Resumo: O planejamento e realização dos megaeventos esportivos estão submetidos ao poder de polícia administrativa do Estado. O ordenamento jurídico brasileiro reconhece a responsabilidade civil do Estado por danos causados a terceiros em virtude de falhas de segurança decorrentes da ação ou omissão estatal, relacionadas ao exercício do seu dever-poder de controle e fiscalização dos megaeventos esportivos.
Palavras-chave: Megaeventos esportivos. Responsabilidade civil do Estado. Controle e fiscalização. Poder de Polícia Administrativa.
Introdução
O planejamento, organização e realização dos chamados “megaeventos esportivos”, a exemplo dos Jogos Panamericanos, Copa das Confederações, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, chamaram atenção da sociedade para questionamentos e desafios postos ao Estado brasileiro. O debate em torno do tema abarca desde o mérito das decisões político-administrativas que determinam gastos públicos com a organização de tais megaeventos até a capacidade do Estado de garantir adequada e suficiente infraestrutura de serviços públicos necessária à mobilização de milhares de pessoas, durante vários dias ou semanas, sem aumentar os sacrifícios rotineiros vividos pelas populações dos grandes centros urbanos, sedes dos megaeventos. No plano normativo merece destaque a controvérsia causada pela promulgação da achamada Lei Geral da Copa – LGC, com vigência fixada até 31/12/2014 para reger o planejamento, organização e realização de megaeventos específicos, incluindo a Copa do Mundo de 2014 e Copa das Confederações de 2013[i]. Dentre outras disposições polêmicas, a lei subtraiu estes megaeventos da incidência do regime jurídico de responsabilização civil das entidades desportivas estabelecidos nas Leis nº 10.671/2003 - Estatuto de Defesa do Torcedor - EDT[ii] e nº 8.078/1990 - Código de Defesa do Consumidor – CDC[iii], microssistemas normativos complementares de proteção e defesa do torcedor-consumidor[iv], acometendo expressamente à União o ônus dos “efeitos da responsabilidade civil” em razão de prejuízos causados por “acidentes ou incidentes de segurança” durante os megaeventos esportivos contratados pelo país com a Fédération Internationale de Football Association - FIFA.
Sem embargo da lei temporária, o presente artigo visa demonstrar que o ordenamento jurídico brasileiro consagra claramente o fundamento e os requisitos da responsabilização civil do Estado para reparação de prejuízos causados a terceiros sempre que houver nexo de causalidade entre os danos sofridos e condutas, comissivas ou omissivas, relacionadas ao exercício do poder de polícia administrativa nos processos de controle e fiscalização dos megaeventos esportivos, porque, nestas hipóteses, a conduta estatal qualifica-se como antijurídica, fundamentando o dever de reparação de eventuais danos indenizáveis.
1. Megaeventos esportivos e responsabilidade civil do Estado
Não há definição jurídica para “megaevento esportivo”. Seu licenciamento, em regra, está subordinado às normas do Estatuto de Defesa do Torcedor e demais normas que regulam os usos do espaço urbano a fim de garantir a proteção de interesses relacionados à saúde, segurança e ao meio ambiente. A mencionada Lei Geral da Copa, v.g., sequer refere-se à palavra “megaevento”, utilizando a simples denominação “eventos” como sinônimo de “competições”, “congressos”, “cerimônias”, “seminários”, “atividades culturais”, “partidas de futebol” e “outras atividades” consideradas relevantes para “realização, organização, preparação, marketing, divulgação, promoção ou encerramento” das competições “oficialmente organizadas, chanceladas, patrocinadas ou apoiadas” pelos organizadores do mais importante megaevento esportivo do planeta (Lei nº 12.663/12, art. 2º, inciso VI).
