Princípio da igualdade, ações afirmativas e ADPF 186

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05/04/2015 às 17:44
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A ADPF 186, ajuízada pelo DEM, trouxe ao Supremo Tribunal Federal a discussão sobre as ações afirmativas, em especial as cotas raciais para ingresso em universidade, ponderadas a partir do princípio da igualdade.

1 INTRODUÇÃO

Recentemente uma polêmica questão foi objeto de julgamento no Supremo Tribunal Federal, qual seja a constitucionalidade ou não das cotas raciais adotadas pela Universidade de Brasília (UnB). Tal discussão possui opiniões divergentes.

As cotas, que são espécies de ações afirmativas, são questionadas face ao princípio da igualdade e com este possui um liame, o que se faz necessário alguns esclarecimentos sobre o tema. Tal elucidação foi o que se pretendeu com este trabalho.

Além deste questionamento existente entre a igualdade e as ações afirmativas, o princípio isonômico possui um grande valor na ordem jurídica, por estes motivos sobre ele faz-se preciso um estudo mais aprofundado e isto é o que está exposto na primeira parte do trabalho.

Ademais, as ações afirmativas não se resumem às cotas. Medidas deste cunho são muito mais complexas e possuem mais fundamentos do que o senso comum simplesmente, enxerga. Seu conceito, justificação e princípios, dentre outras, são questões abordadas no capítulo respectivo.

Por fim, foi feito um resumo do julgamento da ADPF 186. Neste ponto estão destacados, em meio a manifestações de outras entidades, os principais fundamentos da petição inicial da arguição, bem como os entendimentos à favor das cotas adotadas pela UnB dos que atuaram como amigos da corte e os votos dos ministros do STF.


2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Espinha dorsal de uma sociedade democrática, o princípio da igualdade[1] é instituto que advém do cotidiano humano e, tendo em vista que as sociedades estão em sucessivos processos de transformação, reflete os valores dos grupos sociais nos transcorrer de suas existências.

Diante dessa mutabilidade, o que se entende como igualdade jurídica em determinado país pode não ser da mesma forma entendida em outro país e ainda, a isonomia de tempos passados pode não equivaler ao que se entende por igualdade hodiernamente e tampouco servir como parâmetros efetivos para calcar previsões do que será ela em tempos vindouros. (MACIEL, 2010)

O princípio da isonomia reveste-se de grande importância social e jurídica, pois o Direito vale-se de critérios isonômicos para atingir a justiça, definindo equilíbrio e, até mesmo, desequilíbrio, uma vez que existem desigualdades de diversas ordens que privam muitos de ter suas necessidades básicas supridas.

2.1 Evolução da concepção do princípio da igualdade

A igualdade, como ideologia, foi discutida desde sempre em todas as épocas e regiões, que deixaram suas influências na criação do princípio.     

Pode-se dividir a isonomia em três etapas: 1ª) A regra era a desigualdade; 2ª) Igualdade perante a lei, portanto todos devem ser tratados indistintamente; 3ª) A lei deve ser aplicada respeitando-se as desigualdades.

Primeiramente, a sociedade criou-se sob influência de desigualdades artificiais, especialmente fundadas nas distinções entre pobres e ricos, sendo expressas a diferença e a discriminação. Prevaleciam os privilégios e as desigualdades eram sedimentadas, as relações de igualdade eram escassas e as leis não as destacavam nem resolviam as diferenças.

Pode-se dizer que a sociedade:

Adotava a desigualdade fundamentando este sistema nas leis, que a legalizava, e deste modo propiciava a quem mais detivesse poder e riqueza mais privilégios e, ao contrário, aos indivíduos de classes inferiores restavam os resultados caóticos do desequilíbrio. (MACIEL, 2010)

Não obstante o pensamento de Aristóteles ("a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais"), as regalias dos poderosos eram normalmente aceitas e a escravidão não era contestada (o silêncio era imposto aos escravizados). Era legitima a diferenciação entre pobres e ricos, sem a preocupação de igualar os desiguais, portanto, não houve nos povos antigos a deflagração do processo de igualdade. Excepcionalmente, pode-se citar a Lei das XII Tábuas[2], o Edito Perpétuo[3] e o Edito de Caracalla ou Constitutio Antoniniana[4].

