RESUMO: O artigo traz o julgamento da ADI 3.026/DF pelo Supremo Tribunal Federal analisado sob a teoria de Pierre Bourdieu a respeito da violência simbólica. Trata-se de estudo de caso no qual esteve em pauta a natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil. Pretende-se investigar a presença das categorias teóricas desenvolvidas pelo sociólogo francês no contexto do julgado, quais sejam, campo social, poder simbólico, capital simbólico e violência simbólica. A análise é realizada com base em pesquisa bibliográfica e, especialmente, análise documental, destacando o respectivo acórdão. Alcança-se, ao fim, a descoberta de que se efetiva o exercício de violência simbólica quando a corte suprema mascara a verdadeira razão de atribuir à OAB um inédito tipo de personalidade jurídica, apartado dos demais conselhos profissionais.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Ordem dos Advogados do Brasil. Autarquia. Pierre Bourdieu. Violência simbólica.
INTRODUÇÃO
Em 2006 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.026/DF, de relatoria do Ministro Eros Grau, na qual se discutiu, entre outras questões, a obrigatoriedade de a Ordem dos Advogados do Brasil contratar seus funcionários mediante prévio concurso público.
Tendo em conta que o regime de seleção por concurso só é exigível para cargos ou empregos públicos vinculados à Administração Direta ou Indireta, nos termos da Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal se viu compelido a analisar a natureza jurídica da OAB.
Convictos de que a OAB não compõe a estrutura da Administração Direta, restaria saber se, à semelhança dos demais conselhos profissionais, tratava-se de autarquia (descartando-se as demais pessoas que integram a administração indireta: fundação, empresa pública e sociedade de economia mista) ou se se cuidava de uma entidade à parte da organização estatal.
Com o trânsito em julgado certificado em 10.10.2006, a discussão sobre a natureza jurídica da OAB estaria esvaziada se o Supremo Tribunal Federal tivesse esclarecido definitivamente o estatuto jurídico que lhe é aplicável.
Como se demonstra adiante, não foi isso que se ocorreu.
A leitura do inteiro teor desse importante julgamento permite sugerir prováveis omissões sobre pontos relevantes que serviram de fundamento para a afirmação de que a Ordem é ímpar no elenco das personalidades jurídicas.
Diuturnamente tem-se percebido o agigantamento da atuação dessa entidade que, por força da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 133 da Constituição da República, tem se valido do status sui generis que lhe foi assegurado, em meio a muitos acertos e possíveis erros.
A manifestação judicial em destaque neste estudo revela o legítimo exercício de um “poder simbólico”, expressão utilizada na sociologia de Pierre Bourdieu para designar a autoridade de atribuir significado às coisas, de maneira que elas passem a ser reconhecidas como foram declaradas pelo detentor desse poder. Grosso modo, se o Supremo julga que X é Y, não importa o que tenha se passado, X passa a ser Y.
Pierre Bourdieu teceu diversas considerações sobre o direito e a ciência jurídica, buscando alertar seus estudiosos para a necessidade de olhar para além das suas estruturas internas, alertando-os para a circunstância de que o sistema de normas jurídicas, inclusive os atos de jurisprudência, é resultado de disputas de poder.
Quando exercem o poder simbólico, os atores que concorrem pelo direito de dizer o Direito, às vezes, ocultam as verdadeiras razões para terem formulado a visão de mundo que desejam consagrar.
O juiz que, no dever de fundamentar suas decisões, constrói um discurso que dissimula sua motivação real e, mesmo assim, logra a legitimação necessária para que seus enunciados sejam reconhecidos como jurídicos e, portanto, obedecidos, está a exercer o que Pierre Bourdieu denominou violência simbólica.
A proposta do presente estudo é compreender se o julgado paradigma é resultado do exercício de violência simbólica.
CATEGORIAS TEÓRICAS DE BOURDIEU EM A FORÇA DO DIREITO: CAMPO SOCIAL, PODER SIMBÓLICO, CAPITAL SIMBÓLICO E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
As reflexões do sociólogo Pierre Bourdieu para a ciência jurídica são marcadas pela permanente crítica a uma teoria (que se diz) pura do Direito.
O esforço dos juristas para elaborar um corpo de doutrinas e normas autorreferentes, que se fundamentam em si mesmas, decorre da compreensão equivocada da história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus institutos, de forma autônoma e fechada (BOURDIEU, 2007, p. 209).
Para ele não se justifica que o Direito seja pensado como produto de si mesmo, apartado dos demais eventos sociais, sequer para fins de estudo, pois a aparência de lógica e de neutralidade do Direito não se sustenta diante dos constantes constrangimentos sociais aos quais está submetido.
A filosofia, a sociologia, a psicologia, por exemplo, contribuem para o desenvolvimento da ciência jurídica, aproximando-a e atualizando-a em relação ao contexto no qual se insere.
Este artigo pretende desenvolver o que Pierre Bourdieu chama de “teoria científica”. Trata-se de utilizar um arcabouço teórico para compreender a lógica do funcionamento de determinado espaço social (campus). O método não se presta ao debate abstrato de ideias – como o faz a “teoria teórica” –, mas à aplicação prática. Está aberto à apreensão de novos objetos de estudo, mediante trabalho empírico (BOURDIEU, 2007, p. 59).
Em atenção à proposta do autor de usar os elementos de sua teoria para efetivamente compreender fenômenos, este trabalho não terá sido útil se se limitar a dar novos nomes a coisas conhecidas. Imbuído do espírito segundo o qual a sociologia é a ciência do oculto, que busca revelar o verdadeiro sentido das relações e estruturas sociais (PINHEIRO, 2012), nas linhas seguintes, intenta-se evidenciar o que ainda estaria encoberto se não fossem usadas as lentes dos conceitos articulados: a possível violência simbólica contida na manifestação do Supremo Tribunal Federal a respeito da natureza jurídica da OAB.