Segundo Otavio Tavares, “é bastante limitada” a produção científica sobre o tema dos megaeventos esportivos, razão pela qual nos oferece uma síntese genérica formulada por C. M. Hall, para quem “megaeventos”, esportivos ou não, apresentariam como características "grandiosidade em termos de público, mercado alvo, nível de envolvimento financeiro do setor público, efeitos políticos, extensão de cobertura televisiva, construção de instalações e impacto sobre o sistema econômico e social da sociedade anfitriã."[v]
As expressões “impacto” e “legado”, recorrentes na definição de megaeventos, indicariam, segundo Rafaela Dias Romero, “diferentes percepções” quanto à realização dos mesmos. Para a autora, enquanto o termo impacto é utilizado normalmente para descrever “efeitos de uma política, um programa ou projeto no ecossistema, na sociedade em geral e/ou no sistema econômico” com um significado conotativo de “efeito adverso, um dano ou resultado negativo”, o termo legado é frequentemente empregado “quando se quer demonstrar efeitos positivos e também em associação com efeitos de longa duração”.[vi]
Considerados suas características e efeitos, “megaeventos esportivos” são eventos esportivos de grande escala e curto prazo, com elevados impactos sociais - urbanísticos, econômicos e ambientais - sobre as localidades que os sediam. A opção pela exclusão do termo “legado” na definição do conceito advém do fato de que apesar de parecer plausível, além de desejável, que do planejamento, organização e realização de megaeventos esportivos, tais como Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, possam resultar efeitos positivos, transitórios ou duradouros - v.g., oferta de empregos, ampliação e qualificação da infraestrutura urbana - tais legados serão sempre incertos na medida em que estão subordinados a uma série de fatos e circunstâncias mais ou menos controláveis pelos organizadores.[vii] De outra banda, os impactos sociais são sempre certos e, por isso mesmo, exigem ações preventivas e repressivas do Estado, no exercício de competências próprias estabelecidas em lei, para prevenir ou mitigar riscos e transtornos inerentes à escala de tais empreendimentos.
Os impactos causados pelos megaeventos podem se apresentar como danos à saúde, segurança e ao patrimônio das pessoas expostas direta ou indiretamente a eles. Os riscos de danos e do consequente dever de reparação são de tal ordem que a FIFA, para realização das Copas do Mundo e das Confederações, exigiu do Estado brasileiro a assunção expressa da responsabilização civil, contemplada na LGC nos seguintes termos:
Art. 23. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.
O dispositivo foi alvo de impugnação através da ADI nº 4.976/DF, pois, segundo a Procuradoria Geral da República, autora da ação:
Contrariamente ao dispositivo constitucional, o artigo 23 da Lei Geral da Copa adota a Teoria do Risco Integral, pois impõe à União a assunção da responsabilidade por danos que não foram causados por seus agentes. O dispositivo impugnado prevê a dispensa da comprovação da falha administrativa, de forma a responsabilizar o ente público inclusive pelos prejuízos decorrentes de atos de terceiros e de fatos da natureza.[viii]
A redação do dispositivo impugnado, todavia, não modificou o regime jurídico da responsabilização civil do Estado vigente no país. Isso porque o ordenamento brasileiro consagra o fundamento e os requisitos da responsabilização civil do Estado (União, Estados, DF e Municípios) para reparação de danos resultantes da ação ou omissão dos órgãos e agentes públicos competentes para controle e fiscalização de megaeventos esportivos. Senão vejamos.
2. Poder de polícia administrativa e responsabilidade civil
Todas as entidades promotoras e realizadoras de megaeventos, esportivos ou não, têm suas atividades submetidas ao controle e fiscalização do Estado naquilo que concerne à segurança do público e ao bem estar da coletividade. O ordenamento jurídico brasileiro estabelece diversas exigências de ordem sanitária, urbanística e ambiental, para licenciamento de atividades públicas de massa, a exemplo da apresentação prévia de laudos técnicos e de vistorias que atestem as condições de segurança, higiene e capacidade de lotação dos locais onde se realizam. A responsabilidade do Estado pelo controle e fiscalização destas atividades fundamenta-se no seu dever-poder de garantir o bem estar da coletividade administrada através do exercício da função administrativa[ix], “desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais” submetidos ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário.[x]
Dentre a multiplicidade de atuações estatais inerentes ao exercício da função administrativa, o dever-poder de controle e fiscalização dos megaeventos esportivos está claramente inserido no contexto de atuação do poder de polícia administrativa. Este, tomado em seu sentido mais restrito, pode ser definido como o exercício da função administrativa através de intervenções dos Poderes Públicos do Estado destinadas a prevenir ou interromper atividades particulares, condicionando ou limitando exercício de direitos individuais de liberdade e propriedade às exigências da coletividade. Sem pretender detalhar aqui todas as atribuições estatais, vinculadas ou discricionárias, inerentes à atuação do poder de polícia administrativa[xi], ressaltamos apenas que tais atribuições, específicas ou genéricas, encontram-se previstas no vasto repertório das legislações federal, estaduais e municipais que regulam as diversas atividades particulares, impondo aos seus promotores e realizadores obrigações de fazer, não fazer ou suportar, sempre com vistas à conformação dos interesses privados aos interesses coletivos, a exemplo da saúde e segurança dos torcedores-consumidores.