No período da Idade Média a desigualdade atingiu seu ápice, uma vez que a sociedade, cada vez mais, explanava desigualdade, inclusive com a filosofia da época a legitimando.

Os grupos sociais, neste intervalo histórico, eram erigidos pelos suseranos[5] e vassalos[6]. Vicentino, citado por Maciel (2010), expôs que:

A sociedade feudal era composta por dois estamentos, ou seja, dois grupos sociais com status fixo: os senhores feudais e os servos. Os servos eram constituídos pela maior parte da população camponesa, vivendo como os antigos colonos romanos – presos à terra e sofrendo intensa exploração. Eram obrigados a prestar serviços ao senhor e a pagar-lhe diversos tributos em troca de permissão de uso da terra e proteção militar.

Num segundo momento histórico, houve progresso da igualdade e transformações sociais desencadearam a origem do Estado moderno. Com o surgimento da moeda, e do comércio, o sistema feudal entrou em declínio, e, no mesmo compasso, apareceram as cidades. A burguesia surgiu como nova classe social. Logo sobreveio a Revolução Industrial e os burgueses, culturalmente enriquecidos, ainda que de modo conveniente à classe, reivindicaram tratamento igualitário à todos.

Não se cogita, entretanto, de uma igualação genericamente assentada, mas da ruptura de uma situação em que prerrogativas pessoais decorrentes de artifícios sociais impõem formas despóticas e acintosamente injustas de desigualação. Estabelece-se, então, um Direito que se afirma fundado no reconhecimento da igualdade dos homens, igualdade em sua dignidade, em sua condição essencial de ser humano. Positiva-se o princípio da igualdade. A lei, diz-se então, será aplicada igualmente a quem sobre ela se encontre submetido. Preceitua-se o princípio da igualdade perante a lei. (ROCHA apud MACIEL, 2010)

Porém, desse modo, o princípio liberal da igualdade, não conseguiu, e nem pretendeu, acabar com a desigualdade, apenas não a contemplava. Firmou-se, assim, uma igualdade formal, que se limita a desconhecer as igualdades reais.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na França, no seu primeiro artigo estabeleceu o princípio de que os homens nascem e permanecem iguais em direito. Tal tornou-se a base do Estado moderno influenciando todas as constituições posteriores.

Ocorre, entretanto, que este engatinhar do princípio da igualdade que levou a erigi-lo como norma constitucional, não foi o suficiente para garantir que as necessárias mutações que se sucedem na evolução da história dos povos fosse exteriorizada de modo igualitário, uma vez que o Estado liberal se pôs alheio a intervenções e designou aos operadores do direito a tarefa de tentativa de efetivação da isonomia. Não obstante, ainda que de forma lenta e gradativa, tendo por base a realidade de cada grupo social, em cada época, o princípio da isonomia começa a ter desdobramentos cada vez mais significativos e concretos. (MACIEL, 2010)

Constata-se, desde meados do século passado, que a legitimação da igualdade, inclusive na seara trabalhista, era preocupação dos povos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de1948, objetivando promover grandes transformações sociais, trouxe preceitos sobre a igualdade, a saber:

Artigo  VII: Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo XXII: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXIII: 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego; 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho; 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social; 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses.

