INTRODUÇÃO
Os escritos de John Hart Ely são uma contribuição distinta e importante da literatura jurídica estadunidense. A combinação de uma voz informal e ao mesmo tempo intensa atingiu as instituições dos Estados Unidos da América, o objetivo deste trabalho é tentar entender o porquê disso, expondo assim os pilares da teoria construída por esse autor.
A teoria a ser exposta fala sobre o controle de constitucionalidade realizado pelo judiciário hodiernamente. Na construção aqui desenvolvida, trataremos do ativismo judicial, visto por alguns autores como um exercício que fere a tripartição dos poderes, posto que o judiciário parece adentrar, especialmente no controle de constitucionalidade, em esferas além de sua competência. Tal afirmação é justificada porque o legislativo é considerado o original representante do povo e elaborador das leis, antes de elas entrarem no ordenamento jurídico. Ely apresenta uma visão muito cética a respeito desse quadro, entre outros assuntos, os quais tentaremos reconstruir.
Ainda, convém esclarecer que nos pouparemos de apresentar as críticas destinadas à teoria elyana, remetendo-nos para as principais e sem muitas contextualizações, pelo simples motivo de que a ideia central é apresentar a obra do autor e não suas opiniões diversas.
Nesse viés, dividimos o trabalho três partes. A primeira é uma brevíssima exposição sobre o constitucionalismo estadunidense, tentando embasar o leitor sobre a cultura jurídica daquele país. Ainda, em sede introdutória, entendemos interessante uma simples biografia do autor título deste trabalho.
Após, partiremos para um background conceitual das principais terminologias encontradas em Ely. Portanto, trataremos da visão do autor sobre a Constituição dos Estados Unidos da América; também explicaremos a diferença entre os interpretativistas e os não-interpretavistas; e por fim, descreveremos o conceito de teoria procedimental.
Avançando, serão abordadas as principais ideias do autor em um tópico genérico, descrevendo dentro do possível as bases conceituais e os planos hermenêuticos basilares da construção dogmática de Ely.
Por fim, será descrito o ceticismo do autor, nota peculiar de seu trabalho jurídico e que influencia toda a construção teórica por nós a seguir apresentada.
Quanto à metodologia, basicamente o trabalho será do tipo revisional, expondo a obra do autor, com breves comentários de outros doutrinadores e em alguns pontos apresentando nossa originalidade. No que tange às citações de língua estrangeira, na maior parte dos casos (quando não houver tradução original em língua portuguesa) será de nossa responsabilidade.
1 CONSTITUICIONALISMO NORTE AMERICANO
Antes de iniciar nosso artigo, é vital que façamos um pequeno paralelo sobre a Constituição dos Estados Unidos da América. Essa síntese não tem outro motivo senão embasar o leitor sobre o processo constitucional daquele país e assim o ambientar ao texto e as ideias de John Hart Ely, foco do nosso texto.
A Constituição dos Estados Unidos da América data de 1787, mas o Constitucionalismo daquele país é anterior. A Constituição tem sete artigos e vinte e seis aditamentos, que a complementam e geralmente tratam a respeito dos direitos fundamentais.
Os pontos básicos a serem levantados são os seguintes: as decisões pretorianas são essenciais na aplicação e interpretação da Constituição[1]; ainda, o costume também tem um valor alto, juridicamente; e por fim, não menos importante, há as Constituições dos Estados federados (que diferem da carta magna por serem extensas e regulamentárias), que regulam pontos importantes da Constituição. Tudo isso somado a ideia do Common Law[2] e dos princípios de direito público.
2 O JURISTA JOHN HART ELY[3]
John Hart Ely nasceu em 1938, em Nova Iorque, e faleceu em 2003, na Flórida. Durante sua carreira, foi professor de direito constitucional na Harvard University e diretor da Stanford Law School, ainda, posteriormente, lecionou na University of Miami Law School. Antes da carreira acadêmica, foi membro júnior do quadro de 16 advogados da Warren Commission, assessor do Juiz Earl Warren e defensor público em San Diego.
Seu principal trabalho, Democracy and distrust: a theory of judicial review (1980) foi agraciado com o prêmio Order of the Coif Triennial Book Award de melhor livro sobre direito público publicado no biênio 1980-82[4].