Eventuais danos causados a terceiros resultantes da ação ou omissão estatal na atuação do poder de polícia administrativa são indenizáveis quando a conduta comissiva ou omissiva causadora do evento danoso caracterizar-se como antijurídica, isto é, contrária ao Direito.
3. Antijuridicidade como fundamento da responsabilidade civil estatal pelo dano injusto causado a terceiro
A responsabilidade civil do Estado no Direito brasileiro tem assento no art. 37, § 6º, da Constituição da República:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A regra constitucional da responsabilidade civil do Estado pelos danos causados a terceiros por seus agentes não faz distinção entre condutas lícitas ou ilícitas, comissivas ou omissivas, dando relevo apenas ao resultado: o prejuízo ao patrimônio alheio.[xii] Desse modo, coube à doutrina e à jurisprudência, com sutilezas de matizes que não alteram substancialmente a uniformidade das conclusões, pacificar o entendimento de que o fundamento para imputação de responsabilidade civil ao Estado é a antijuridicidade da conduta - lícita ou ilícita, comissiva ou omissiva - uma vez que a antijuridicidade da conduta qualifica o resultado danoso como injusto, isto é, contrário ao Direito. Com efeito, a antijuridicidade não se confunde com a mera ilegalidade. Enquanto a ilegalidade abrange tão somente condutas comissivas ou omissivas violadoras da lei, a antijuricidade pode alcançar até mesmo a ação lícita, porém, praticada em desconformidade com o Direito.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, a antijuridicidade da conduta, enquanto fundamento da responsabilidade civil do Estado, apresenta-se “bipartida”: i) nos casos de danos causados por condutas ilícitas, comissivas ou omissivas, a antijuridicidade decorreria da mera violação do princípio da legalidade e, ii) nos casos de danos causados por condutas licitas, a antijuridicidade decorreria da violação do princípio da igualdade, uma vez que nestes casos o fundamento da responsabilidade estata é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos.[xiii] Dessa maneira, serão antijurídicas as condutas estatais comissivas sempre que delas resultar dano decorrente de ato ilícito ou decorrente de ato lícito que cause dano anormal e específico a determinadas pessoas[xiv]. Serão igualmente antijurídicas as condutas omissivas sempre que o Estado tenha o dever jurídico de agir para evitar o dano, porém, omite-se ou atua de maneira ineficiente. Na ação ou omissão estatal causadora de danos pela violação de deveres objetivos, isto é, expressamente previstos em lei, não é necessária a demonstração de conduta reprovável do agente, eis que o dano sofrido pelo administrado "tem como causa o fato objetivo da atividade (comissiva ou omissiva) administrativa, regular ou irregular, incomponível, assim, com qualquer concepção de culpa administrativa, culpa anônima do serviço, falha ou irregularidade no funcionamento deste".[xv]
O foco sobre antijuridicidade do dano levou à superação da teoria subjetiva da responsabilidade civil em nosso país, notadamente no caso de atos comissivos do Estado. Contudo, se até mesmo condutas comissivas lícitas do Estado podem, eventualmente, dar ensejo à antijuridicidade quando o dano causado qualificar-se como injusto em face do princípio da igualdade, as condutas estatais omissivas são sempre ilícitas[xvi] e, consequentemente, antijurídicas, nas hipóteses em que a atuação do Estado está prevista em lei como dever de agir específico para evitar determinado dano, porém, o Estado não atua ou o faz de maneira tardia ou ineficiente. Nestas hipóteses, a responsabilização do Estado pela omissão é claramente objetiva, isto é, independe da demonstração de culpa ou dolo do agente público, porque deixar de agir quando a lei manda que o sujeito aja é juridicamente equivalente a agir quando a lei proíbe a ação. Num caso, a lei diz: “é proibido fazer”; noutro, estabelece: “é obrigatório fazer”. A conduta que infringe o dever, no primeiro caso, consiste numa ação; no segundo, é uma omissão.[xvii]
A omissão à determinação de agir específico expressa em lei é diferente dos casos de omissão ao chamado dever específico de diligência que, segundo Marçal Justen Filho, impõe ao Estado, de maneira genérica, a obrigação de cumprir diligente e zelosamente suas funções mesmo quando não haja lei determinando dever de agir específico.
