É necessário enfrentar o cerne e a causa primária dos problemas advindos da relação paterno-materno-filial, sob pena de comprometer-se o futuro da sociedade e o Estado de Direito.
Como advogado especialista e atuante em direito de Família e Sucessões, vejo, com profunda tristeza, o agasalhamento, pela sociedade e também pelo direito, de maneira tangencial e efêmera, dos problemas decorrentes das relações materno-paterno-filiais.
Explico. Tramita no congresso nacional o projeto de lei nº 7672/2010, de iniciativa da Presidência da República, que fora aprovado em algumas comissões e, mais recentemente, em data de 21/05/2014, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, e deverá, de toda a sorte, ser convertido em lei, que prevê, em suma, a proibição da imposição de castigos físicos dos pais sobre os filhos no que tange à educação. Este projeto vinha ganhando, de forma inadequada, o apelido de ‘Lei da Palmada’, passando a denominar-se “Lei Menino Bernardo”.
Pois bem. A reflexão que proponho é a seguinte: “O que é mais grave” - Os pais que "batem na bundinha dos seus filhos" visando, ainda que "supostamente" inadequada esta forma de conduta, impingir-lhes educação ou aqueles que "põe um filho no mundo" e somem, de forma sorrateira, torpe e cruel, sequer assumindo o seu importantíssimo e relevante "papel de pai ou mãe", na medida em que devem prover não só os sustentos materiais, como os imateriais, tais como, educar, cuidar, proteger, etc (nem se cogite acerca de “amar” e “dar carinho”)? Em verdade, quem deve ser punido com veemência e de forma muito mais rigorosa?
Ora, é fato que alguns pais estão a extrapolar quanto "aos métodos de educação/correção" dos filhos, o que poderia, em tese, haver uma punição no campo desta lei. Todavia, é muito mais grave, violenta e agressiva a inação, consistente na conduta omissiva de um dos genitores para com uma criança indefesa, portanto, incapaz, na exata medida que não educa, cuida, provê, deixando-a, assim, de revesti-la do substrato necessário a um desenvolvimento pleno, sadio e harmonioso. Logo, o menoscabo, a ausência de comprometimento com suas responsabilidades paternas e/ou maternas, o ausentar-se e simplesmente abandonar, deve gerar uma punição rigorosa, muito além de eventuais indenizações na esfera do direito civil e, notadamente, dos direitos de personalidade, haja vista que nada pode ser mais abominável do que a ausência de compromisso com a família, sociedade e Estado por um futuro melhor para todos.
A Constituição Federal, assim dispõe:
Art. 205- A educação , direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 6º- São direitos sociais a educação , a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
É cediço que, embora a Constituição Federal tenha elegido algumas áreas como prioritárias, como a saúde, a educação, a segurança, ex vi art. 6º, conclui-se, através perfunctória análise do sistema constitucional, que o legislador constituinte elegeu como “prioridade das prioridades” às crianças e os adolescentes, senão vejamos:
Artigo 227 “ É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Já o artigo 229, preceitua que:
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Reforçando a importância e alcance da proteção dos direitos a criança e do adolescente, a Lei nº 8.069/90 assim disciplinou:
"Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 7º - A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existências.
Art. 18 - É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-as a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Art. 53 - A criança e o adolescente têm direito à educação , visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.
Art. 70 - É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
Art. 73 - A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade da pessoa física ou jurídica, nos termos desta Lei.
Já o Código Civil, estabelece quais são as obrigações dos pais para com os filhos:
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
No que tange aos deveres inerentes ao poder familiar, verifica-se, sendo de meridiana clareza tal entendimento, ser indiscutível o arcabouço normativo a permitir, de igual forma como ocorre no âmbito do direito Civil, também na seara do direito penal, a capitulação de crime, através, por óbvio, de projeto de lei, com o fito de repreender a conduta omissiva abjeta daquele pai ou mãe que atenta contra a família, a sociedade e o Estado.
Diante deste sincronismo de dispositivos legais, à luz da Constituição Federal, indaga-se:
É possível que uma criança tenha dignidade, desenvolvimento sadio e harmonioso, ou ainda, adquira preparo para exercer a cidadania, sem que a sua família, retratada aqui por um dos genitores, deixe-a jogada ao léu?
E como ficaria a situação da força do comando constitucional e dos demais dispositivos supramencionados, frente a omissão de um pai/mãe ausentes quanto à criação de um filho? Estaria ele sujeito apenas ao pagamento de alimentos, ainda que sob pena de prisão (assistência material) e pronto?