Explorando as constituições brasileiras pode-se perceber que, desde sua gênese, o princípio da isonomia está presente. Porém:

houve momentos em que a igualdade não ocorreu nem tampouco em sua acepção formal, porquanto na Carta de 1824 o princípio coexistia com a legitimação da escravatura. Há que se apontar também que nesta Carta, envolvida pela tendência mundial da época, a distinção era fundamentada nos méritos individuais. (MACIEL, 2010)

Com a Constituição de 1.891 (fim da monarquia e início da república) foram extintos ou vedados todos os privilégios de classes tidas como superiores, exaltando o princípio da igualdade. Entretanto, com o decurso do tempo percebeu-se que o autoritarismo, privilégios e títulos, ainda que não escritos, foram mantidos por imposição destas “classes superiores”.

A igualdade perante a lei foi mantida pela Constituição de 1.934, mas com um novo elemento: “Art. 113, 1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas”. Desse modo, assumiu a existência de questões tradicionalmente desencadeadoras de desigualdades e formalmente as repreendeu.

Todavia, com a Constituição de 1937, o elemento supracitado, que era inovação, foi excluído. Nesta ocasião, destaca-se a Consolidação das Leis do Trabalho, que proibiu a diferenciação nos rendimentos com base no sexo, nacionalidade ou idade.

Enaltecendo o princípio da igualdade, a Constituição de 1.946 proibiu a propaganda de preconceitos de raça ou classe:

Art. 141, § 5º - É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.

Pertinente relatar que, durante a vigência da Constituição de 1.964, o Brasil tornou-se signatário da Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que definiu discriminação como “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão” (Art. 1º, 1, “a”).

No que alude à Carta Política de 1967, há que se mencionar que se deu a constitucionalização da punição do preconceito de raça. Um ano após, o Brasil ratifica a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Racismo, ao dispor que "não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais", admitindo a necessidade e a validade de ações para o progresso de determinados grupos. (MACIEL, 2010)

A Emenda Constitucional nº 1[7], de 17 de outubro de 1969, não alterou o conteúdo do princípio da igualdade neste ínterim.

Finalmente, em relação à igualdade, a Constituição Federal de 1.988 inovou desde seu preâmbulo. Elegeu a igualdade como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, o qual o Estado Democrático ora instituído destina-se a assegurar. No mesmo sentido, escolheu como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, IV). Há que se destacar o artigo 5º, que assegura a igualdade perante a lei e estabelece a inviolabilidade do direito à igualdade.

A igualdade não se restringe aos dispositivos supramencionados, atravessa toda a Constituição, quer igualando ou desigualando para se garantir a igualdade de oportunidades a todos.

Diante da história mundial é possível verificar que os Estados se limitavam à simplesmente estabelecer a igualdade, sem, contudo, tentar corrigir as diferenças, o que não ensejou a igualdade entre os cidadãos. Com o decorrer do tempo compreendeu-se que não satisfazia a descrição formal pela Constituição de que todos são iguais perante a lei – proibido os tratamentos diferenciados, observou-se a necessidade de a Constituição obrigar o Estado a discriminar (positivamente) as pessoas de tal forma que implicasse na promoção de uma igualdade eficaz. É o que mostra a atual concepção do conteúdo jurídico do princípio da igualdade a seguir exposta.

2.2 Conteúdo jurídico do princípio da igualdade

A constituição brasileira estabelece, no caput do seu artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Por unanimidade entende-se que este princípio não restringe-se a nivelar os cidadãos perante a lei, mas que esta não pode ser editada sem observância da isonomia, sendo norma voltada para o legislador e destinada, também, ao aplicador da lei, em outras palavras, o princípio da igualdade deve ser observado pelas três funções do Estado: é aplicado na atuação do Executivo, do Legislativo e do Judiciário (as partes devem ser tratadas igualitariamente no desenrolar do processo judicial).

O princípio da igualdade é o primeiro e mais fundamental limite aos critérios da política legislativa por mais discricionários que possam parecer.