A natureza da atividade estatal impõe a seus agentes um dever especial de diligência, consistente em prever as conseqüências de sua conduta ativa e omissiva, adotando todas as providências necessárias para evitar a consumação de danos a terceiros.[xviii] Por outras palavras, a responsabilização do Estado se impõe quando da ocorrência de dano a terceiros quando o dano for “objetivamente imputável ao Estado, isto é, sempre que o dano for consequência da violação do papel destinado ao Estado nas relações sociais”[xix]. Nestes casos, a ausência de previsão expressa para a atuação estatal não ensejará a perquirição de responsabilização subjetiva. É que o dano decorrente da inação estatal em situações em que a adoção de “cautelas e providências teria impedido que tal se passasse” constitui infração clara ao dever de diligência, levando à presunção de “conduta reprovável, pois os agentes estatais têm o dever funcional de conhecer suas atribuições e de prever as consequências de sua omissão”.[xx]
Como consequência do exposto, nas hipóteses de omissão total ou parcial do Estado, a antijuridicidade restará caracterizada pela violação do princípio da legalidade sempre que houver o dever legal de agir. De outro lado, diante de casos concretos em que o conjunto probatório revele que a adoção de providências administrativas, legitimamente esperáveis e injustificadamente omitidas, poderia impedir a ocorrência do evento danoso, não havendo norma atribuindo ao Estado dever específico de agir, haverá o descumprimento do chamado “dever específico de diligência”, caracterizando a antijuridicidade. Isso porque na omissão total ou parcial diante do dever de diligência a antijuridicidade emergirá da violação do princípio da eficiência, norma que exige eficácia e presteza na atuação do Estado, sem desatendimento dos demais princípios e regras da atividade administrativa.
Admitindo-se, pois, a violação do princípio da eficiência como causa autônoma para caracterização da antijuridicidade, seguindo na supracitada senda aberta por Celso Antônio Bandeira de Mello, o fundamento da responsabilidade civil do Estado apresentar-se-ia de forma tripartida: a) nos casos de danos causados por condutas ilícitas comissivas ou totalmente omissivas, a antijuridicidade decorre da violação do princípio da legalidade; b) nos casos de danos causados por condutas ilícitas parcialmente omissivas, a antijuridicidade decorre da violação do princípio da eficiência; c) nos casos de danos causados por condutas lícitas, a antijuridicidade decorre da violação do princípio da igualdade.[xxi]
4. Requisitos para responsabilização civil do Estado
Visto que o fundamento da responsabilidade civil do Estado reside na antijuridicidade da conduta estatal, comissiva ou omissiva, causadora do dano injusto. Neste passo é preciso destacar que não basta a simples demonstração da antijuridicidade para, ipso iure, impor ao Estado o dever de indenizar. Para que este seja chamado a recompor o patrimônio de terceiros injustamente afetados é preciso também demonstrar na situação concreta a presença de dois requisitos indispensáveis: a) nexo de causalidade entre o dano e a conduta estatal e b) dano indenizável.
a) Nexo de causalidade entre o dano e a conduta estatal
É requisito indispensável à configuração da responsabilidade civil a comprovação do nexo de causalidade entre o dano injusto alegado e a ação ou omissão antijurídica imputada ao Estado. Maria Sylvia Zanela Di Pietro assinala que a responsabilidade civil do Estado “deixará de existir ou incidirá de forma atenuada” quando a atividade do Estado não for a “causa do dano ou quando estiver aliado a outras circunstâncias, ou seja, não for a causa única”[xxii]. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que o nexo causal é requisito necessário para “a obrigação de reparar o dano”[xxiii].