O caso é apresentado adiante. Antes, todavia, cumpre esclarecer algumas categorias teóricas trabalhadas por Bourdieu, tomadas aqui como suporte para explorar o papel dos atores envolvidos. São elas: campo, capital, poder simbólico e, naturalmente, violência simbólica.
1.1 CAMPO SOCIAL
Para Pierre Bourdieu, o campo é um espaço social constituído por uma ortodoxia que inclui valores, princípios e regras próprias.
O poder de ditar esses elementos advém de uma hierarquia pela qual disputam vários agentes. Tal disputa é travada dentro do campo ao qual pertencem e também fora, já que os participantes de um campo social concorrem com os de outros campos para imposição de sua ideologia e autoridade.
Para visualizar, imaginem-se as possíveis relações firmadas entre os campos econômico, cultural, político, jurídico e religioso, por exemplo, todos compostos por profissionais em atividades específicas. Eles não apenas travam relações de dominação entre seus pares, mas, acima de tudo, procuram incutir sua visão de mundo nos demais campos.
O campo jurídico, especificamente, “é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito”. Nele se defrontam agentes com competência para interpretar normas, de forma mais ou menos livre ou autorizada (BOURDIEU, 2007, p. 212).
Embora se tenha evocado desde a introdução a interdependência do campo jurídico com outros, Pierre Bourdieu atribuiu um sentido próprio ao termo autonomia, para qualificar os diversos campos. Não se trata de isolamento real dos influxos externos, mas o resultado da busca pelo fechamento em torno dos elementos (valores, princípios e regras) próprios de cada espaço social. Esse resultado acaba encerrando a ilusão de que a dinâmica do campo independe da dos demais (1992, p. 89).
Um campo é mais ou menos autônomo segundo sua capacidade de ocultar – sem eliminar – as influências que sofre de elementos heterodoxos (de outros campos). É o que ocorre no campo jurídico quando seus atores assimilam e traduzem os fenômenos sociais numa retórica própria.
Os atores do campo jurídico aprimoram continuamente uma racionalidade típica que os aparta dos não participantes desse campo. Mais que um traço de linguagem, esses atorem valem-se dessa suposta racionalidade e buscam, a um só tempo, convencer a si mesmos e convencer os demais sobre sua aparente isenção. Nesse contexto, as “intuições ingênuas da equidade” não alcançariam os “veredictos armados do direito”, fazendo com que o sistema das normas jurídicas pareça, aos olhos de todos, absolutamente independente das forças que sanciona e consagra (BOURDIEU, 2007, p. 212).
Todos os campos atuam, basicamente, à luz da mesma ideia de isolamento, superioridade e indispensabilidade. Entretanto, parece inútil declarar que o fundamento a priori de um sistema de normas (corpus) está na coerência ou na equidade de seus princípios, para obedecer à lógica e à ética.
Tanto pode ser visto em relação aos sindicatos, bem lembrados por Pierre Bourdieu, cujo regime jurídico lhes é mais favorável conforme conquistam poder e prestígio entre os trabalhadores e os órgãos estatais (2007, p. 213).
O corpus jurídico, ao consolidar as conquistas, converte-as em saber adquirido e reconhecido, contribuindo para sua eficácia simbólica (BOURDIEU, 2007, p. 213). Uma das manifestações dessa conversão está no uso de fórmulas que propõem a neutralidade do enunciador. Os textos jurídicos não costumam exprimir normas, mas atestações (p. 216): é livre a manifestação do pensamento; a vida privada da pessoa natural é inviolável; o resultado somente é imputável a quem lhe deu causa; fica criado o órgão tal. O mesmo pode ser constatado nas fundamentações das decisões judiciais, nunca tidas como produto da visão de mundo do juiz, mas declaradas como a verdadeira vontade da lei ou do legislador (p. 225).
O campo judicial está contido no campo jurídico e condensa toda sua ambiguidade. Sua eficácia é devida ao fato de comungar, ao mesmo tempo, da lógica do campo político (caracterizado pela oposição entre aliados e inimigos) e do campo científico (voltado para o contraste entre verdadeiro e falso) (BOURDIEU, 2007, p. 228-229).
Clèmerson Clève diz que o direito, “do mesmo modo que mantém a coesão do estado social, fragmenta-o, instaurando o reino dos sujeitos individualizados de direito e permitindo (ocultando ou facultando) a emergência da república das disciplinas”. Daí o duplo sentido que as relações de poder assumem perante o direito: “ao mesmo tempo em que o direito oculta o conflito e o desestimula, é atravessado por ele” (2001, p. 159).
1.2 PODER SIMBÓLICO
O poder simbólico é o poder de transformar o mundo por meio de palavras, de constituir o dado (uma realidade) pela enunciação. Essa transformação, entretanto, é assimilada como revelação do que já existia (BOURDIEU, 2007, p. 14-15).
É o que ocorre com um grupo social (classe, religião, nação), que passa a existir, efetivamente, quando isto é declarado, quando ele é distinguido dos demais. Esse tipo de realidade social depende de quem possa dizer que se trata disso e não daquilo (BOURDIEU, 2004, p. 167-168).
No exercício do poder simbólico, o Poder Judiciário resolve os conflitos surgidos entre pessoas e entre coisas declarando o que elas são. Esses atos de nomeação ou de instituição diferem do discurso do particular, que só a ele compromete e não possui qualquer eficácia simbólica. Já quanto à jurisdição, é impossível recusar ou ignorar a visão que ela impõe sobre dada realidade (BOURDIEU, 2007, p. 237).