Outro dado interessante de sua carreira, é que em pesquisa realizada em 2000 pela University of Chicago, chegou-se a conclusão de que Ely é o quarto jurista americano mais frequentemente citado em todos os tempos. Ainda, segundo pesquisa da University of Miami School of Law, o livro paradigma do autor, Democracy and distrust, é o livro jurídico mais citado desde 1978, sendo referido 1.460 vezes[5].
3 ELEMENTOS DA TEORIA DE JOHN HART ELY: BASES CONCEITUAIS
A teoria do Professor Ely não é somente constitucional, ou diz respeito somente à interpretação da Constituição, ela é maior que isto. Além da diretriz jurídica, a teoria de elyana é importante para uma reflexão dialógica sobre a sociedade plural e pluralista democrática e constitucionalmente includente. Portanto, suas reflexões também tratam sobre política e cultura[6].
Assim, o que vamos estudar é uma teoria de controle constitucional que oferece relevantes contribuições às temáticas da relação entre o direito, a política e a justiça e da relação entre os poderes judiciário e legislativo.
3.1 A Constituição dos Estados Unidos da América por Ely: aspectos básicos[7].
No decorrer de Democracia e descontentamento, nota-se que o livro é, em certas partes, como um manual de direito constitucional, pois explica a Constituição estadunidense de modo completo, ementa por ementa. Nessa abordagem, o autor tenta demonstrar a aplicação correta de cada dispositivo, ainda faz um paralelo histórico, ou seja, como o constituinte pensou determinado direito e por que o escreveu. Talvez a explicação histórica seja também uma das partes mais interessantes do livro.
Mas, dentro desse contexto, de explicação, talvez o que se veja de maneira mais produtiva é a simples ideia de que a Constituição não fixa valores substantivos, é o que Ely tenta comprovar – apesar de deixar bem claro que a Carta Magna é um documento complexo, portanto, complicado é dar uma caracterização superficial e genérica. No texto original (sem ementas) esses valores não aparecem. Já nas ementas, quando aparecem, são muito poucos, e talvez por erro do legislador. Por Ely: “[...] tais tentativas de fixar valores substantivos não cabem numa constituição[8]”.
Nessa temática, o autor tenta comprovar que as disposições constitucionais que tentaram impor valores não sobreviveram. As que sobreviveram é porque são pouca importantes e não geram discussões, por exemplo, a autoincriminação e o double jeoparty. Agora, outras que vieram tais quais: a escravidão e a lei seca, não se garantiram, foram eliminadas por revogação, e outras menores, ainda, foram revogadas por interpretação judicial[9].
Nesse raciocínio, compreende Ely que o objetivo daquela Constituição é garantir a liberdade. E denota sua explicação para como conseguir essa liberdade. A resposta é que o processo de escolha de valores deve estar aberto a todos[10]. E talvez tenha sentido, haja vista que uma Constituição que trate somente de questões de processo se torna mais aberta as mudanças da sociedade, e dessa forma, sobrevivendo por mais tempo. Isso é presente na Constituição estadunidense, diferentemente de constituições de cunho ideológico.
Mas ainda isso é um breve contexto inicial da formatação de Constituição por Ely, no decorrer do trabalho, observaremos, novamente, algumas dessas abordagens, com um viés mais especializado.
3.2 Interpretativistas e não-interpretavistas
Uma importante e difícil distinção deve ser feita: quem são os interpretativistas e os não-interpretavistas[11]. Os interpretativistas afirmam que os juízes que aplicam a Constituição devem limitar-se a fazer cumprir as normas explícitas ou efetivamente explícitas na constituição escrita. Por outro lado, os não-interpretativistas adotam uma opinião contrária, ou seja, que os tribunais devem ir além desse conjunto de referências e fazer cumprir normas que não se encontram claramente indicadas na linguagem do documento[12]. Mas essa separação não significa a diferenciação entre “ativismo” e “automoderação”, pois essas categorias existem nas duas teorias. Ainda, acrescente-se ao debate a questão do “jusnaturalismo”, que é atrelado a postura não-interpretativista; que é o oposto do “positivismo”, semelhante ao interpretativismo[13].