Yussef Cahali chama a atenção para “o acerto da doutrina e da jurisprudência mais atualizada” que na apuração da responsabilidade objetiva do Estado dão ênfase ao “elemento concreto da causalidade entre o dano injusto sofrido pelo particular e a atividade comissiva ou omissiva do ente público”. Com o foco sobre o nexo causal, Cahali propõe as seguintes regras para caracterização de dano injusto: a) o dano é injusto e enseja responsabilidade civil se tem como causa exclusiva a atividade regular ou irregular da Administração; b) o dano deixa de qualificar-se como injusto se tem como causa fato da natureza, do próprio prejudicado ou de terceiro e, c) o dano é injusto, mas sujeito à responsabilidade civil atenuada, se com a atividade regular ou irregular da Administração concorrem outras causas (concausas) como fato da natureza, do próprio prejudicado ou de terceiro.[xxiv]
Destarte, a comprovação de danos relacionados à realização de megaeventos esportivos decorrentes, v.g., da sobrelotação dos estádios; falhas nas estruturas físicas, hidráulicas ou elétricas; falhas de segurança interna e externa; condições sanitárias inadequadas; acidentes de trânsito, enfim, qualquer dano que guarde relação de causalidade, direta e imediata ou indireta e remota, com a falta ou ineficiência de medidas a cargo do Estado, poderá ensejar pretensão indenizatória com fundamento na responsabilidade civil do Estado desde que haja demonstração do nexo causal entre o dano e a ação ou omissão estatal, mesmo quando presente uma ou mais concausas, desde que, como veremos adiante, estas não venham a romper o nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano.
b) Dano indenizável
Os danos sofridos pelos administrados em virtude da ação ou omissão estatal podem ser de natureza material ou moral, mas em qualquer caso, para ser indenizável, deverá apresentar-se como um dano efetivo. Efetivo é o dano que corresponde à lesão de um direito certo da vítima à época da lesão. Apenas a constatação da ação ou omissão do Estado, desprovida da demonstração do dano efetivo, não é apta a ensejar responsabilidade civil. Não há regra geral para determinar a priori quais as exigências para comprovação do dano efetivo, este sempre será apurado, em qualidade e extensão, em cada caso concreto. Além de efetivo, o dano há também de ser individualizável. O requisito da individualização do dano indica que este deverá se apresentar como um dano real sobre o patrimônio individual ou coletivo causado por uma situação anormal. Neste sentido, apoiado em farta jurisprudência, Yussef Said Cahali destaca que para ser indenizável "o dano deve ser anormal, excepcional, individualizado, que ultrapassa, por sua natureza e expressividade, os incômodos e sacrifícios toleráveis ou exigíveis em razão do interesse comum da vida em sociedade".[xxv]
Não será, pois, qualquer perturbação causada por um megaevento esportivo que gerará a responsabilidade civil do Estado. Será necessária a comprovação da efetividade de um dano individualizável que vá além dos inconvenientes cotidianos comuns nos grandes centros urbanos do país, ultrapassando os transtornos habituais impostos indistintamente a todos pela realização de eventos de massa. Nesta linha, entendemos que não caracteriza dano indenizável a execução de medidas discricionárias adotadas pelo Estado, nos limites de suas competências, a exemplo de modificações de rotas de tráfego ou alterações de horários de funcionamento de serviços públicos em dias de jogos desde que estas medidas não se apresentem como excessivamente onerosas a determinadas pessoas ou coletividades. Ressalte-se que na avaliação da onerosidade das ações públicas é preciso considerar que ao Estado, no uso da discricionariedade, compete escolher dentre as soluções possíveis para prevenção ou mitigação dos efeitos dos megaeventos, as medidas mais razoáveis, proporcionais, econômicas e eficientes, pois, mesmo ações estatais resultantes de escolhas lícitas, como vimos, poderão ensejar responsabilização civil caso venham gerar dano injusto à luz do princípio da igualdade.