A efetividade do poder simbólico exige que seus destinatários reconheçam o seu detentor como autoridade nas declarações que emite. Esse poder será mais forte quanto mais desconhecida for a arbitrariedade praticada. Em geral, esse resultado é alcançado quando o enunciador é convincente ao mostrar que age em prol do bem coletivo.
1.3 CAPITAL SIMBÓLICO
Há vários detentores de capital jurídico, cada um com seu interesse e visão de mundo. E é exatamente o antagonismo existente entre eles que viabiliza a sutil divisão do trabalho de dominação simbólica, na qual “os adversários, objetivamente cúmplices, se servem uns aos outros” (BOURDIEU, 2007, p. 219).
Entre os que concorrem pelo direito de dizer o Direito, percebe-se a complementaridade entre as duas faces da mesma moeda. De um lado atuam os teóricos que se esforçam em apresentar um sistema autossuficiente e livre de lacunas. Do outro estão os profissionais ocupados com as aplicações concretas, ajustadas à realidade.
A atuação isolada dos teóricos fecharia o direito numa rigidez racional. Mas sem eles, os operadores do direito estariam entregues às contradições, complexidade e indomabilidade da jurisprudência. Daí a importância de os práticos introduzirem mudanças essenciais à renovação do sistema e de os doutrinadores assimilarem formalmente o corpo de normas, conferindo-lhes alguma coerência e constância (BOURDIEU, 2007, p. 221).
A necessidade de o juiz, no exercício de um poder-dever, justificar a aplicação da norma ao caso concreto (art. 93, IX da Constituição; 458, II, do Código de Processo Civil; 381, III do Código de Processo Penal etc.) evidencia quão fantasiosa é a procura por uma metodologia jurídica perfeitamente racional. Descobrir a posição do juiz na distribuição do capital jurídico é, em última análise, atribuir à sua função um quê de arbitrariedade, de invenção (BOURDIEU, 2007, p. 222-223), elemento típico da atuação jurisdicional.
Os rituais, as indumentárias e as prerrogativas da Justiça e de seus agentes (advogados, membros do Ministério Público e outros) são também exemplos de capital jurídico, que têm sua eficácia condicionada ao reconhecimento dos destinatários dos significados atribuídos a esses símbolos de poder (BOURDIEU, 2007, p. 15).
1.4 VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
O detentor de poder simbólico que o exerce com arbitrariedade, sem assumi-la, pratica a violência simbólica.
A interpretação e a aplicação do direito ao caso concreto são atividades nas quais esse fenômeno pode ser detectado. Para isso, é preciso investigar se, por trás da retórica da neutralidade, da subsunção pura da norma ao fato e da independência, há uma tentativa de esconder um universo de pessoalidade e subjetivismo.
A jurisdição constitucional, como parte do campo jurídico, é um “universo social relativamente independente das pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado” (BOURDIEU, 2007, p. 211).
A independência relativa de que se vale autoridade judicial é construída com a participação dos demais atores do campo jurídico, não se perdendo de vista que o direito contemporâneo é “um espaço de mediação e de luta entre forças antagônicas e conflituosas” (CLÈVE, 2001, p. 162).
Mesmo os movimentos sociais mais subalternos engendram suas lutas mediante articulação teórica, que confere a “dignidade política do direito” ou “dignidade teórica do saber jurídico” (CLÈVE, 2001, p. 162-163).
Portanto, a violência simbólica não necessariamente se exerce com exclusividade por determinado ator. No campo judicial, de que se está a tratar, as partes em conflito se valem de advogados para promover – como se diz – a melhor interpretação o direito, mas, naturalmente, o fazem segundo seus estritos interesses.
Nas linhas que se seguem, o julgamento do Supremo Tribunal Federal a respeito da OAB é destrinchado para que, na sequência, seus fundamentos sejam confrontados com as categorias teóricas acima descritas. Como dito, o propósito é revelar a possível violência simbólica presente no caso.
2. A ADI 3.026/DF
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.026/DF foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República, atendendo a manifestação apresentada pela Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, objetivando:
a) a declaração de inconstitucionalidade da parte final do § 1º do art. 79 da Lei n. 8.906/1994 por pretensa contrariedade ao princípio da moralidade insculpido no caput do art. 37 da Constituição da República e
b) a interpretação do art. 79 da Lei n. 8.906/1994 conforme o art. 37, inc. II, da Constituição da República para reconhecer que, apesar de submetidos ao regime trabalhista, os cargos da Ordem dos Advogados do Brasil devem ser providos mediante concurso público.
Partindo da premissa de que a natureza jurídica da OAB é a de autarquia (criada pelo Decreto n. 19.408/1930, com força de lei), o Procurador-Geral da República concluiu que ela estaria sujeita aos princípios da Administração Pública. Tanto evidenciaria a imoralidade do pagamento de indenização aos optantes do regime celetista (inconstitucionalidade da parte final do § 1º do art. 79 da Lei n. 8.906/1994, por inobservância ao art. 37, caput, da Constituição da República) e a necessidade de concurso público para o provimento de seus cargos (interpretação conforme o art. 37, inc. II, da Constituição da República).
A Advocacia Geral da União manifestou-se pela improcedência da ação quanto à inconstitucionalidade e pela impossibilidade de se conferir interpretação conforme a Constituição.
O art. 79 da Lei n. 8.906/1994 dispõe:
Art. 79. Aos servidores da OAB, aplica-se o regime trabalhista.