Sobre o interpretativismo, nas linhas primeiras de Democracia e descontentamento, Ely fala dos atrativos ligados a essa abordagem. Primeiro, explica que tal teoria é a que se encaixa melhor na concepção americana do que é o direito e de como ele funciona. Segundo por que tal método advém das dificuldades óbvias que o não-interpretativismo encontra ao tentar conciliar-se com a teoria democrática dos EUA[14]. Além disso, ressalta que o interpretavismo estrito é praticável somente nos casos mais literais.
Ainda, nessa esfera do interpretavismo, discorre o autor de que os juízes não são eleitos, nem reeleitos. Assim, em atenção ao princípio democrático, tal ideia de controle de constitucionalidade atenta contra essa característica[15]. Explica o autor: “quando uma corte invalida um ato dos poderes políticos com base na Constituição, no entanto, ela está rejeitando a decisão dos poderes políticos, e em geral o faz de maneira que não esteja sujeita à “correção” pelo processo legislativo ordinário[16]”. Extrai-se disso que, um órgão que não foi eleito, ou que não é dotado de nenhum grau significativo de responsabilidade política, diz aos representantes eleitos pelo povo que eles não podem governar como desejam.
Ocorre que nessa colisão das duas teorias, ambos defensores são taxados, pelos antagonistas, como antidemocráticos, como se pode ver, com certa razão. E todos confirmam a ideia de que a democracia majoritária é o cerne do sistema americano. Deste modo, quando o adepto do não-interpretativismo entrega aos juízes a tarefa de definir valores que devem ser colocados fora do alcance do controle majoritário, o interpretativista toma seus valores diretamente da Constituição - isso significa que, como a constituição foi ratificada pelo povo, os valores vêm deste. Nessa hipótese, quem controla o povo não são os juízes, mas a Constituição, assim, o povo controla a si mesmo, dentro do raciocínio[17].
3.3 A teoria procedimentalista
Continuando é importante teorizar, mesmo que brevemente, o que é a teoria adotada por Ely. Juntamente com Ely, destacam-se na doutrina outros procedimentalistas, tais quais: Habermas, Luhmann, e Garapon.
Basicamente, para a teoria, em sentido geral, a Constituição não pode mais ser entendida como uma “ordem” que regula primariamente a relação entre o Estado e os cidadãos[18]. O poder social, econômico e administrativo necessita de disciplinamento por parte do Estado de Direito. De outro lado, porém, a Constituição também não pode ser entendida como uma ordem jurídica global e concreta, destinada a impor a priori uma determinada forma de sociedade. A Magna Carta determina procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida. Somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do Direito[19]. Em Habermas, nota-se a defesa de procedimentos de criação democrática do Direito, protegendo o direito de todos participarem de forma igualitária da “discursividade produtora dos sentidos jurídicos”. Assim, é indispensável um procedimento que permita a inclusão de todos os cidadãos nos ambientes discursivos, tal como em Ely[20]. Desse modo, numa sociedade pluralista, a fundamentação das normas jurídicas é resultado de um procedimento democrático que garanta a participação de todos na formulação do Direito, essa é a base da teoria[21]. Numa democracia procedimental, portanto, serão legítimas e válidas as leis que receberem a aprovação de todos os cidadãos em um procedimento legislativo constituído legalmente[22].
A teorização contrária ao procedimentalismo é denominada substancialismo[23]. Os últimos sustentam que as decisões judiciais auxiliam na afirmação dos direitos fundamentais e na realização de uma “agenda igualitária”, especialmente por se tratar da realização, pelo direito, de princípios jurídicos já admitidos socialmente; por outro lado, os procedimentalistas acham que o direito, em excesso, pode ser prejudicial ao regime democrático[24].