No tocante à ausência de assistência imaterial, resta infringido, inegavelmente, toda a ordem constitucional e infraconstitucional, que visa assegurar, com absoluta prioridade, as crianças e aos adolescentes.
É necessário combater a causa e não o efeito.
Clamemos, então, por uma severa punição àqueles que têm, por dever legal, um agir com responsabilidade.
Falo aqui, numa tipificação penal bastante acentuada, uma vez que à luz destas normas imperativas, o Estado não pode silenciar.
Nem se diga, por outro lado, que o crime inserto no artigo 133 do Código Penal, consistente em “Abandono de Incapaz”, seria adequado à caraterização, tipificação e penalização.
A uma, porque "Consuma-se com o abandono, ainda que temporário, desde que haja risco concreto para a vida ou a saúde da vítima. Trata-se de crime instantâneo de efeitos permanentes" (Capez, Fernando. Código Penal Comentado / Fernando Capez, Stela Prado. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.287). Logo, contrapõe-se ao nosso entendimento, na exata medida que lá, o risco há de ser concreto e à vítima e, a contrario sensu, vislumbramos o risco imediato que tem por vítimas a criança, mas também a sociedade e o Estado;
a duas, porque o crime é de perigo, exigindo que o elemento subjetivo, o dolo, se dirija à produção de perigo de dano a incolumidade pessoal do incapaz;
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a três, porque entendemos que as penas são demasiadamente brandas, para os genitores que estão a infringir não só os direitos das criança, como a família, em sua plenitude, a “contaminar”, derradeiramente, a sociedade e o Estado;
a quatro, porque o tipo traz em seu bojo, como possíveis vítimas, não só crianças, como também outras, tal como, exemplificadamente, os idosos, etc., razão pelo qual entendemos deva ser tipo penal que atenda a satisfação da sociedade e do Estado, mas no tocante às primeiras vitimas – crianças e adolescentes.
Logo, além de ser, com o devido respeito ao leitor, “letra morta” na legislação penal, no que concerte ao artigo 133 e também ao artigo 134, vez que não atende ao quanto exposto neste singelo artigo, em função de condições e especialidades, entendo deva ser rigorosamente estudada, legislada e adequadamente colocada em prática esta questão.
Lembremos aqui a teoria do diálogo das fontes, de Erik Jayme, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensina que, em “face do atual ‘pluralismo pós-moderno’ de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo” (Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, II, p. 60 e 251 e ss.).
O sistema, como um todo, precisa ser funcional, evitando, assim, “incompatibilidades e incoerência”.
Noutro dizer, verifica-se, com bastante clareza, que crianças que não puderam desfrutar desta relação direta com os pais, desprovidas, portanto, não só de amor, carinho, afeto, mas também de educação, cuidados, proteção, etc., (embora não se possa generalizar), “uma hora ou outra” engrossarão os números das casas abrigos, Fundações Casas e outras instituições que visam estimular o retorno à família natural, extensa ou substituta, propiciando o convívio social, vez que sequer tiveram chance de aprender, estando, assim, a “combater” erroneamente, a consequência, mas não a causa.
Crucial dizer que, na maioria dos casos, quando os pais deixam de prover a necessária assistência imaterial, quem sofre é a sociedade e o Estado constituído.
Urge esclarecer que, uma vez violado este compromisso, coloca-se em cheque toda uma credibilidade no futuro da sociedade e, porque não dizer, do país.
Nesta esteira, não seria muito difícil estabelecer um nexo de causalidade entre a conduta omissiva do genitor que abandona seu filho e as sequelas decorrentes de tal ato, levando este último, por ventura, às ruas, às drogas, ao cometimento de delitos, etc. Embora não seja algo absoluto, são numerosos os casos relatados.
Assim, mais uma indagação: O não cumpridor de suas responsabilidades na qualidade de genitor (que deixa para sociedade um resultado catastrófico), só paga indenização se alguém assim a pleitear no judiciário e fica por isso mesmo? E mais, imaginemos um “pai” ou uma “mãe”, portadores de invejável situação financeira - ele paga a pensão alimentícia e quiçá a indenização e pronto? Fácil assim? O nosso sistema penal peca numa rigorosa sanção para aqueles que “despejam inocentes crianças” em solo brasileiro. É justo? Parece-me que não!
Ora, o grande mestre e filósofo Platão já dizia que "não deverão gerar filhos quem não quer dar-se ao trabalho de criá-los e educá-los".