§ 1º Aos servidores da OAB, sujeitos ao regime da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, é concedido o direito de opção pelo regime trabalhista, no prazo de noventa dias a partir da vigência desta lei, sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor da última remuneração.
Em 8.6.2006, ao julgar improcedente a Ação direta de Inconstitucionalidade n. 3.026/DF, Relator o Ministro Eros Grau, o Plenário do Supremo Tribunal Federal negou a possibilidade de a OAB ser classificada como autarquia, sequer especial.
Foi nessa assentada que os Ministros do Supremo Tribunal Federal afirmaram a insubordinação da OAB aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta e concluíram que, por não estar sujeita ao controle da Administração e não manter qualquer relação de dependência com órgãos públicos, não necessitaria realizar concurso público para admissão de seus funcionários (contratados sob o regime trabalhista).
Ao destacar que a OAB exerce função constitucionalmente privilegiada, na medida em que as atividades dos advogados são indispensáveis à administração da Justiça (art. 133 da Constituição da República), os Ministros se limitaram a garantir a esse ‘serviço público’ maior independência, categorizando-a como titular de personalidade jurídica ímpar no direito brasileiro.
Para afastar a alegação de inconstitucionalidade da determinação legal ora impugnada, acabou-se por reconhecer a incompatibilidade entre o regime estatutário dos ‘empregados da OAB’ e a extensão da autonomia e independência inerentes às suas atribuições institucionais (art. 44, inc. I, da Lei n. 8.906/1994), a evidenciar a impossibilidade de ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional, cujas finalidades são eminentemente corporativas.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal assentou a constitucionalidade da parte final do § 1º do art. 79 da Lei 8.906/1994 e convalidou a possibilidade de os “servidores” da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista, esclarecendo que a indenização devida aos optantes pelo regime celetista será paga à época da aposentadoria.
3. O JULGAMENTO DA ADI 3.026 E A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
Conforme registrado, no capítulo “A força do direito” da obra “O poder simbólico”, Bourdieu esquadrinha o campo jurídico. No caso judicial estudado, têm-se como atores participantes o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República e a Ordem dos Advogados do Brasil. Não custa relembrar que há, entre eles, uma concorrência pelo exercício do poder simbólico, cada um com seu capital.
O capital jurídico usufruído por cada um desses agentes advém, antes de qualquer outro, do seu estatuto fixado pela Constituição da República. Ali se encontram a posição do STF no cume do Poder Judiciário – o que confere aos seus julgados a característica de não poderem ser revistos por qualquer outro órgão – e o papel da PGR e da OAB como instituições essenciais à Justiça, tomando parte na dinâmica da jurisdição constitucional, no ofício perante instâncias de controle, no processo de seleção de integrantes de carreiras de Estado, entre outras atribuições/poderes.
Relatou-se acima que a petição inicial da ação traz como ponto de partida o enquadramento da OAB como autarquia, considerando legislação, doutrina e jurisprudência pertinentes.
O Decreto-lei n. 200 conceitua autarquia como sendo “o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”.
Hely Lopes Meirelles comenta que, embora identificada com o Estado, a autarquia não é entidade estatal, é simples desmembramento administrativo do Poder Público (2000, p. 309).
A OAB é serviço criado por lei (Decreto n. 19.408, de 18 de novembro de 1930, art. 17: “Fica criada a Ordem dos Advogados Brasileiros, órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados, que se regerá pêlos estatutos que forem votados pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, com a colaboração dos Institutos dos Estados, e aprovados pelo Governo”).
Seu regulamento também é definido mediante processo legislativo (Lei 8.906, de que trata a ADI). Possui indiscutível personalidade jurídica própria, é capaz de se autoadministrar e atua no exercício de atividade pública e específica do Estado, já que seu estatuto (art. 44) diz que suas finalidades são:
I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
II - promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.
Além disso, a entidade possui prerrogativas inerentes à condição de pessoa jurídica de direito público, tais como: imunidade tributária total em relação a seus bens, rendas e serviços (art. 45, § 5º da mesma lei); exercício do poder de polícia administrativa da profissão; custeio mediante contribuição compulsória cobrada dos advogados, cujo pagamento é condição para o exercício profissional, bem como repasse de verbas públicas (a exemplo do disposto na Lei 6.811/1980 e contrariamente ao que comentou o Ministro Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2006, p. 572).
A Ordem dos Advogados não é única a ostentar tais atributos. Eles fazem parte de todo o conjunto de conselho de classe.
O fato de possuírem tamanhas responsabilidades, todas de interesse social, é justamente o que atrai o regime jurídico de direito público para esse tipo de entidade.
É bem verdade que lhes remanesce algum caráter associativo, de direito privado, quando, por exemplo, agem na defesa dos interesses estritos dos trabalhadores que lhes são vinculados. Mas sua missão institucional é o que prevalece enquanto fiscalizadoras do bom exercício profissional, funcionando como guardiãs da própria sociedade.
Não há qualquer dúvida em relação à natureza autárquica dos conselhos profissionais. O Supremo já assentou esse entendimento em diversos momentos. Estão tão vinculados ao regime jurídico de direito público que devem prestar contas de suas finanças ao Tribunal de Contas da União, já que possui caráter tributário a contribuição compulsória de seus associados (art. 149 da Constituição).
O art. 58 da Lei 9.649/98, que conferia natureza jurídica de direito privado as entidades de fiscalização de profissões, permitindo a contratação direta de pessoal, foi declarado inconstitucional no julgamento da ADI n. 1.717/DF. Na oportunidade, ficou consignada a “indelegabilidade a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas”. Mencionem-se ainda, sobre a matéria, os mandados de segurança 21.797/RJ e 28.249/DF.