Em John Hart Ely, vimos posicionamento distinto do procedimentalismo “universalizante” de Habermas e da teoria sistêmica/autopoiética de Luhmann, focando sua ideia no contexto estadunidense, que é afetado por um ativismo judicial intenso, contra o qual se dirige, portanto, podemos denominar Ely como um procedimentalista constitucional. No contexto elyano, a função dos tribunais é garantir e proteger o direito dos cidadãos de participarem das decisões políticas e governamentais, independentemente do “mérito substancial” das opções políticas em jogo, pois a tarefa de definir os valores e os conteúdos de uma comunidade deve ficar a cargo dos órgãos de representação democrática, daí entendemos o porquê que o autor se baseia muito na questão das minorias, que são excluídas deste jogo. Uma vez que a Constituição se preocupa em manter a liberdade, é compreensível que, para atingir esse objetivo, ela estabeleça “um conjunto bastante amplo de proteções procedimentais e por um esquema ainda mais elaborado que visa assegurar que, ao se fazerem escolhas substantivas, o processo de decisão estará aberto a todos, em condições de relativa igualdade, e os responsáveis pelas decisões cumprirão o dever de levar em consideração os interesses de todos os que serão afetados por suas deliberações[25]”. Portanto, se afasta a ideia de uma interpretação constitucional baseada em valores fundamentais, pois a tarefa de buscar valores externos que completem a “textura aberta” da Constituição é uma tarefa inócua[26].
Enfim, o discurso de Ely é um pouco diferente dos demais, mas abordagem ficará mais densa nos próximos pontos. Adiantaremos agora para os aspectos gerais da teoria elyana, onde poderá se ver com mais cuidados os pontos importantes da construção doutrinária do autor.
4 A TEORIA DE ELY
A teoria de Ely tem como fundamento inarredável a autoridade do texto constitucional e do contexto da Constituição. Sua teoria, tida como procedimental, oferece às cortes um caminho próprio, coerente, em certa medida original, de proteção dos direitos assegurados a todos, especialmente aos de acesso e participação política e os de igualdade.
No pensamento do autor, nem o interpretativismo restrito a dispositivos constitucionais como unidades contidas em si mesmas nem o não-interpretativismo apegado à afirmação dos valores fundamentais da sociedade apresentam respostas hermenêuticas satisfatórias. Com isso, o próprio autor diz no prefácio de seu principal livro, que tenciona a elaborar uma terceira teoria de controle de constitucionalidade (distante da interpretativista e não interpretavista, apresentando um meio termo). Assim, defende que essa teoria é coerente com os pressupostos democráticos implícitos da constituição; e que na verdade, essa nova via teórica é estruturada de modo que faça com que os tribunais sejam instrumentos que ajudam a tornar tais pressupostos uma realidade[27].
O autor baseia muito sua teoria na questão democrática[28]-[29]. Com base nesse valor, discorre sobre o controle de constitucionalidade. Para ele, os “iguais” em “posição original” tentando formar um governo começariam da presunção de que nenhum dos valores de um adulto “médio” deve contar mais ou menos do que os de outro, o que desencadeia na ideia de que as questões públicas devem geralmente ser decidas pelo voto majoritário de tais pessoas ou seus representantes. Sobre isso, o autor aponta três exceções: (i) quando a maioria das pessoas vota para excluir outras tantas pessoas do processo ou de outra maneira para diluir a influência delas no dito processo; (ii) quando tal maioria decreta um regime regulatório para si e outro, menos favorável, para uma ou outra minoria; (iii) quando outros constrangimentos colaterais parecem suficientemente importantes (e vulneráveis, segunda a opinião da maioria), de forma que os legisladores decidem por voto majoritário nomeá-los em um documento constitucional e desse modo torna-los imunes à retirada por algo inferior a um voto majoritário similar no futuro.[30]
Com isso, defende o autor que a determinação dos valores deve ficar a cargo dos representantes eleitos, cabendo ao judiciário interferir em caso de funcionamento deficitário do processo democrático[31]. O mau funcionamento pressupõe que o processo não nos merece confiança, desta maneira: “(i) os incluídos estão obstruindo os canais de mudança política para assegurar que continuem sendo incluídos e os excluídos permaneçam ondem estão, ou (ii) quando, embora a ninguém se neguem explicitamente a voz e o voto, os representantes ligados à maioria efetiva sistematicamente põem em desvantagem alguma minoria, devido à mera hostilidade ou à recusa preconceituosa em reconhecer uma comunhão de interesses - e, portanto, negam a minoria a proteção que o sistema representativo fornece a outros grupos”[32].