A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes. (MELLO, 2008, p. 10)

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Hans Kelsen introduziu uma problemática: a igualdade perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. Com isso, demonstrou que o sentido relevante do princípio da igualdade está na obrigação da igualdade na lei:

Colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis – em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas. (KELSEN apud Mello, 2008, p. 10)

Em suma, não há dúvida que para todos os destinatários da lei deve ser dispensado tratamento equivalente, seja na edição da norma legal posta ou na aplicação. Porém, ao falar em igualdade perante a lei não estará se referindo, ou pelo menos não no seu total conteúdo, ao princípio da igualdade, mas ao princípio da regularidade da aplicação do direito ou ao princípio da legalidade da aplicação das leis. Esta concepção corresponde à faceta formal do princípio igualitário, porém é necessário uma igualdade substancial, no conteúdo, e não simplesmente formal, é preciso igualdade na lei.

Nesse sentido, Kelsen faz as considerações:

A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres. (KELSEN apud MELLO, 2008, p. 11)

Kelsen, com razão, aponta que impor exatamente as mesmas obrigações ou conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos seria absurdo e inconcebível. Tavares ratifica este entendimento citando o exemplo das crianças em relação aos adultos, “cada qual tem uma situação própria, peculiar, a demandar cuidados específicos, que o Direito resguarda e tutela na medida de suas necessidades” (TAVARES, 2007, p. 526).

Para Aristóteles a igualdade consiste no tratamento igual para os iguais e tratamento desigual para os desiguais. Sem contestar a procedência e importância da afirmação, esta máxima não é suficiente para estabelecer quem são os iguais, quem são os desiguais e como deverá o tratamento diferenciado para não cair em injustiça, deve, portanto, ser entendida como ponto de partida[8]. Para concretizar este princípio são necessários critérios objetivos e precisos, capazes de legitimamente destacar quem são os iguais e quem são os desiguais, é mister “saber quais são os elementos ou situações de igualdade ou desigualdade que autorizam, ou não, o tratamento igual ou desigual” (TAVARES, 2007, p. 526).

Estas dúvidas devem ser sanadas para que a máxima aristotélica tenha uma efetiva utilidade prática. Mello (2008, p. 11) questiona: “o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais?”; “qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos?”; “Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”.

Só respondendo a estas indagações poder-se-á lograr adensamento do preceito, de sorte a emprestar-lhe cunho operativo seguro, capaz de converter sua teórica proclamação em guia de uma praxis efetiva, reclamada pelo próprio ditame constitucional. (MELLO, 2008, p. 11)

Há entre as pessoas diferenças evidentes, facilmente perceptíveis, mas que nem sempre poderão ser escolhidas, validamente, como critérios distintivos justificadores de tratamentos jurídicos dispares.  O que tornará legítimo o critério diferenciador é o motivo pelo qual as situações ou pessoas devem ser tratadas desigualmente.

Para exemplificar, Mello valeu-se da seguinte situação: a altura de um homem não pode ser critério para a proibição de celebrar contrato de compra e venda, contudo pode ser para estabelecer quais soldados farão parte de ”guardas de honra” nas cerimônias militares oficiais. “Dês que se atine com a razão pela qual em um caso o discrímen é ilegítimo e em outro legítimo, ter-se-ão franqueadas as portas que interditam a compreensão clara do conteúdo da isonomia” (MELLO, 2008, p. 12).

Para Humberto Ávila:

A igualdade pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatórios; como princípio, instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim). (ÁVILA, 2010, p. 152)[9].

Estabelecer quando é vedado e quando é permitido à lei estabelecer discriminações é um ponto crucial para estabelecer o conteúdo real do princípio da isonomia.