Por todas as características mencionadas, é incontestável o forte respaldo da PGR para, a partir da qualificação da OAB como autarquia – e, portanto, integrante da administração indireta – exigir-lhe o regime jurídico daí decorrente.
Contudo, o Tribunal decidiu: não é autarquia.
De acordo com o Código Civil, enquanto pessoa jurídica, sua natureza deveria encaixar-se numa das opções abaixo coladas e, diga-se, nunca antes questionadas:
TÍTULO II
DAS PESSOAS JURÍDICAS
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 40. As pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado.
Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I - a União;
II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;
III - os Municípios;
IV - as autarquias, inclusive as associações públicas;
V - as demais entidades de caráter público criadas por lei.
[...]
Art. 42. São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público.
[...]
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as associações;
II - as sociedades;
III - as fundações.
IV - as organizações religiosas;
V - os partidos políticos.
VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada.
Descartando todos os tipos legais, ficou registrado que “a Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro” (BRASIL, 2006, p. 478).
Na linha dos estudos apresentados por Pierre Bourdieu, o exercício do poder simbólico pelo Poder Judiciário deveria voltar-se para a solução de conflitos surgidos entre pessoas e bens anunciando o que elas são. Ou, no mínimo, como as relações que tangenciam as normas jurídicas devem ser compreendidas e conduzidas, com vistas à paz social.
No caso vertente, ao contrário do que se poderia esperar legitimamente (como em todo julgamento), o Supremo Tribunal Federal deixou de dizer para julgar. Julgou sem dizer por quê.
A natureza da OAB, com o ocorrido em 2006, não se tornou compreensível; persistiu ainda mais tormentosa.
É impossível neste trabalho por uma pá de cal no debate sem promover um desarranjo institucional. O que se afirmou no julgamento reforçou a blindagem que resulta dos esforços de interlocutores ao longo de décadas. Apesar disso, subsiste a observação de que o Supremo Tribunal Federal participa recorrentemente dessa construção com julgados pouco claros e objetivos.
Os casos citados logo acima são exemplos não raros em que a jurisprudência assentada em determinada matéria é superada sem que se faça qualquer ponderação a esse respeito nos votos orais ou escritos dos ministros, sejam eles proferidos nas Turmas ou no Plenário.
O que se vê aí, em maior ou menor escala, é resultado de violência simbólica que, de tão comum, parece ter sido incorporada à interpretação que se dá às normas jurídicas (especialmente as regimentais).
A circunstância de, como destacado pelo Ministro Ayres Britto, a Constituição da República de 1988 “fala[r] três vezes em Ordem dos Advogados do Brasil (arts. 93, 129, § 3º, e 132); fala[r] cinco vezes de Conselho Federal da OAB (arts.103, 103-B, 130-A, § 4º); [e] em advogado, quatorze vezes” constitui razão suficiente para a categorização da OAB como “serviço público independente”?
Ao que tudo indica, não.
A leitura das 120 laudas que compõem o inteiro teor do julgamento da ADI 3.026 não permite compreender qual foi o fundamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal para superar a premissa central trazida pela Procuradoria-Geral da República, autora da ação. Para afirmar que a OAB não é uma autarquia, respeitando lições básicas da hermenêutica constitucional, convinha explicar os porquês. Ao contrário disso, não se tem nesse julgado a definição do que é autarquia, tudo a evidenciar que esse conceito não é tão óbvio quanto se poderia desejar (imaginar). Estar-se-ia diante de nova técnica de julgamento?
Na tentativa de encurtar o abismo existente entre os fundamentos que foram apresentados e aqueloutros que poderiam ter sido debatidos (mas não o foram porque não passaram no crivo da conveniência), exigência do princípio da integralidade da prestação jurisdicional, cumpre destacar, pelo menos, algumas consequências deste julgamento.
Cumpre assentar de plano que a circunstância de a causa de pedir em ação de controle concentrado de constitucionalidade ser aberta [1] não mitiga o dever de fundamentação apregoado no inc. IX do art. 93 da Constituição da República.
A dificuldade de se mensurar a medida de desvinculação entre o que a parte apresenta como premissa de seu pedido e a fundamentação do julgado adotada pelo Supremo Tribunal Federal é questão frequente nas sessões de julgamento. Não são raros apartes dos ministros que, insinuando a obviedade da questão posta, acabam por banalizar o enfrentamento delas. Em que pese a assentada jurisprudência afirmar a desnecessidade de se responder todos os argumentos trazidos pela parte, pelo menos o ponto central deve ser respondido.
Eis aqui uma das facetas do exercício da violência simbólica. De se perguntar, todavia, quais são as vítimas dessa violência.
Ao não dizer o que é autarquia e ainda assim afastar peremptoriamente a possibilidade de categorizar a OAB como uma delas, tal como se tem concluído em relação aos demais conselhos profissionais [2], o Supremo Tribunal Federal valeu-se da prerrogativa de, simplesmente, dizer por último.
O Ministro Eros Grau, relator, por exemplo, preferiu comparar a OAB não com outras entidades corporativas, mas com os partidos políticos, para concluir que “por medida de coerência, se entendêssemos que uma entidade que não participa da administração deve ficar sujeita a concurso público, teríamos de impor essa exigência [...] ao PT, ao PMDB, ao PSDB e assim por diante” (BRASIL, 2006, p. 520).
Já que todos os demais conselhos profissionais são autarquias e se sujeitam à regra do concurso público, é absolutamente imprescindível examinar qual a medida da distinção da OAB que a exclui desse contexto.
