INTRODUÇÃO
Em 2014 foi realizado no Brasil um dos maiores eventos do mundo, a Copa do Mundo. Conforme bem sabemos, para realização de megaeventos demanda-se uma forte organização que alcança a seara econômica, política e normativa. Diante das exigências impostas pela FIFA, o Brasil teve que ceder em diversos setores. Deste modo, várias medidas foram tomadas, entre elas as que incluíam a suspensão da eficácia do Código de Defesa do Consumidor durante a realização dos jogos; impor à União a assunção da responsabilidade por danos que não forem causados por seus agentes; isenções fiscais à FIFA e a concessão de prêmio em dinheiro e pagamento de auxílio especial mensal a ex-jogadores. Estas medidas foram questionadas pela Procuradoria Geral da República que levou essa discussão ao STF na ADI 4976/DF.
O Supremo Tribunal Federal declarou a ação improcedente, assumindo uma postura distinta da que se espera do “Guardião da Constituição”. Para verificar se esta decisão adentra em questões eminentemente políticas, analisaremos o surgimento da doutrina das questões políticas e verificaremos se tais elementos estão presentes na decisão proferida pela corte suprema.
Conforme supracitado, as exigências impostas pela FIFA foram atendidas por meio da Lei Geral da Copa, que criou uma série de obrigações ao Brasil e benefícios para a entidade organizadora do evento, que, se descumpridos poderiam resultar em sanções impostas ao Brasil na esfera internacional. Esta relação se assemelha àquela entre dois Estados? A lei Geral da Copa assemelhar-se-ia com o decreto que internaliza um Tratado entre dois Estados?
Em linhas gerais, este trabalho descreve os contornos da doutrina das questões políticas no âmbito da decisão proferida Supremo Tribunal Federal. De forma específica, seu desenvolvimento trata de: a) analisar o surgimento da doutrina das questões políticas; b) relacioná-la com a decisão do STF no julgamento da ADI 4976/DF; c) verificar como se deu a relação entre a FIFA e o Estado Brasileiro.
Doutrina das questões políticas
O principal recurso efetivo de que dispõe o indivíduo para corrigir desvios e abusos do poder político é o Judiciário. No entanto, este nem sempre se dispõe a atender às demandas individuais dessa espécie. Uma justificativa possível para isso ocorre quando o caso apresenta natureza política, estando, assim, fora da alçada dos juízes. Aqui, então, ganha terreno a doutrina das questões políticas.
A origem e evolução da doutrina das questões políticas se deram na Suprema Corte dos Estados Unidos. Na decisão de Marshall (Marbury v. Madison), de 1803, ficou registrado que, se por um lado o Poder Judiciário está autorizado a reconhecer a nulidade de atos da legislatura, quando contrários à Constituição, por outro não lhe é lícito ingressar no campo da política. O juiz John Marshall foi, assim, o primeiro a formular a doutrina das questões políticas. Ao fazê-lo, definiu a existência no domínio dos poderes do governo e do Congresso de “uma região impenetrável à autoridade da Justiça: a região política” (RUI BARBOSA, 1933, p. 144). Esta doutrina difundiu-se por todo o mundo, afirmando que, em certos casos, o judiciário pode eximir-se de julgar invocando o envolvimento de questões políticas, isso com intuito de preservar o princípio da separação dos três poderes. Dado o surgimento e o entendimento do que se trata a doutrina das questões políticas podemos partir para a abordagem da decisão proferida pelo STF.
A Procuradoria Geral da República ao questionar as isenções fiscais aplicadas à FIFA alegou que a medida tem um interesse logístico na facilitação da organização da Copa do Mundo, deste modo, este não seria motivo constitucionalmente relevante para legitimar a isenção concedida. O relator por sua vez, rebateu esta questão afirmando:
Ora, parece-me fora de dúvida que a realização de grandes eventos internacionais esportivos – a exemplo dos sediados, no passado recente, em países desenvolvidos como Itália (1990), Estados Unidos (1994), França (1998), Japão e Coreia do Sul (2002) e Alemanha (2006) –, dotados de inegável potencial de gerar empregos e atrair investimentos, configura um interesse constitucionalmente relevante.