Vale dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão, tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios distintos, pela singela razão de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros, não. Mais do que isso: fins diversos conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no Direito. Como postulado, sua violação reconduz a uma violação de alguma norma jurídica. Os sujeitos devem ser considerados iguais em liberdade, propriedade, dignidade. A violação da igualdade implica a violação a algum princípio fundamental. (ÁVILA, 2010, p. 153)

2.2.1 Sexo, raça, credo religioso como fatores de discriminação

Erroneamente se supõe que a quebra da isonomia verifica-se no critério ou fator diferencial escolhido para diferenciar o tratamento. Na realidade, não é possível a escolha aleatória de algum fator objetivo, mas qualquer elemento pode ser critério diferenciador, a saber:

as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição. (MELLO, 2008, p. 17)

Neste trecho podemos observar dois importantes requisitos para a escolha de um critério diferenciador: a pertinência lógica entre o critério diferenciador e o tratamento diferenciado; e a compatibilidade com os interesses prestigiados na Constituição Federal.

Portanto, devem ser interpretados com cautela os dispositivos constitucionais que proíbem a desequiparação levando em conta certos motivos, como raça, sexo, cor, idade (no exemplo: artigo 3º, IV, da CF/88 – “e quaisquer outras formas de discriminação”). O que é constitucionalmente vedado pelo princípio da igualdade é a discriminação preconceituosa, gratuita, arbitrária, em contrariedade com os interesses da sociedade e sem o vínculo de correlação lógica entre o traço diferenciador e o tratamento diferenciado dispensado.

Para exemplificar, suponha-se que certa raça é imune a um tipo de epidemia que atinge brutalmente determinada região; é racionalmente justificável que eventual seleção para contratação temporária de enfermeiros admita somente pessoas da raça imune à doença; sem, portanto, qualquer ofensa ao princípio da igualdade prestigiado pela CF. Outro singelo exemplo, em nada ofende o princípio igualitário a admissão apenas de mulheres em concursos para preenchimento de cargos de “polícia feminina”.

“A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania” (BUENO apud MELLO, 2008, p. 18).

Kelsen – conquanto mestre insuperável – neste passo, ao parecer, errou completamente, pois também supôs que a ofensa à isonomia reside em se estabelecerem legalmente diferenciações embasadas em traços que não podem servir de calço para o estabelecimento de discrímen. Nisto, aliás, aderiu ao equívoco doutrinário corrente. É o que se depreende do seguinte relanço: “Se se raciocina sobre a igualdade na lei, isto significará que as leis não podem – sob pena de anulação por inconstitucionalidade – fundar uma diferença de tratamento sobre certas distinções muito determinadas, tais como as que respeitam à raça, à religião, à classe social ou à fortuna”. E, imediatamente em continuação, aclara seu real pensamento, indo além das assertivas habituais sobre o tema: “Se a Constituição contém uma fórmula que proclama a igualdade dos indivíduos, mas não precisa que espécies de distinções não devem ser feitas entre estes indivíduos nas leis, tal igualdade constitucionalmente garantida, não mais poderá significar outra coisa que a igualdade perante a lei” (MELLO, 2008, p.15-16)

A atual Constituição Federal brasileira na literalidade do seu artigo 3º, inciso IV, repele da constitucionalidade qualquer forma de discriminação. Mas o que pretendeu o constituinte com isto é estabelecer que a origem, raça, sexo, cor e idade (exemplos próprios do referido dispositivo constitucional; inclui-se “quaisquer outras formas de discriminação”) por si sós e independentemente de outras circunstâncias não podem ser escolhidos como critérios de desigualação. A Constituição elencou expressamente tais critérios (origem, raça, sexo, cor e idade), pois estes se relacionam com fatos discriminatórios que ocorreram no passado. Atentando contra os direitos fundamentais, eram utilizados indiscriminadamente e arbitrariamente como forma de distinção, na maioria das vezes, para punir. “Foram situações de injustiça, que marcaram profundamente o espírito dos Homens, e que, por isso, o constituinte brasileiro pretendeu pôr a salvo os indivíduos para o futuro” (TAVARES, 2007, p. 527).