O traço da OAB que a diferencia dos demais conselhos de classe diz respeito a compromissos institucionais mais alargados, que extrapolam a atividade profissional. São as finalidades do inciso I do art. 44 do seu estatuto que tratam da defesa da ordem jurídica como um todo, dos direitos humanos e até do aperfeiçoamento de outras instituições jurídicas.
Em muitos trechos do acórdão, ressaltam-se a autonomia e a independência da OAB para adjetivá-la como entidade ímpar. Mas esses predicados não lhe são exclusivos, pois dizem respeito à autoadministração, à capacidade de dispor sobre sua organização interna, procedimentos, escolha dos dirigentes, impossibilidade de revisão das suas decisões por outro órgão administrativo (DI PIETRO, 2005, p. 194). Enfim, trata-se de uma série de preceitos igualmente aplicáveis aos demais conselhos.
O Ministro Cezar Peluso, no início de seu voto, critica uma “tendência óbvia na ciência do Direito de, diante de certas dificuldades conceituais, se recorrer às categorias existentes e já pensadas como se fossem escaninhos postos pela ciência, onde um fenômeno deva ser enquadrado forçosamente” (BRASIL, 2006, p. 528).
Ocorre que, desde sempre, os administrativistas reconhecem a abertura para variações no grau de autonomia das autarquias. E isso deriva fatalmente do fato de cada uma delas ser criada por lei específica, que dita em qual medida será adotado o regime jurídico de direito público e da desvinculação ao governo.
Está claro, portanto, que não existe um modelo único e predeterminado de organização e definição das competências das autarquias (JUSTEN FILHO, 2010, p. 205). O regramento legal, no entanto, não é apto a permitir escusa ao mandamento constitucional do concurso público.
A submissão da OAB à regra do concurso público para seleção de pessoal em nada arranharia suas preciosas autonomia e independência, pois assim não ocorre em relação ao Ministério Público, à Defensoria Pública ou aos demais conselhos profissionais. Mas não foi isso o que seu presidente anunciou em livreto editado para glorificar o resultado da ADI. Ali anunciou que o que estava em pauta era a estatização da entidade, “algo que nem a ditadura militar, em seus piores momentos, logrou cogitar”, aduzindo que a procedência da ação “simplesmente liquidaria a essência libertária da Ordem” e que o resultado foi “acima de tudo, uma vitória da liberdade, do Estado Democrático de Direito – da cidadania” (TIMM, p. 8).
Apesar de toda a resistência à imposição da regra constitucional, a OAB vem abraçando a prática de selecionar funcionários mediante seleção pública. Veja-se o que noticia o site da seccional do Distrito Federal em 19 de abril de 2012:
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Distrito Federal adotou processo seletivo visando à contratação de advogados para seu quadro de pessoal.
[...]
Com esse concurso, a Diretoria da Seccional pretende implementar a Advocacia Geral da OAB e prestar um serviço de maior qualidade à advocacia brasiliense.
Para o presidente da OAB/DF, Francisco Caputo, a iniciativa tem o propósito de tornar o processo de contratação mais justo e qualitativo. “Trata-se de uma forma mais democrática de contratação, prestigiando a qualificação pessoal e consagrando a impessoalidade da administração”. Esse processo é utilizado pela maioria das entidades de classe mais expressivas do país. A medida, no seu entender, é também mais um passo importante desta gestão para valorizar o quadro de profissionais da Ordem (OAB/DF, 2012, on-line).
Segundo o raciocínio de José dos Santos Carvalho Filho, o julgamento constituiu discriminação em relação aos demais conselhos profissionais, já que o objetivo nuclear de todos é o mesmo. Prestando serviço público indelegável, como reconhecido pelo Tribunal, e exercendo poderes especiais de Estado, como o poder de polícia, “não se compreende qual a sua real posição no sistema de governo, sem que esteja integrada na administração descentralizada”. Comenta ainda que “causa espécie que não se submeta ao controle do Tribunal de Contas”, considerando que as contribuições pagas pelos profissionais licenciados caracterizam-se como dinheiros públicos (2007, p. 411-412).
Sobre a dispensa de concurso para recrutamento de pessoal, entende o autor pela ofensa aos princípios da moralidade administrativa e da igualdade de oportunidades. Finaliza externando que “talvez valesse a pena pesquisar a opinião e o sentimento de todos os advogados [...], pois é provável que percebam que há algo de esdrúxulo no regime ora dispensado a essa autarquia tão relevante, reconhecida e democrática” (CARVALHO FILHO, 2007, p. 412).
A conclusão a que se chega, haja vista o raciocínio empreendido, é que foram escamoteados os verdadeiros motivos da decisão tomada pelo tribunal. A seguir, a tentativa de desvendá-los.
4. O CAPITAL DA OAB
De se esclarecer, uma vez mais, que não se questiona neste breve estudo a importância da atuação da OAB no processo de democratização brasileiro. Resultado da crescente conscientização da titularidade de direitos, não mais tidos como meros favores oferecidos pelo Estado, o que se tem visto é uma busca vertiginosa de auxílio junto aos advogados por parte das diversas camadas sociais. O papel desempenhado por eles é ainda mais enaltecido pela complexidade das causas em que se envolvem e pela conduta dos agentes públicos que resistem à pronta observância das normas assecuratórias de direitos.
Nessa medida tem crescido também a convicção dos advogados no sentido de que a representatividade do conselho ao qual pertencem consolida as prerrogativas que lhes foram asseguradas pela Constituição e reconhecidas pela sociedade. Por esta razão, os advogados têm apresentado à OAB suas expectativas que, em resposta aos seus membros, vêm atuando com vistas a assegurar maior participação deles e da sociedade civil nos órgãos de poder, a exemplo do que se deu no projeto da Lei da Ficha Limpa.
