Bardi e PILATTI, Luiz Alberto. Alcoolismo e as organizações: por que investir em programas de prevenção recuperação de dependentes químicos). Disponível em: https://editora.unoesc.edu.br/index.php/achs/article/viewFile/91/pdf_68.

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Sobre a autora
Raquel Veras Franco

Pós-Graduada em Direito do Trabalho do Centro Universitário Instituto de Educação Superior de Brasília

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Raquel Veras. Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3966, 11 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28178. Acesso em: 23 dez. 2024.

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