2.2.2 Como identificar o desrespeito à isonomia

De forma a reforçar que o princípio da igualdade se destina a proibir a arbitrariedade na diferenciação, fala-se em uma fórmula lógico-jurídica do respeito à igualdade. Para verificar se a diferenciação quebra o princípio da isonomia devem ser verificadas três questões:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;

b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. (MELLO, 2008, p. 21)

Ou seja, é preciso verificar se o critério adotado como discriminatório é um possível; assim, indaga-se se há uma correta correlação lógica, uma correta justificativa racional, entre este e o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade; e, finalmente, cumpre analisar se esta diferenciação abstrata possui, de fato, harmonia com os valores prestigiados pela Constituição Federal.

O defeito em qualquer desses requisitos é capaz de gerar hostilidade ao preceito isonômico. “Não basta, pois, reconhecer-se que uma regra de direito é ajustada ao princípio da igualdade no que pertine ao primeiro aspecto. Cumpre que o seja, também, com relação ao segundo e ao terceiro” (MELLO, 2008, p. 22). Em outras palavras, é preciso que os aspectos sejam observados cumulativamente, e a desatenção a um deles já é capaz de tornar a diferenciação inobjetável em face do princípio isonômico.

Quanto ao fator de discriminação, como já mencionado, é preciso verificar se o critério escolhido é um possível. Para isso, existem dois requisitos, quais sejam:

a) a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularize no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime peculiar;

b) o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exista nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes. (MELLO, 2008, p. 24)

O primeiro requisito diz respeito ao objetivo do princípio da igualdade, que é proporcionar garantias individuais e evitar favoritismos. A lei que singularize o destinatário, por impor gravame ou conceder benefícios a um só indivíduo, sem sujeitar ou beneficiar os demais, estará em desacordo com o princípio da igualdade.

Então, se a norma é enunciada em termos que prefiguram situação atual única, logicamente insuscetível de se reproduzir ou materialmente inviável (pelo que singulariza agora e para sempre o destinatário), denuncia-se sua função individualizadora, incorrendo, pois, no vício indigitado. (MELLO, 2008, p. 24)

A inviabilidade de reprodução da hipótese mencionada por Mello pode ser de ordem lógica ou de ordem material.

“Haverá inviabilidade lógica se a norma singularizadora figurar situação atual irreproduzível por força da própria abrangência racional do enunciado” (MELLO, 2008, p. 25). Por exemplo, a lei concede determinado benefício a quem praticou um ato em ano passado, sendo certo e conhecido que somente uma pessoa tenha o praticado.

Haverá inviabilidade apenas material, quando, sem empeço lógico à reprodução da hipótese, haja todavia, no enunciado da lei, descrição de situação cujo particularismo revela uma tão extrema, da improbabilidade de recorrência que valha como denúncia do propósito, fraudulento, de singularização atual absoluta do destinatário. (MELLO, 2008, p. 25)

A exemplificar: uma lei que concede benefícios ao Presidente da República que possua determinadas características específicas (idade, data de nascimento, título universitário, trajetória política), com isso demonstrar-se-ia uma finalidade de singularizar absolutamente o destinatário; viciosa, portanto.

Vale deixar expresso que ainda que a regra, na época de sua edição, possua, na prática, apenas um destinatário, não quer dizer que há a quebra do preceito igualitário. O que deve ser investigado é se a regra deixa possibilidades abertas para sua eventual e futura incidência, ou se, ostensiva ou sub-repticiamente, possui apenas um destinatário; neste último caso haveria quebra ao princípio isonômico. Nesse sentido, primeiramente, “tem-se que a nota diferenciadora não pode ir ao ponto de individualizar um sujeito no presente” (TAVARES, 2007, p. 528), podendo esta individualização dar-se de forma aberta ou velada, sendo sempre repudiada pelo Direito. Quer dizer que à época da edição da diferenciação as situações ou pessoas por ela atingidas devem ser completamente indeterminadas. Com isso, futuramente pode uma única situação ou pessoa ser determinada e atingida sem que haja quebra do princípio, desde que a diferenciação não seja feita especificamente para a atingida. Tavares exemplifica: “será condecorado com as honrarias da República aquele que descobrir a cura da aids".

