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Direitos fundamentais sociais: o papel do Judiciário

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27/04/2016 às 08:38
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3.  A ESCASSEZ DE RECURSOS PÚBLICOS E A CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL

3.1      Cláusula da Reserva do Possível e os Princípios Orçamentários:

A Cláusula da Reserva do Possível é sustentada, com frequência, pela Fazenda Pública, para argumentar a necessidade de impor limites à efetivação dos direitos sociais.

A referida cláusula apresenta um aspecto fático e outro jurídico. O aspecto fático da reserva do possível corresponde à limitação quanto à efetiva existência de recursos públicos para fazer frente aos custos dos direitos, tanto os positivos ou prestacionais, como os negativos ou defensivos. O aspecto jurídico diz respeito à necessidade de previsão orçamentária para o Estado realizar despesas.

Ingo Wolfgang Sarlet[27] sustenta que a reserva do possível apresenta dimensão tríplice.

A reserva do possível estabelece limites fático e jurídico à concretização dos direitos sociais. Contudo, poderá ser utilizada como garantia dos direitos fundamentais, em hipótese de conflito de interesses, em que, em virtude da escassez de recursos, verificados critérios de proporcionalidade e razoabilidade, elege-se determinado núcleo essencial de um direito fundamental para proteção em detrimento de outro[28].

Diante da escassez de recursos públicos, impõe-se a fundamentação e fixação de critérios objetivos para escolha de determinadas políticas públicas e não de outras.

Como explicitado no Capítulo 3, os principais personagens para estabelecimento de critérios e formalização de escolhas, no que concerne a políticas públicas, são os Poderes Executivo e Legislativo, além da saudável atuação da sociedade civil em um Estado Democrático de Direito.

O princípio da legalidade da despesa impõe a previsão orçamentária para realização de despesas, bem como a previsão das receitas correspondentes.

Nesse sentido, compete, prioritariamente, ao Legislativo dispor, por meio da lei orçamentária, quanto aos recursos a serem despendidos para implementação de alguns direitos sociais.

Sem embargo, a ampla liberdade e discricionariedade do legislador são limitadas pelas disposições contidas na Constituição da República.

Nessa linha, caberá ao Judiciário exercer o controle das escolhas realizadas pelos outros poderes. Esse controle deve se dar no caso concreto, com fulcro na ponderação de interesses[29]. Deve ser utilizado o princípio da proporcionalidade, verificando-se o núcleo essencial do direito fundamental que se pretende proteger e o grau de restrição a que se sujeitará o outro direito, desde que não seja atingido seu núcleo essencial[30].

Na hipótese de colisão entre direitos fundamentais, utiliza-se a técnica de ponderação[31], no caso concreto, com base no princípio da razoabilidade-proporcionalidade. Destarte, o aplicador do direito deve realizar, segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, “concessões recíprocas” entre os valores em conflito, preservando-se o máximo de cada um.

Ademais, impõe-se a preservação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, sob pena de criação de restrições inconstitucionais[32].

Nessa linha, manifestou-se o Ministro Celso de Mello[33] do Supremo Tribunal Federal:

“Entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, ‘hic e nunc’, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a ponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina.” (grifos nossos)

Busca-se, desse modo, garantir o mínimo existencial, ou seja, as condições mínimas para a vida do ser humano, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Daniel Sarmento[34] apresenta observações importantes quanto à cláusula da reserva do possível, a previsão orçamentária e o controle judicial:

“Penso, em síntese, que a ausência de previsão orçamentária é um elemento que deve comparecer na ponderação de interesses que envolve a adjudicação dos direitos fundamentais sociais previstos de forma principiológica. Trata-se de um fator relevante, mas que está longe de ser definitivo, podendo ser eventualmente superado de acordo com as peculiaridades do caso.”

Além disso, o referido jurista sustenta, com razão, que, na hipótese de utilização da reserva do possível, pela Fazenda Pública, como matéria de defesa, em processo judicial, o ônus probatório quanto à inexistência de recursos públicos deveria recair sobre o ente público, porquanto somente este teria a possibilidade fática de provar o alegado[35].

