3. Prestações sociais mínimas a serem garantidas às “pessoas em situação de rua”[51]
Ao afirmarmos que o conteúdo da dignidade humana é delineado sob a influência da “teoria dos círculos”, de modo que a realidade subjacente a cada círculo concorra para a formação e, por imperativo lógico, para a operacionalização da base de valores que lhe dá sustentação, é necessário identificar, à luz do nosso atual estágio civilizatório, o que deve ser disponibilizado ao “homem da rua” para que ele tenha sua dignidade reconhecida. Nesse particular, podemos identificar as prestações que são (1) essenciais à sua continuidade biológica, (2) essenciais a uma continuidade digna e (3) úteis ao seu bem estar. Com os olhos voltados a essa tripartição, compreendemos a importância dos inúmeros direitos sociais, de caráter prestacional, consagrados na nossa ordem constitucional, e o modo de contornar a renitência dos poderes constituídos na sua implementação.
As prestações essenciais à continuidade biológica são aquelas que se mostram instrumentalmente conectadas à preservação do bem mais valioso de qualquer ser humano: a vida. A Constituição brasileira de 1988, ao reconhecer a inviolabilidade do “direito à vida”, o fez no caput do seu art. 5º, preceito que congrega os clássicos direitos de liberdade, assegurando a existência de uma esfera jurídica individual imune a intervenções exógenas, promovidas pelo Estado ou por outros particulares. Impedir que a vida seja afrontada não guarda correlação direta com a previsão de prestações materiais que assegurem a sua continuidade. Daí a importância dos direitos sociais, os quais, de acordo com o rol do art. 6º da Constituição de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 64/2010, são “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, oferecidos na forma da Constituição. Sob a ótica da continuidade da vida, o mais desses direitos certamente é a alimentação.
Embora seja exato afirmar que a alimentação está diretamente conectada à preservação da vida, tratando-se de prestação essencial à continuidade biológica, observa-se que o art. 6º da Constituição de 1988 fez menção expressa à “assistência aos desamparados”. O “homem da rua”, à evidência, é um desamparado. Já o art. 203, após enunciar que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar”, deixa evidente, em seus incisos, que o objetivo é proteger pessoas que, por deficiências de natureza biológica, mostrem-se inaptas a obter, sozinhas, a sua inserção no ambiente comunitário e, de modo correlato, a própria subsistência. É o que ocorre com os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes carentes. Apesar disso, também estabelece o objetivo de promover a integração ao mercado de trabalho e de proteger a família, o que, à evidência, também tangencia o interesse do “homem da rua”.
As prestações essenciais a uma continuidade digna são aquelas que qualificam a vida do ser humano, permitindo-lhe estar humano. Aquele que vive no espaço público, ainda que receba uma cota diária de alimentos e consiga dar continuidade à sua existência, decididamente não ostenta uma situação compatível com o atual nível civilizatório da sociedade brasileira. Afinal, é factível que o “homem da rua” está completamente alijado do convívio social, isso em razão das condições sub-humanas a que o conduzem a ausência de abrigo e das facilidades correlatas (v.g.: privacidade, água encanada, vestuário adequado etc.). Considerando que os serviços públicos genericamente oferecidos a toda a população também estão, ao menos no plano teórico, ao alcance desses indivíduos (v.g.: saúde e educação), não há, aqui, especificidades dignas de nota em relação ao que é rotineiramente escrito sobre essa temática. A habitação, em verdade, é o direito cuja ausência é mais perceptível e sentida.