Algumas possibilidades se abrem quando o interlocutor (os destinatários da decisão) dispõe-se a conjecturar o que teria levado o Supremo Tribunal Federal a decidir como decidiu.
A considerar que os advogados compõem a estreita fatia social que, ao lado dos ministros, dominam o linguajar próprio dos ambientes jurídicos (elemento essencial do poder simbólico exercido por todos eles nas diferentes esferas em que atuam), dúvidas não remanescem que esse julgamento fortaleceu a OAB.
De passagem, diga-se que é para as bancas da advocacia que costuma se encaminhar boa parte dos juízes, o que está facilitado pelo provimento n. 143/2011 do Conselho Federal da OAB, segundo o qual “ficam dispensados do Exame de Ordem os postulantes oriundos da Magistratura e do Ministério Público”.
Ao enfatizar a autonomia e a independência da OAB, os agentes políticos responsáveis pela guarda da Constituição da República reconheceram que os agentes responsáveis pela apresentação das demandas (dada a impossibilidade de atuação de ofício do Poder Judiciário) e pela fiscalização da execução das decisões, inclusive, judiciais, ocupam lugar destacado na ordem social brasileira.
A análise, ainda que superficial, da interação entre esses atores sociais no campus social evidencia que a incessante busca por legitimação reflete diretamente nas mútuas concessões experimentadas por esses atores sociais, não raro em detrimento da sociedade globalmente considerada, vítima, portanto, da violência simbólica. Essas concessões, como destaca Pierre Bourdieu, decorrem de uma estrutura ditada pelas relações objetivas firmadas entre os agentes “que determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posição” (BOURDIEU, 2004b, p. 23).
Certo é que o poder simbólico da OAB só cresceu nos últimos anos.
Não bastasse, como conselho profissional, ser detentora de legitimidade para controle concentrado de constitucionalidade (art. 103, da CR/88), a OAB é dispensada de comprovar a pertinência temática nas ações em que atua, o que não ocorre em relação às demais entidades de classe [3].
Além da presença regimentalmente garantida em todas as solenidades do Supremo Tribunal Federal (art. 3º, inc. IX, da Resolução STF n. 263/2003), a OAB tem se envolvido em convênios com o Conselho Nacional de Justiça, com a Defensoria Pública e com Tribunais.
Em pesquisa no sítio do Supremo Tribunal Federal, tem-se que das quase mil ações diretas de inconstitucionalidade protocolizadas no Tribunal desde o julgamento da ação em comento (junho de 2006), a OAB ajuizou até o momento 80 delas.
Em todos os julgamentos relevantes ocorridos desde então, a OAB esteve presente, defendendo seu posicionamento.
Nas audiências públicas não tem sido diferente, conforme registrado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e Recurso Extraordinário 597.285 (Ações Afirmativas de acesso ao ensino superior); nas Suspensões de Liminar nos Agravos Regimentais 47 e 64; Suspensões de Tutela Antecipada 36, 185, 211 e 278 e Suspensões de Segurança 2.361, 2.944, 3.345 e 3.355 (Saúde); e na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.103 (Lei Seca).
Em que pese o prazo determinado em lei, as sustentações da tribuna têm servido sobremaneira para esclarecer pontos supostamente relevantes para os julgamentos, especialmente no que diz respeito aos efeitos decorrentes de declaração de inconstitucionalidade. Pedidos que antes exigiam formulação prévia e por escrito pelos advogados das partes [4] têm sido feitos oralmente, inclusive em sessão seguinte à conclusão do respectivo julgamento, a exemplo do que se deu em relação à ADI 4.029.
A importância que tem sido atribuída à OAB pode ser destacada também em recentes julgados do STF. A atuação da OAB no Estado de Santa Catarina chama a atenção. Em 14.3.2012, o STF, por maioria, modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do art. 104 da Constituição daquele Estado e da Lei Complementar Estadual 155/97 (ADIs 3.892 e 4.270) ao fundamento de que a população hipossuficiente do Estado de Santa Catarina não poderia ficar desassistida, razão pela qual continuarão “recebe[ndo] prestação jurídica gratuita por meio de advogados dativos indicados pela seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SC)”. Somado o prazo de 1 ano fixado nesse julgamento aos 23 anos e alguns meses da vigência da Constituição da República, serão aproximadamente 24 anos de descumprimento da norma contida em seu art. 134 (Informativo STF mensal n. 658).
Tendo por base o julgamento da ADI aqui estudada, a Justiça Federal de São Paulo decidiu que a anuidade da seccional paga pelos advogados não precisa obedecer ao limite de quinhentos reais imposto aos conselhos de fiscalização profissional pela Lei 12.514/2011. O teor do julgado está disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/justica-federal-fadesp.pdf>.
Se por um lado parece indiscutível que “a OAB, ainda que não esteja diretamente submetida a vínculo funcional ou hierárquico quanto aos órgãos da Administração Pública (Lei no 8.906/1994, art. 44, § 1º), é responsável por atividades de inegável relevância pública”, como destacado pelo Ministro Gilmar Mendes em voto vista do julgamento em análise, por outro é possível imaginar que o tratamento diferenciado dispensado à OAB estaria a serviço da manutenção das estruturas hierárquicas pré-estabelecidas.
Não é sem propósito que a baliza central de avaliação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal pelo Anuário da Justiça é a forma pela qual atendem aos advogados, recebendo notas que variam entre o ‘bem’, o ‘regular’ e o ‘mal’ (CONJUR, 2011).