Ademais, o Ministro Celso de Mello, no julgamento, mencionado anteriormente, da ADPF nº 45/DF[36], foi enfático:

“Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, deste modo, que a cláusula da reserva do possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido essencial de fundamentalidade.” (grifos nossos)

3.2     Mínimo Existencial e Direito à Segurança Social:

O mínimo existencial consiste nas condições mínimas de existência humana, com dignidade, como, por exemplo, o direito à saúde, à alimentação, à moradia, à educação.

Destarte, as condições mínimas de sobrevivência do homem não podem ser objeto de intervenção por parte do Estado, exigindo-se, ainda, prestações estatais positivas.

Nesse sentido, ausentes as condições mínimas de vida digna, nas palavras de Ricardo Lobo Torres, “cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade.”[37]

Ricardo Lobo Torres[38] preleciona sobre o mínimo existencial, sustentando que “a retórica do mínimo existencial não minimiza os direitos sociais, senão que os fortalece extraordinariamente na sua dimensão essencial”.

O constitucionalista Ministro Luís Roberto Barroso[39] conceitua o mínimo existencial como “as condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate político.”

Desse modo, o Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADPF nº 45/DF[40], defendeu a tutela jurisdicional das políticas públicas na hipótese em que os Poderes Legislativo e Executivo atuarem visando ao estabelecimento da ineficácia dos direitos sociais[41]:

“como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo.” (grifos nossos)

O mínimo existencial apresenta fundamentos instrumentais, como a proteção da liberdade material e da democracia, consubstanciada na participação efetiva dos cidadãos no espaço público. Todavia, o argumento não-instrumental é o principal, na medida em que se considera um fim em si mesmo a garantia das condições mínimas de existência para a vida digna.

Daniel Sarmento[42] faz algumas considerações quanto à cláusula da reserva do possível face ao mínimo existencial:

“Sem embargo, discordo daqueles que afirmam que o direito ao mínimo existencial é absoluto, não se sujeitando à reserva do possível. (...)

Em suma, não me parece que o mínimo existencial possa ser assegurado judicialmente de forma incondicional, independentemente de considerações acerca do custo de universalização das prestações demandadas. (...)

Em outras palavras, a inserção de determinada prestação no âmbito do mínimo existencial tende a desequilibrar a ponderação de interesses para favorecer a concessão do direito vindicado. Mas não existe um direito definitivo à garantia do mínimo existencial, imune a ponderações e à reserva do possível.”(grifos nossos)

O direito ao mínimo existencial está intimamente ligado à ideia de segurança social, porquanto aquele garante as condições mínimas para uma vida digna em sociedade. Há quem faça referência, inclusive, a um Estado de Segurança, fundado no princípio da solidariedade.[43]

A justiça social é traduzida por necessária distribuição de rendas, com fulcro nos princípios da igualdade e solidariedade para formação de uma sociedade equilibrada, impondo-se a intervenção estatal, com efetivação das normas constitucionais.

Ingo Wolfgang Sarlet[44] manifestou-se acerca da segurança social:

“Da mesma forma, inquestionável a conexão direta entre a segurança jurídica (nas suas diversas manifestações) e as demais dimensões referidas, notadamente da segurança social e pessoal, tal qual sumariamente delineadas, já que a segurança social – aqui destacada pela sua relevância para o presente ensaio – também envolve necessariamente um certo grau de proteção dos direitos sociais (acima de tudo no âmbito dos benefícios de cunho existencial) contra ingerências dos órgãos estatais, assim como contra violações provindas de outros particulares.” (grifos nossos)

3.3     O princípio da Vedação do Retrocesso:

O princípio da vedação do retrocesso tem sua aplicação mais significativa nas chamadas “cláusulas pétreas”, em consonância com o disposto no art. 60, parágrafo 4º, IV da Constituição da República.

Desse modo, o dispositivo precitado dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) os direitos e garantias individuais.”.

A doutrina[45] interpreta o referido artigo como proteção ao núcleo essencial de todos os direitos fundamentais, incluídos, naturalmente, os direitos sociais.