A respeito da essencialidade de certas prestações para a continuidade da existência e para uma vida digna, merecem menção as construções teóricas atreladas ao denominado mínimo existencial[52] (ou mínimo social – social minimum[53]). O mínimo existencial é a parte operativa da dignidade humana, indicando as liberdades fundamentais que a integram, de modo a delinear uma esfera jurídica imune a intervenções exógenas, públicas ou particulares, e as prestações positivas que as estruturas estatais de poder não podem negar ao indivíduo, isso sob pena de lhe ser negada a própria essência humana. Esse mínimo não congrega apenas as prestações necessárias à sobrevivência. Exige um plus: que essas prestações assegurem o pleno desenvolvimento da personalidade individual e que ofereçam os meios necessários a uma existência digna e saudável.[54]
Essa aproximação entre dignidade (Würde) e mínimo existencial (Existenzminimum) tem sido historicamente encampada em solo alemão. Com os olhos voltados a uma Lei Fundamental que praticamente passara ao largo dos direitos sociais,[55] os Tribunais alemães, principando pelo Tribunal Administrativo Federal (Bundesverwaltungsgericht),[56] com ulterior desenvolvimento do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht),[57] passaram a visualizar a exigibilidade de direitos prestacionais que encontravam sua base de sustentação na união (Verbindung) entre a cláusula da dignidade humana (Menschenwürden - GG, art. 1º, nº 1) e o princípio do Estado Social de Direito (Sozialstaat - GG, art. 20, nº 1).[58] Com isso, a dignidade humana, além de orientar a produção normativa, atuando como mandado constitucional endereçado ao legislador; direcionar a interpretação e a integração da ordem constitucional, assumindo contornos de princípio diretor, também poderia dar origem a verdadeiros direitos subjetivos, permitindo que a pessoa humana exija do Estado as prestações mínimas e imprescindíveis a uma existência digna.[59]
Na temática dos direitos sociais, a Constituição brasileira de 1988 apresenta uma estrutura sensivelmente distinta da Lei Fundamental alemã de 1949: enquanto esta última deles praticamente não trata, aquela os prevê em profusão. Apesar de o paradigma brasileiro estabelecer um balizamento mais detalhado, ambos assemelham-se na dependência de integração pela legislação infraconstitucional, que delineará as prestações a serem oferecidas pelo Estado, os requisitos que condicionarão a sua percepção pelos interessados e a respectiva fonte de custeio. Outra semelhança reside na funcionalidade atribuída à dignidade humana: se os Tribunais alemães extraíram o direito ao mínimo existencial diretamente de sua essência, o Supremo Tribunal brasileiro a utilizou para conferir eficácia plena aos preceitos constitucionais que versavam sobre os direitos fundamentais, suprindo a omissão do legislador infraconstitucional.[60]
O Tribunal Constitucional português também associou a dignidade humana ao mínimo existencial, o que permitiu a integração de eficácia do art. 63, nº 1 e 3, da Constituição de 1976, que versa sobre o direito à segurança social, limitando a própria liberdade de conformação do legislador constitucional. O Tribunal tem conferido especial realce à existência, ao lado dos direitos positivos, de natureza prestacional, de direitos negativos, o que obstaria qualquer ação estatal que pudesse afrontar a garantia do mínimo existencial. Assim entendeu, por exemplo, ao declarar a injuridicidade da limitação dos beneficiários do “rendimento social de inserção”[61] e da possibilidade de ser penhorada uma parte das prestações periódicas pagas, qualquer que seja o valor, a título de aposentação.[62]
Como requisito necessário à preservação da essência da pessoa humana, o mínimo existencial há de ser indistintamente assegurado àqueles que estejam no interior do respectivo círculo axiológico, o que lhe atribui contornos igualitários. Deve ser estendido a todos, com abstração das especificidades de ordem pessoal e do mérito de cada indivíduo.
Por fim, tem-se as prestações úteis ao “homem da rua”, aumentando o seu bem-estar. Sob essa epígrafe estarão normalmente incluídas prestações ontologicamente idênticas às anteriores, mas que apresentam distinções de ordem qualitativa (v.g.: alimentação de melhor qualidade, habitação mais suntuosa, tratamento médico realizado por especialistas renomados etc.). Nesse caso, é sentido, em toda a sua intensidade, o alicerce ideológico que confere sustentação aos regimes econômicos de livre iniciativa, em que se privilegia o mérito individual em detrimento da igualdade plena entre todos os integrantes do organismo social.[63]
Se os contornos nucleares da dignidade humana não prescindem das prestações essenciais à continuidade biológica e a uma vida digna, é preciso analisar a possibilidade de os poderes constituídos serem compelidos a oferecê-las, bem como os legitimados a pleitear tais providências e os óbices tradicionalmente opostos às pretensões formuladas.
4. A exegibilidade dos direitos prestacionais
O reconhecimento de que a preservação da dignidade humana não prescinde da concorrência do ser e do estar humano evidencia, ao menos em relação ao “homem da rua”, a premência de dois direitos sociais verdadeiramente basilares, que são a alimentação e a habitação: o primeiro é essencial à continuidade da vida, o segundo, à vida digna. O primeiro problema a ser enfrentado diz respeito ao conteúdo dessas prestações e ao modo de disponibilizá-las às pessoas que vivam ao relento, perambulando pelo espaço público. Por certo, o ideal seria fornecer a cada pessoa uma habitação individual e um quantitativo de alimentos que se mostrasse suficiente ao seu sustento e, se fosse o caso, ao de sua família, pois a penúria, como é sabido por todos, costuma ser uma das causas de dissolução do núcleo familiar.