Em Democracia e descontentamento, o autor explana exatamente sobre como as cortes devem dar conteúdo aos dispositivos que não podem ser interpretados somente pela sua literalidade ou historicidade, esses dispositivos exigem um esforço hermenêutico maior. No seu entender, as cortes devem proteger os direitos que são designados com alguma especificidade no documento constitucional como habilitados a proteção. Desta maneira, quando os dispositivos constitucionais apresentam uma abertura de sentido (não correspondem meramente a procedimentos, ou seja, são cláusulas abertas[33]) o autor apresenta duas soluções. A primeira é que existe a necessidade das cortes protegerem os direitos de acesso políticos, tais quais: o voto, à reeleição, organização políticas, liberdade de manifestação, etc. A segunda reflete a ideia de que os representantes devem representar os seus eleitores, e isso implica nalguns direitos de igualdade ou, em outros termos, proteger os direitos das minorias contra a vontade das maiorias. Ely baseia sua teoria, também, na reação às maneiras como o pluralismo fracassa em proteger as minorias[34]. Por Habermas, “Ely imprime um rumo procedimental inesperado à desconfiança liberal em relação a minorias tirânicas. Ele se interessa pelas limitações concretas do pluralismo formalmente permitido e utiliza a representação clássica da representação virtual[35], a fim de reclamar uma participação com igualdade de chances para as minorias tecnicamente representadas, porém, de fato, excluídas ou impedidas[36]”.
Os três argumentos principais de Ely para a forma de controle de constitucionalidade orientada para a participação (participation-oriented form of judicial review) são: (i) os direitos de acesso e de igualdade são os que menos devemos confiar aos nossos representantes eleitos, isso porque eles são os mais suscetíveis de impedir o acesso de vários grupos insurgentes e dissidentes ao processo e para colaborar com uma minoria dominante, de maneira a tiranizar ou discriminar certas minorias, de cujo apoio eles não necessitam, por isso a intervenção judicial não é justificada quando o escopo é a proteção de “valores fundamentais da sociedade”, pois, se o que eles realmente desejam é o respeito aos “valores do povo”, é inegável que os representantes eleitos têm fortes incentivos para defini-los corretamente, a fim de se reelegerem[37]; (ii) as preocupações gerais da Constituição são os direitos de acesso e de igualdade; (iii) a abordagem representation-reinforcing para o controle de constitucionalidade é a que representa o ideal democrático das instituições estadunidenses.
Voltando à celeuma da democracia, o autor também defende o “utilitarismo”, pois a teoria utilitária de democracia produz um controle de constitucionalidade mais interessante no tocante à igualdade, diferentemente de uma teoria de democracia voltada para a igualdade pura, que se satisfaz com dar cada um o seu voto[38].
Nesse viés, Ely se opõe a proteção judicial, pela Suprema Corte, de direitos que não são encontrados na Constituição, que não são pré-requisitos para a participação política e que não figuram entre aquelas que a maioria controladora assegurou para si. Isso porque, na concepção estadunidense (em qualquer sociedade ocidental) não se acredita que qualquer cidadão tenha mais direito do que o outro para ditar o que é importante[39]-[40].
Avançando, o autor, por várias vezes discorre sobre a cláusula do due process of law[41]. Sobre o assunto, descreve que tal cláusula contém sentido somente procedimental – diferentemente de como ela é comumente aplicada pela Suprema Corte, que a interpreta de maneira extensiva, dando-lhe valor substantivo, fato que o autor repudia[42]. Sobre a questão de identificar os valores substantivos dados aos “princípios de justiça fundamental”, explica que é uma tarefa impossível, assim, as cortes deveriam não se dedicar a fazê-lo, haja vista que não devem revogar o ato das legislaturas popularmente eleitas. Complementa que deve se afastar a tentação de dar um conteúdo substantivo a “princípios de justiça fundamental”, ou seja, de requerer não simplesmente que certos procedimentos sejam observados, mas igualmente que “princípios de justiça fundamental” substantivos sejam cumpridos[43]. Assim, entende Ely que as liberdades civis são mais protegidas em um tipo de controle constitucional voltado para o processo e para a participação política, ao contrário do que acontece quando o controle é voltado para imposição judicial de “valores fundamentais da sociedade”[44]. Resumindo: a Constituição estadunidense regula em primeira ordem os problemas de organização e de procedimentos, não sendo vista para a distinção e implementação de valores fundamentais, de maneira que a sustância da mesma não se habitaria em regulamentos materiais, e sim formais; assim, a Corte deve zelar pela manutenção da Constituição[45], tão somente.