O relator, para justificar a decisão, recorreu a uma argumentação desprovida de qualquer estatística socioeconômica, justificando a isenção de impostos a favor da FIFA através dos investimentos atraídos e dos empregos gerados, isso sem qualquer amparo visível. Em suma, afirma que a isenção concedida à FIFA e suas subsidiárias quanto às custas e despesas judiciais não contrariam o princípio da igualdade presente na Constituição, que se manifesta no princípio da isonomia tributária. Para ele, a própria CF prevê a possibilidade de isenções fiscais, em seu § 2º, art. 150. O mais importante, então, seria o efeito político-econômico do evento, dotado “de inegável potencial de gerar empregos e atrair investimentos”, que configuraria “um interesse constitucionalmente relevante”.
Este embate em torno das isenções fiscais não foi decidido de forma unânime, o ministro Joaquim Barbosa, julgou parcialmente procedente a ação. Para o ex-presidente do Supremo, a concessão da isenção à FIFA viola tanto o principio da isonomia quanto o que exige motivação idônea para qualquer tipo de exoneração fiscal. Segundo ele, a isenção oferecida a esta entidade é apenas "ponta do iceberg"[i], se comparada a outros benefícios que não estão em debate nesta ADI.
O ministro Barroso, por sua vez, argumentou que a Lei Geral da Copa teria sido “aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo chefe do Poder Executivo”[ii], não sendo cabível ao supremo intervir sobre os juízos de “conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos”. Deste modo, a decisão proferida pelo STF ganha cotornos políticos, sob risco desta corte ter acomodado uma lei irremediavelmente inconstitucional em detrimento de questões políticas.
Relação entre o Estado brasileiro e a FIFA
A FIFA foi criada em 1904 com propósito de organizar, regular e internacionalizar o futebol, sendo caracterizada pela legislação suíça como “associação sem fins lucrativos”. Esta entidade, com sede em Zurique na Suíça, está presente em 209 federações, possuindo alcance superior ao da ONU, que abarca 193 países. A caracterização como associação sem fins lucrativos torna-se controversa ao observar que a FIFA possui lucro superior ao PIB de alguns estados nacionais.
É através desse poderio político-econômico que a FIFA exerce sua influência na copa do mundo. A pressão da entidade para ter total controle sobre a organização e exploração comercial não enxerga qualquer limite legal ou cultural. O que deveria ser uma mera entidade organizadora de eventos esportivos, chega ao absurdo de pressionar nações soberanas no sentido de revogar temporariamente leis e estatutos nacionais, isso não com o objetivo de promover uma copa do mundo melhor, mas, de garantir seus privilégios e os interesses econômicos dos parceiros. O próprio secretário-geral, Jérôme Valcke, chegou a afirmar que, “é mais fácil organizar copas do mundo em países com menos democracia”[iii]. A Federação se tornou uma organização comercial, altamente rentável, que explora o futebol internacional como uma mina de ouro de sua propriedade. Comportando-se não mais como organizadora, mas como dona do espetáculo.
No Brasil, a FIFA impôs diversas condições, que muito embora tenham sido alvo de discussões, foram acatadas e seguidas pelo governo brasileiro. O mesmo não aconteceu no Mundial de 2006 na Alemanha, por exemplo, onde a FIFA deparou-se com a resistência dos anfitriões, o chefe da organização, Franz Beckenbauer, afirmou que não houve uma Lei Geral da Copa na Alemanha[iv]. Embora a FIFA inicialmente tenha cobrado do país, o governo alemão entendeu que não havia a necessidade de criar novas leis e que a legislação existente já cobria os compromissos assumidos. Em situação semelhante, a Noruega desistiu de sediar as olimpíadas de 2022[v] no momento que o COI impôs uma carta de exigências que não coadunavam com as leis daquele país. O caso da carta de exigências emitida pelo COI é idêntico ao da lei geral da copa requerida pela FIFA, entretanto, com desfechos completamente diferentes.