Se o objetivo é nobre e não se pode censurar quem busca materializá-lo na realidade, a verdade é que o Estado brasileiro apresenta incontáveis carências nos serviços públicos que oferece à população. O déficit habitacional é apenas uma delas, sendo elevado o quantitativo de pessoas, distribuído por incontáveis comunidades carentes, que se aglomera em moradias de inegável precariedade. Acresça-se que a atuação do Estado deve ser sempre subsidiária, devendo estimular que o próprio indivíduo desenvolva suas aptidões pessoais, de modo a obter a sua integração ao mercado de trabalho. Esse, como dissemos, é um dos objetivos da assistência social.
A “situação de rua” deve ser vista como um estágio de profunda humilhação e desrespeito à condição humana, devendo ser imediatamente contornada pelo Poder Público. Essa atuação, por sua vez, deve ser sempre transitória, subsistindo enquanto o indivíduo não consiga se reestruturar e reingressar em um padrão de normalidade. A transitoriedade há de influenciar o modo de oferecimento das prestações a que temos nos referido. Ainda merece referência que a execução desse munus deve ser antecedida por um levantamento, realizado pelas estruturas estatais de poder, a respeito do quantitativo de pessoas em “situação de rua”; das regiões, urbanas ou rurais, em que se encontram; e das causas que conduziram a esse estado de coisas. O levantamento inicial, como é intuitivo, deve ser constantemente atualizado.
A partir do momento em que o levantamento é realizado, a solução que se mostra mais compatível com a realidade brasileira parece ser a construção de centros de apoio, com habitações coletivas, divididas por sexo, e estruturas individuais para o atendimento das famílias que se encontrem em “situação de rua”, de modo a preservar o agregado familiar. Nesses centros, as pessoas, além de abrigo e alimentação, receberão atendimento especializado, por equipe multidisciplinar, que terá a função de realizar (1) a reconstrução da sua auto-estima, (2) a aproximação com a família, isso nas situações de abandono de lar e (3) a inserção no mercado de trabalho, se necessário com a qualificação profissional.
À solução ora alvitrada certamente será combatida com o (tradicional) argumento de que, à míngua de lei detalhando a natureza das prestações a serem oferecidas, não seria possível exigi-las dos poderes constituídos. Esse argumento, além de inusitado, desafia o velho brocardo de que “a ninguém é dado beneficiar-se com a própria torpeza”. Não é demais lembrar que, a teor dos incisos I, IX e X do art. 23 da Constituição, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios zelar pela guarda da Constituição, promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais, bem como combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
Ainda que a Lei nº 8.742/1993, diploma que dispõe sobre a organização da assistência social, não defina, detalhadamente, as prestações a serem oferecidas, ela reconhece que (1) a “política de assistência social” deve prover o “mínimo social” (art. 1º); (2) a assistência social tem por objetivo a proteção social, que visa à “garantia da vida” (art. 2º, I); (3) o enfrentamento da pobreza deve ser norteado pela “universalização dos direitos sociais” (arts. 2º, parágrafo único e 4º, II); (4) o Serviço único de Assistência Social (SUAS) tem por objetivo “afiançar a vigilância socioassistencial e a garantia de direitos” (art. 6º, VII); (5) a proteção social especial tem por objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos (art. 6º-A, II), o que deve ser feito por intermédio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social –Creas- (art. 6º-C, § 2º); (6) os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão conceder benefícios eventuais aos aos cidadãos e às famílias em virtude de situações de vulnerabilidade temporária (art. 22, caput e § 1º); (7) devem ser oferecidos serviços socioassistenciais, tal qual definidos em regulamento, considerados como tais as atividades continuadas que visem à melhoria de vida da população e cujas ações, voltadas para as necessidades básicas, observem os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidos da Lei nº 8.742/1993 (art. 23, caput, e § 1º), que devem incluir os “programas de amparo” às “pessoas que vivam em situação de rua” (art. 23, § 2º, II); (8) os projetos de enfrentamento da pobreza devem subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que garantam, aos grupos populares, meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência e elevação do padrão da qualidade de vida (art. 25, caput); e (9) a atuação da União se dará em caráter supletivo (art. 34).