5. Excludentes e atenuantes da responsabilidade civil do Estado
Por fim, resta-nos abordar as causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade civil do Estado, ou seja, as circunstâncias de fato que podem afastar ou mitigar sua responsabilização. Tais circunstâncias podem se apresentar extinguindo o nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano ou descaracterizando a antijuridicidade da conduta. Rui Stoco, em seu já clássico tratado sobre o instituto da responsabilidade civil, admite apenas o caso fortuito ou força maior e a culpa exclusiva da vítima como forças capazes de “romper o liame causal entre a atuação do Estado e o dano verificado”.[xxvi] Marçal Justen Filho, por seu turno, inclui o exercício regular do direito pelo agente como excludente de responsabilidade sempre que o agente público observar na sua atividade os limites e deveres pertinentes ao dever de diligência.[xxvii]
Em casos de condutas omissivas, Maria Sylvia Zanella Di Pietro destaca o fato de que tanto a força maior quanto a culpa de terceiros podem estar presentes no evento sem que constituam causas excludentes de responsabilidade desde que ambas concorram com a omissão do Estado. Ilustra seu ponto de vista com a força maior das chuvas cujas enchentes e inundações não impedem a responsabilização do Estado quando comprovada a desídia nos serviços públicos de limpeza dos rios ou dos esgotos e, ainda, com relação à culpa de terceiros, faz referência a danos causados por multidão, hipótese em que, segundo a autora, caberá responsabilização civil do Estado se restar caracterizada omissão, inércia ou falha na prestação do serviço de segurança pública.[xxviii]
A nosso ver, a excludente de caso fortuito, entendido como "a situação que decorre de fato alheio à vontade da parte, mas proveniente de fatos humanos"[xxix], parece-nos acertada a posição adotada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que afirma sua impropriedade para a afastar a responsabilidade civil do Estado porque, para o autor, o caráter acidental do caso fortuito “não elide o defeito do funcionamento do serviço devido pelo Estado”.[xxx] Com relação à excludente culpa exclusiva da vítima, entendemos que, se de fato este é o caso, não é apropriado falar em “excludente de responsabilidade” uma vez que não haverá nexo de causalidade para responsabilização do Estado; todavia, comprovada a concorrência de ação ou omissão estatal para o evento danoso, nunca haverá exclusividade de culpa da vítima. Havendo “culpa concorrente” desta a “excludente” poderá figurar como atenuante da responsabilidade estatal. Nos casos de ação ou omissão ilícitas, não há que se falar em exercício regular do direito e, por fim, quanto à força maior e ato de terceiro, entendemos que o Estado somente poderá eximir-se sob estas alegações diante circunstâncias nas quais a força maior ou o ato de terceiro atinjam tais proporções que tornem irrelevantes a ação ou omissão estatal para o resultado danoso do evento, porque nestes casos, haverá ruptura do nexo de causalidade entre conduta estatal e os danos havidos.
Considerações finais
O fundamento da responsabilidade civil do Estado pela reparação de danos causados por seus agentes a terceiros, por condutas comissivas ou omissivas, lícitas ou ilícitas, repousa na antijuridicidade da conduta que viola os Princípios da Legalidade, da Igualdade ou da Eficiência. Assim, ações ou omissões do Estado no exercício do poder de polícia administrativa relacionado à organização e realização de megaeventos esportivos, poderão gerar responsabilidade civil desde que seja demonstrado o nexo de causalidade entre os danos e as condutas dos órgãos e agentes de quaisquer dos entes federados, no âmbito de suas competências próprias. Contudo, para ser indenizável é imperioso que os eventuais danos alegados sejam efetivos, isto é, apresentem-se como danos a direitos certos das vítimas à época da lesão, não sendo indenizáveis os meros inconvenientes cotidianos comuns à vida urbana, tampouco transtornos impostos indistintamente a todos pela realização de eventos de massa. A força maior e o ato de terceiro, quando se apresentem como elementos suficientes para romper o nexo de causalidade entre a conduta estatal e os danos produzidos, são causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade civil.