A FIFA possui elementos que merecem ser observados, como agenda diplomática própria, estrutura constitucional, uma vez que tem um instrumento de governo: os estatutos; há divisão de poderes: órgão legislativo (Congresso reunindo representantes de cada associação afiliada); órgão executivo (Comitê Executivo) e órgão administrativo (Secretaria Geral), o Congresso elege o Presidente da FIFA e a Secretaria Geral, e, conforme supracitado, é altamente rentável. A FIFA, então, mimetizaria um Estado? Sendo a Lei Geral da Copa fruto da vontade desse “Estado”, esta poderia se assemelhar a um decreto que internaliza acordo internacional entre países. Deste modo, o STF teria competência para julgá-la? O Supremo afirma que possui competência para julgar decretos que instituam tratados internacionais, muito embora não haja precedentes para fundamentar tal afirmação.
CONCLUSÃO
Diante do acossado interesse internacional, o posicionamento do STF a favor da inconstitucionalidade da Lei Geral da Copa poderia se configurar como uma “intromissão” do Judiciário nos atos dos demais poderes. Sendo assim, optou por eximir-se de controlar a constitucionalidade do regime jurídico da copa à luz dos princípios constitucionais da igualdade jurídica, e das regras constitucionais que dificilmente autorizariam as diversas exceções criadas em favor da FIFA. Os argumentos para isso são reduzidos à consideração da força inquestionável dos imperativos econômicos e dos imperativos políticos que não necessariamente se coadunam com as estruturas jurídicas que possibilitam qualquer democracia.
NOTAS
[i] Lei geral da Copa é constitucional, decide STF. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI200403,81042Lei+geral+da+Copa+e+constitucional+decide+STF> Acesso em: 23 out. 2014.
[ii] STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo= 266270> Acesso em: 29 out. 20014.
[iii] Excesso de democracia afeta organização da Copa, diz Valcke. Disponível em: <http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/04/24/excesso-de-democracia-no-brasil-afeta-organizacao-da-copa-diz-valcke.htm> Acesso em: 23 out. 2014.
[iv] Anfitriões de Copas passadas relembram atritos com Fifa. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/03/120315_copa_fifa_jc_jp.shtml> Acesso em: 27 out. 2014
[v] Noruega desiste de sediar Olimpíada após COI exigir álcool, rei e sorrisos. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/esportes-de-inverno/ultimas-noticias/2014/10/06/oslo-recusa-olimpiada-apos-exigencias-bizarras-alcool-realeza-e-sorrisos.htm> Acesso em: 25 out. 2014
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Anfitriões de Copas passadas relembram atritos com Fifa. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/03/120315_copa_fifa_jc_jp.shtml> Acesso em: 27 out. 2014
BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. Coligidos e ordenados por Homero Pires. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1933.
ELAERES, José. A doutrina das questões políticas no Supremo Tribunal Federal – STF. Florianópolis, SC. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, 2004, 244 p.
Excesso de democracia afeta organização da Copa, diz Valcke. Disponível em: <http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/04/24/excesso-de-democracia-no-brasil-afeta-organizacao-da-copa-diz-valcke.htm> Acesso em: 23 out. 2014.
Lei geral da Copa é constitucional, decide STF. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI200403,81042Lei+geral+da+Copa+e+constitucional+decide+STF> Acesso em: 23 out. 2014.
MARSHALL. John. Decisões Constitucionais de Marshall. Traduzido por Américo Lobo. Brasília: Ministério da Justiça, 1997.
Noruega desiste de sediar Olimpíada após COI exigir álcool, rei e sorrisos. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/esportes-de-inverno/ultimas-noticias/2014/10/06/oslo-recusa-olimpiada-apos-exigencias-bizarras-alcool-realeza-e-sorrisos.htm> Acesso em: 25 out. 2014
STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo= 266270> Acesso em: 29 out. 20014.