Portanto, todos os entes federados têm a responsabilidade de restabelecer a dignidade das “pessoas em situação de rua”. Em primeiro lugar, cumpre observar que o oferecimento de alimentação e abrigo consubstancia o mínimo dos mínimos. Em outras palavras, permite, apenas, que o indivíduo continue a viver e apresente as características que delineiam o estilo de vida da espécie humana no círculo em que inserido. Assim, a exemplo do que foi feito aqui e alhures, nesse caso, a exigibilidade dos direitos sociais referidos no art. 6º da Constituição de 1988 decorre da integração do seu conteúdo pela necessidade de preservação da dignidade humana. Em segundo lugar, deve-se observar que a presença de uma equipe multidisciplinar decorre justamente da exigência de que a assistência social tenha caráter transitório, de modo a não perpetuar a situação de carência da pessoa necessitada. Sem a equipe multidisciplinar, os centros de apoio se transformariam em verdadeiros depósitos de indigentes, afastando qualquer esperança de reinserção social.
É com os olhos voltados a essa responsabilidade assistencial que deve ser interpretado o Decreto nº 7.053/2009, que instituiu a “Política Nacional para a População em situação de Rua”. Apesar de o seu art. 2º ter previsto que essa política seria implementada, de forma descentralizada e articulada entre a União e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de instrumento próprio, é possível afirmar que não há qualquer espaço de decisão quanto à integração do respectivo ente federado a essa política ou à implementação, ou não, das medidas que delineiam a sua estrutura básica. Afinal, não se pode transigir com a proteção à dignidade humana.
De acordo com o Decreto nº 7.052/2009, têm-se, como princípios da referida política, o respeito à dignidade da pessoa humana e o direito à convivência familiar e comunitária (art. 5º, I e II); como diretriz, a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais (art. 6º, I); e, como objetivos, assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda, bem como proporcionar o acesso das pessoas em situação de rua aos benefícios previdenciários e assistenciais e aos programas de transferência de renda, na forma da legislação específica, além de implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente à alimentação pela população em situação de rua à alimentação, com qualidade (art. 7º I, IX e XIII). A rede de acolhimento temporário, consoante o art. 8º, deverá observar limite de capacidade, regras de funcionamento e convivência, acessibilidade, salubridade e distribuição geográfica das unidades de acolhimento nas áreas urbanas, respeitado o direito de permanência da população em situação de rua, preferencialmente nas cidades ou nos centros urbanos.
Além de definir as prestações a serem oferecidas às pessoas carentes, também caberia à lei, mais especificamente à lei orçamentária, autorizar a realização da despesa pública e indicar as receitas a serem utilizadas para custeá-la. Essa, aliás, é a sistemática constitucional, bem explicitada no art. 167 da Constituição de 1988 e na Lei nº 4.320/1964. Além dessa impossibilidade de ordem jurídica, consistente na vedação ao “início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual”, há outra, de ordem fática, que se reflete na própria inexistência de recursos que possam financiar esse tipo de prestações. Ambas podem ser enquadradas sob a epígrafe mais ampla da “reserva do possível”, argumento tradicionalmente suscitado pelos poderes constituídos para se esquivar de suas obrigações.
Em relação à reserva do possível de ordem jurídica, observa-se a mesma deturpação presente no argumento de que somente a lei poderia definir as prestações a serem oferecidas ao “homem da rua”. Do mesmo modo que a cláusula constitucional de proteção à dignidade humana autoriza a integração do conteúdo do direito à alimentação e à habitação, também ela deve direcionar a interpretação da lei orçamentária, de natureza infraconstitucional. Assim, caso o Chefe do Poder Executivo e o Poder Legislativo, o primeiro ao apresentar o projeto de lei orçamentária, o segundo ao votá-lo, “por um lapso”, “esqueçam” de direcionar dotações orçamentárias para fazer face à realização de projetos envolvendo as “pessoas em situação de rua”, a solução será ajustar a lei à Constituição e não o contrário. Assim, caberá ao Poder Executivo, na gestão do orçamento, determinar o remanejamento das dotações orçamentárias necessárias à realização dos programas assistenciais aqui referidos.
Situação mais delicada diz respeito à reserva do possível de ordem fática, em que, verdadeiramente, não há disponibilidade de caixa para realizar os programas almejados. Em situações dessa natureza, não há como se compelir o Poder Público a realizar despesas que não pode custear. Apesar dessa conclusão ser verdadeira e de os atos dos agentes público estarem amparados pela presunção de veracidade – ao menos os manuais nos ensinam isso -, é imperativo que essa situação seja devidamente provada no curso da relação processual. Afinal, como dispõe o art. 333, II, do Código de Processo Civil, o ônus da prova compete ao demandado “quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.