Tendo em vista essa noção de controle constitucional, com base no processo e não de valores, o autor desenvolveu a teoria “nós-eles” (we-they). Tal doutrina explica que a corte deveria mais suspeitar é das classificações que favorecem os grupos que são dominantes na legislatura (no caso estadunidense: que favoreçam, desde sempre, brancos, homens, protestantes e heterossexuais[46]). Isso porque há certa tendência, até aceitável, mas não correta, de aceitar generalizações que as tranquilizem de que os grupos aos quais pertencem são superiores[47]-[48].
É aqui que nasce uma das preocupações conflituosas de Ely. O autor procura um meio-termo entre a impraticabilidade do originalismo e as perigosas conclusões inferidas por um realismo judicial que declara que o texto significa unicamente o que a Suprema Corte diz que é. O conflito existe porque Ely compreende que a posição de meio-termo é difícil de sustentar. Assim, se por um lado admite a impossibilidade teorética do interpretativismo estrito; por outro, ele concluiria que a natureza ampla, sem limites fixos, de partes do texto convidaria e justificaria o exercício de arbítrio judicial na aplicação dos critérios constitucionais[49].
Ao caminhar entre esses dois pontos de vista contraditórios, Ely se debate com o seu principal dilema, que é definir o papel da Suprema Corte como instituição política. Conclui que a Suprema corte deveria ser um tipo de supervisor da política eleitoral e ombudsman[50] da democracia representativa. Pollack vê com dificuldades essa questão, haja vista que Ely fornece pouca justificação para esta substituição em massa do republicanismo do século XVIII, que está no bojo da própria magna carta, por uma democracia participativa igualitária[51].
Habermas também critica Ely[52], pois, para o estadunidense a Suprema Corte só pode conservar sua imparcialidade se resistir à tentação de preencher seu espaço de interpretação com juízos de valores morais. Observa o alemão que Ely é contrário também a uma teoria de interpretação dirigida por princípios, no sentido da interpretação construtiva de Dworkin[53]. Assim, nessa visão, Ely é, no mínimo, contraditório, pois ele tenta pressupor a validade de princípios e recomendar ao tribunal uma orientação por princípios procedimentais dotados de conteúdos normativos. Explica Habermas que o próprio conceito de procedimento democrático apoia-se num princípio de justiça, no sentido de igual respeito por todos. Porém isso não resulta, de formal alguma, que os princípios que fundamentam a força de legitimação da organização e do procedimento da formação democrática da vontade não sejam suficientemente informativos devido à sua natureza procedimental e que tenham que ser completados através de uma teoria substancial dos direitos[54].
Mas Habermas também concorda com Ely no que tange à repulsa a uma compreensão paternalista do controle de constitucionalidade. Essa compreensão possui “uma desconfiança amplamente difundida entre os juristas contra a irracionalidade de um legislador que depende de lutas de poder e de votações emocionais da maioria”. Conclui que “uma jurisdição juridicamente criativa do Tribunal constitucional justificar-se-ia a partir de seu distanciamento da política, bem como a partir da racionalidade superior de seus discursos profissionais[55]”.
Resumindo, para Pollack, a teoria elyana não é facilmente atingível. Ainda, para Habermas, essa teoria não dispensa uma orientação por princípios, mesmo que princípios procedimentais quer Ely entenda como princípios ou não. Finalmente, entende-se que Ely oferece uma opção coerente e muito original de aplicação da Constituição.
Como já dissemos, Ely busca uma abordagem procedimentalista com base na autoridade da Constituição. Afirma que a Constituição se preocupa basicamente com questões de processo[56], relacionados com direitos de acesso e de igualdade (não exclusivamente) e não com imposição de valores ou princípios fundamentais afirmador por uma determinada sociedade em uma determinada época.