Desvincular a OAB de quaisquer estruturas da Administração Pública Indireta não seria uma maneira jurídica (decorrente do exercício de sua função precípua – a de julgar e, nesse caso, por último, repete-se) de o próprio Supremo Tribunal Federal assegurar a legitimidade de sua atuação? Não seria essa mais uma tentativa de amarrar o sistema judicial às estruturas construídas a partir do exercício do poder simbólico?
A medida da convicção que sobrou para afirmar que a OAB não é autarquia faltou no momento de esclarecer o porquê. Mesmo não sendo autarquia nos moldes supostamente ‘bem conhecidos’ no ordenamento jurídico, ela não poderia se vincular às exigências decorrentes dos princípios constitucionais da administração pública?
Ao defender a desnecessidade de o Supremo Tribunal Federal se “aferrar [...] às formas jurídicas existentes [porque], no caso, [...] seria muito fácil perfilhar a tese do caráter autárquico e, a partir daí, assumir todas as conseqüências desse modelo”, o Ministro Gilmar Mendes pretendeu lançar nova perspectiva de análise da questão posta em debate.
Interessante notar que, a despeito de ter sido constatado pelos Ministros Cezar Peluso e Ayres Britto que a OAB ora se rege por normas de Direito Público, ora se rege por normas de Direito Privado, a dúvida quanto ao regime prevalecente permaneceu sem resposta. Tanto não estaria a corroborar a conclusão a que chegou o Ministro Joaquim Barbosa quando afirmou que a OAB vive “panglossianamente [...] no melhor dos mundos” (BRASIL, 2006, p. 567)?
Parece que sim.
O professor José Afonso da Silva afirma que a OAB
tem atribuições de fiscalização de exercício de profissão liberal; é mantida com recursos próprios; não recebe subvenção nem transferências à conta do orçamento da União; logo, não se lhe aplicam normas legais sobre pessoal nem as demais disposições de caráter geral, relativas à administração interna das autarquias federais, porque ela é uma entidade diversa destas (SILVA in TIMM, p. 26).
Ocorre que isso não é suficiente para eximir a instituição de sua essencial vinculação ao Estado brasileiro, menos ainda das obrigações decorrentes do princípio republicano e do princípio democrático, aos quais são inerentes a “dignidade da pessoa humana, a igualdade dos indivíduos, a moralidade e a responsabilidade públicas” (ROCHA, 1997, p. 69).
Como leciona a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, a
República Democrática forma e conforma o modelo de convivência política no Brasil e informa todas as instituições. Os princípios republicano e democrático modelam-se e condicionam-se reciprocamente, de tal maneira que não há como aceitar-se, no sistema jurídico vigente, qualquer cometimento público ou particular que confronte um deles como se, incontinenti, o outro também não fosse atingido” (ROCHA, 1997, p. 94).
O exercício do serviço público conferido à OAB pela lei que a desenha à luz dos princípios constitucionais acima referidos, antes de importar em subordinação técnica ou administrativa ao Estado brasileiro e em redução da sua autonomia e independência, fortalecem seu papel institucional, a servir de exemplo para tantas outras instituições.
Em outras palavras: se não há forma para enquadrá-la, e parece não haver mesmo, qual seria a razão de eximi-la de obrigações que só confirmam o seu papel institucional? Obrigações que em muito contribuiriam para a moralização do tão desgastado Estado brasileiro. E é exatamente porque a OAB “desempenha papel institucional com forte caráter estatal e público”, como destacou o Ministro Gilmar Mendes, que a responsabilidade inerente a devotado múnus não pode se dissociar da moralidade, da impessoalidade, da igualdade, mananciais da exigência do concurso público.
CONCLUSÃO
A OAB tem o julgamento da ADI 3.026/DF como um marco em sua história. Com ele, o Supremo Tribunal Federal declarou que a entidade possui atribuições inerentes ao poder público, mas que pode exercê-las com a liberdade típica das organizações privadas.
Com apoio na literatura de Pierre Bourdieu, o exame do caso permitiu identificar o conflito travado entre atores do campo jurídico para exercer o poder simbólico de dizer o direito, atribuindo significação ao fenômeno em pauta.
Utilizou-se, logo na ementa do acórdão, a expressão “serviço público independente” para classificar a instituição. De serviço público, possui poderes e prerrogativas repetidas à exaustão, mas não as responsabilidades impostas pelos princípios constitucionais da administração ou o dever de prestar contas ou submeter-se a qualquer espécie de fiscalização estatal.
O capital jurídico acumulado há décadas pela OAB permitiu-lhe sair da demanda como chegou: isenta das amarras da administração pública e blindada pelas concessões outorgadas pelo Judiciário.
Ficou dito, também na ementa, que a função da Ordem é “privilegiada”. E isso o STF deixou bem claro.
O que não ficou minimamente explicado é de que forma a equiparação da Ordem aos demais conselhos profissionais – com natureza autárquica e sujeitos ao princípio do concurso público, como peticionou a Procuradoria-Geral da República –, retirar-lhe-ia a autonomia para organizar-se e a independência para atuar em favor de seus ideais.
Eis aí o que a doutrina de Bourdieu revela como exercício de violência simbólica. As razões para consagrar um regime único para a OAB não se encontram no direito administrativo, como se tentou explicar. Estão, na verdade, na tradição da instituição, na sua relação íntima com o tribunal supremo, na medida de seu poder simbólico.
Por tudo quanto apontado é que o exercício do poder simbólico pelo STF e pela OAB deve ser diuturnamente fiscalizado pelos demais atores sociais.