Para se chegar à conclusão de que inexistem recursos disponíveis, é preciso verificar, em caráter preliminar, como serão gastos aqueles existentes. Afinal, recursos, ainda que em pequena quantidade, sempre existirão. Isso significa dizer que, se os recursos são limitados e o administrador deve decidir quais projetos serão realizados e quais serão adiados, é preciso estabelecer uma ordem de precedência entre eles. Conquanto se reconheça que essa ordem de precedência será ordinariamente definida a partir dos juízos valorativos realizados pelo administrador, não se pode negar o escalonamento hierárquico que emerge do próprio texto constitucional. É o caso, por exemplo, da prioridade absoluta que o art. 227, caput, da Constituição atribui aos direitos das crianças e dos adolescentes. O mesmo pode ser dito em relação às prestações essenciais à continuidade biológica do ser humano e a uma continuidade digna. Despesas dessa natureza ostentam evidente precedência em relação a outras que não se mostram essenciais à estrutura administrativa, como é o caso da propaganda institucional. Se escolhas trágicas precisam ser realizadas e efetivamente o serão, não pode o administrador ignorar os comandos constitucionais.[64]
Para sustentar a liberdade de escolha do administrador, máxime quando possui legitimidade democrática, costuma-se argumentar que a definição dos programas sociais a serem implementados, quando não decorrente de imposição legal, se insere no âmbito da discricionariedade administrativa. A existência do poder discricionário decorre da impossibilidade de a lei dispor, a priori, sobre a solução que melhor aproveite ao interesse público, sendo preferível a concessão de uma liberdade mais ampla às autoridades responsáveis pela execução do ato. Com isso, permite-se a valoração das circunstâncias subjacentes ao caso concreto, possibilitando a identificação da medida mais adequada. Essa atividade valorativa culminará com a escolha, dentre dois ou mais comportamentos possíveis, daquele que se mostre mais consentâneo com o caso concreto e a satisfação do interesse público.[65] Para que esse objetivo seja alcançado, deverá o administrador, na lição de Gianini,[66] proceder à “ponderação comparativa dos vários interesses secundários (públicos, coletivos ou privados), em vista a um interesse primário”. De acordo com Sandulli,[67] “a discricionariedade importa sempre uma valoração, uma ponderação de interesses e um poder de escolha”.
É inegável, portanto, que o administrador público deve ter assegurada uma esfera de liberdade no âmbito de sua atuação funcional. No entanto, à margem da lei não há verdadeira liberdade, mas, sim, arbitrariedade. Ao reconhecermos que a dignidade humana atribui imediata exegibilidade aos direitos prestacionais, ainda que o legislador não defina o teor das prestações ou indique a fonte de custeio, é factível que só há verdadeira liberdade quando o administrador, por absoluta carência de recursos, precisar escolher entre eles ou outros programas dotados de igual ou superior hierarquia axiológica. Fora dessa situação, não há propriamente uma opção, mas verdadeira imposição.
Se o administrador deixar de cumprir uma imposição de ordem constitucional ou legal, não há qualquer óbice à atuação do Poder Judiciário com o objetivo de recompor a juridicidade. Em situações dessa natureza, embora o argumento seja mais que corriqueiro, não há que se falar em violação ao princípio da divisão das funções estatais. Note-se que a estrita conexão entre a divisão das funções estatais e a garantia dos direitos individuais remonta ao pensamento revolucionário francês, recebendo consagração expressa no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição.” O Poder Judiciário, ao atuar, longe de macular a divisão das funções estatais, lhe rende homenagem, contendo os excessos ou contornando as omissões do Poder Executivo. Afinal, por imposição constitucional, a lei sequer pode excluir da sua apreciação lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV).[68]
O Poder Judiciário, por força do princípio da inércia, somente pode atuar quando provocado. In casu, essa provocação, em primeiro lugar, pode ser realizada pelo próprio “homem da rua”. Essa hipótese, conquanto juridicamente possível, é faticamente improvável. Ao chegar aos limites de sua própria humanidade, por pouco deixando de estar humano, o indivíduo há muito abandonou a consciência de sua civilidade e consequente inserção em um Estado de Direito, onde é titular de direitos e obrigações. Vê-se entregue à própria sorte, marginalizado por um sistema que o abandonou e no qual não se sente inserido. À luz desse quadro, aumenta o munus institucional do Ministério Público, que pode realizar a defesa dos interesses do “homem da rua” tanto sob a ótica individual, o que decorre de sua situação de indigência e da indisponibilidade dos interesses envolvidos (rectius: vida e subsistência digna), como sob a ótica coletiva ou difusa, isso em razão da pluralidade de beneficiários de sua ação, individualizáveis ou não. É o que deflui do art. 127, caput e do art. 129, III, da Constituição da República. Acresça-se que a Lei nº 8.742/1993, em seu art. 31, dispõe que “[c]abe ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos direitos estabelecidos nesta lei”.