Embora as decisões nas cortes superiores venham se aperfeiçoando, com a caracterização do denominado abondono afetivo, ex vi do Recurso Especial n. 1159242/SP, que teve por relatora a Exma. Ministra Nancy Andrighi, é preciso buscar uma solução que não seja eventual indenização civil.
A solução seria a meu ver, a sociedade e o direito enfrentar o cerne desta questão e agasalhar esta conduta antijurídica, pois embora ninguém seja obrigado a amar, não é justo que a sociedade pague por um adulto mal criado e mal educado, fruto de outro adulto que quedou-se inerte quanto aos seus deveres constitucionais e infraconstitucionais, transferindo, doravante, a responsabilidade à toda uma sociedade. Istoé cruel, desumano e aterrorizante! Isto é o maior crime praticado contra a sociedade e o Estado de Direito! Este é um crime hediondo!
Irretorquível, pois, o ensinamento de Pitágoras, ao assim dizer “educai as crianças, para que não seja necessário punir os adultos”.
É chegado o momento de dar um basta em discussões efêmeras e tangenciais, tais como redução da maioridade penal, aumento da penalização das medidas sócio-educativa, “Lei das Palmadas”, etc.
Vamos “por o dedo na ferida” e caso não seja possível, por falta de vontade política, modificar a educação e senso de civilidade dos pais em idade adulta, vamos penalizá-los com a retirada deles do convívio social. Vamos aprisioná-lo para ressocializá-lo, até este indivíduo aprender o real significado da palavra “pai”, “mãe” e “família”. (lembremos aqui que embora o sistema carcerário esteja sucateado, o direito e as leis devem ser elaborados para um “mundo ideal”).
Não há nada mais contraproducente, no Estado, do que recolher crianças e adolescentes que cresceram à revelia e inércia dos pais e deixar estes últimos em liberdade pelas ruas. Quer dizer que segregamos crianças e adolescentes e aqueles que os colocaram no mundo ficam em liberdade?
Registre-se, ademais, que o que se pode esperar de um país onde pune-se aquele que "dá uma palmada em uma criança" e permite-se o aborto (ainda que situações excepcionais), ou seja, "matar pode, mas bater não"?! Incongruência do sistema!
Antes de concluir, permitimo-nos fazer uma homenagem às psicólogas e assistentes sociais de todo país, pois não fossem elas, atuando dentro do "limite do possível" que este Estado propicia, sempre dedicando-se em apoiar e orientar aos pais sobre as responsabilidades parentais, a violência estaria bastante elevada.
Este autor entende que:
não há crime mais hediondo do que aquele praticado contra um filho, decorrente da inobservância dos seus deveres paternos ou maternos, a refletir-se e a macular toda uma sociedade;
argumentos constitucionais e infraconstitucionais não faltam a permitir a capitulação do crime em espécie;
se este país admite a prisão pela falta de pagamento de alimentos, com maior razão haveria de prender-se pela falta de assistência imaterial, pois ainda que ninguém seja obrigado a amar, é obrigado a cuidar com responsabilidade;
é necessário o enfrentamento da causa e não do efeito;
não se pode conceber a ideia de “segregação” por atos infracionais, ainda que sob o manto da protetividade e provisoriedade, e deixar os responsáveis (genitores) em liberdade – encarar efeito, mas também a causa;
a responsabilidade é de todos nós, conforme disciplina dos artigos 227 da CF/88 e 70 do ECA. Assim, em paralelo às políticas púbicas que objetivam atender aos direitos infanto-juvenis com total primazia, deve ser levada a efeito uma severa punição aos pais que abandonam e silenciam os cuidados de seus filhos;
embora não seja possível e produtivo obrigar alguém a AMAR, é perfeitamente possível e necessário obrigar a CUIDAR, estabelecendo, como ordem imperativa, uma paternidade/maternidade responsável, privilegiando a família, a sociedade e o Estado, sob pena deste último repreender severamente o agente omisso.
Necessário entender os problemas das famílias e das sociedades como algo indissociável – caso contrário, o que se tem é um sistema caduco.
Estas são apenas algumas considerações, sem qualquer pretensão de exaurir as questões postas, mas apenas e tão somente despertar uma importante reflexão, estabelecendo, dessa forma, um debate saudável e salutar, ocasião em que agradecemos, nesta oportunidade, a atenção do leitor.
“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”
Martin Luther King
"Educai as crianças para que não seja necessário punir os adultos."
Pitágoras
"Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas.“
Jean-Paul Sartre