Destarte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais é garantido até mesmo contra eventual reforma constitucional.

Além disso, o princípio da vedação do retrocesso envolve considerações a respeito dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Dessa forma, os atos do Poder Público deveriam se sujeitar a patamares mínimos de continuidade da ordem jurídica, bem como deveriam preencher requisitos de confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência para garantir a segurança jurídica do cidadão, com manutenção de suas próprias posições jurídicas[46].

A vedação do retrocesso abrange não só a reforma constitucional, como referido anteriormente, mas a alteração legislativa, com retroação e exclusão de determinados direitos, bem como a atuação administrativa do Estado, com extinção de certos programas e consequente ineficácia de direitos sociais garantidos em momento prévio.

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Há vinculação do legislador ao núcleo essencial efetivado no âmbito dos direitos sociais, haja vista que o contrário equivaleria à violação dos mandamentos constitucionais que dispõem sobre os direitos fundamentais sociais.

Ingo Wolfgang Sarlet[47] reforça a adoção do princípio da vedação do retrocesso pela doutrina brasileira:

“No plano doutrinário, valemo-nos da lição de Luís Roberto Barroso, que, de certo modo, representa o entendimento que (a despeito de algumas posições reticentes) tem – cada vez mais – dominado o nosso cenário jurídico. Para o notável constitucionalista carioca, “por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido”.” (grifos nossos)

A vedação do retrocesso tem como fundamentos[48]: o princípio do Estado Democrático de Direito, que pressupõe, por sua vez, a garantia dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança; o princípio da dignidade da pessoa humana, com efetivação das condições mínimas de vida digna; o princípio da máxima eficácia e efetividade das normas constitucionais, em especial, dos direitos fundamentais; a proteção constitucional contra retroatividade, prevista no art. 5º, XXXVI da CRFB, o qual dispõe que a “lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”; a proteção da confiança equivalente à exigência de boa-fé subjetiva e objetiva na relação com particulares; a vinculação dos órgãos estatais a atos administrativos anteriores; a efetividade das normas constitucionais; aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, como, por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[49], no sentido da progressiva implementação dos direitos sociais, em consonância com o art. 5º, parágrafo 2º da Constituição da República.

3.4     A Sociedade Civil Pouco Atuante ou Politizada e os Altos Graus de Miserabilidade da População:

O estágio de desenvolvimento em que se encontra nosso país revela graves desigualdades sociais, altos graus de miserabilidade e, por consequência, uma sociedade civil pouco atuante, porquanto a população não tem, na prática, a garantia das condições mínimas de existência de vida digna.

Desse modo, é afetada a própria liberdade de expressão do povo, bem como o conhecimento necessário quanto a seus direitos para a sua efetivação.

Esses fatores devem ser considerados quando da análise de alegação da reserva do possível para controle judicial dos direitos fundamentais sociais, como defende Daniel Sarmento[50]:

“Nesta lista de direitos a serem assegurados para a viabilização da democracia não devem figurar apenas os direitos individuais clássicos, como liberdade de expressão e direito de associação, mas também direitos às condições materiais básicas de vida, que possibilitem o efetivo exercício da cidadania. A ausência destas condições, bem como a presença de um nível intolerável de desigualdade social, comprometem a condição de agentes morais independentes dos cidadãos, e ainda prejudicam a possibilidade de que se vejam como parceiros livres e iguais na empreitada comum de construção da vontade política da sociedade. (...)

Contudo, me parece que o argumento é contraditório, já que a maior carência econômica, presente em países do Terceiro Mundo, torna ainda mais evidente a impossibilidade de realização ótima e concomitante de todos os direitos sociais. Por isso, o índice maior de pobreza não afasta a incidência da reserva do possível, mas antes acentua a sua importância.”(grifos nossos)

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Sobre a autora
Maria Laura Timponi Nahid

Procuradora Federal do Núcleo de Ações Prioritárias – NAP da Procuradoria Regional Federal da 2ª Região; Especialista em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAHID, Maria Laura Timponi. Direitos fundamentais sociais: o papel do Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4683, 27 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34653. Acesso em: 28 mar. 2024.

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