Em suma: sem agravos à isonomia a lei pode atingir uma categoria de pessoas ou então voltar-se para um só indivíduo, se, em tal caso, visar a um sujeito indeterminado ou indeterminável no presente. Sirva como exemplo desta hipótese o dispositivo que preceituar: “Será concedido o benefício tal ao primeiro que inventar um motor cujo combustível seja a água”. (MELLO, 2008, p. 25)

O segundo requisito (o traço diferencial, necessariamente, deve residir na pessoa, coisa ou situação discriminada) quer dizer que não é possível diferenciar as pessoas, coisas ou situações valendo-se de fator alheio a elas, que não seja extraído delas mesmas. Em outras palavras, é inidôneo para distinguir um fator neutro ao que se pretende distinguir.

É simplesmente ilógico, irracional, buscar em um elemento estranho a uma dada situação, alheio a ela, o fator de sua peculiarização. Se os fatores externos à sua fisionomia são diversos (quais os vários instantes temporais) então, percebe-se, a todas as luzes, que eles é que se distinguem e não as situações propriamente ditas. Ora, o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta. (MELLO, 2008, p. 35)

“O traço diferencial há de encontrar-se na própria pessoa, coisa ou situação discriminada. Não se admite a eleição de um fator externo a quem sofrerá a distinção” (TAVARES, 2007, p. 529). Significa dizer que não é possível discriminar pessoas ou coisas por fator a elas alheio. Fator externo ao que se pretende discriminar a todos é igual. Com exemplo de fator alheio sendo o tempo, tem-se que não é este em si o que gera a diferenciação, mas o que nele ocorreu. A regra que confere estabilidade aos servidores públicos reporta-se ao tempo, mas “na realidade, não é o tempo, em si, mas sim o que nele ocorreu, que justifica a diferenciação. Afinal, o tempo passou para todos de igual forma, mas nem todos serão beneficiados” (TAVARES, 2007, p. 529). O tratamento diferenciado só se justifica em razão de fatos diversos. No caso do tempo, este não é um fato; fato é o que está nele contido.

Valer-se de fatores externos a quem sofrerá a distinção é o mesmo que não diferenciar. Dessa forma, o critério poderá se revestir de inconstitucionalidade, por tratar igualmente situações diferentes.

Outra questão relevante para determinar a invalidade ou a validade de uma regra perante a isonomia é o vínculo de conexão lógica entre os elementos diferenciais escolhidos e a disciplina diferenciada estabelecida em vista deles.

Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada. (MELLO, 2008, p. 38)

Em outras palavras, deve haver uma relação direta entre a desigualdade e a diferença observada, de modo que não é permitido o tratamento diferenciado em função de qualquer diferença que se observe. Caso contrário, todos os tratamentos diferenciados estariam legitimados, já que todos os seres humanos são diferentes.

Com efeito, diante da congruência entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes, há espontâneo e até mesmo inconsciente reconhecimento de validade de uma norma diferenciadora. Em contrapartida, quando não há pertinência entre o fator e o tratamento diferenciado, ocorre imediata e intuitiva rejeição à juridicidade da norma.

Para exemplo, suponha-se que uma norma conceda aos funcionários gordos afastamento remunerado para assistir congressos religiosos e não conceda aos magros. Não faz sentido algum esta concessão somente a uns e exclusão de outros, ou seja, entre uma coisa e outra não há nexo plausível. Entretanto, é tolerável, e não é agride a igualdade, uma norma que estabeleça a tipologia física como critério quando estiver presente a conexão lógica ora tratada; por exemplo, não podem exercer, no serviço militar, funções que reclamem presença imponente os que excederem certo peso em relação à altura.

É possível concluir, portanto, que qualquer elemento radicado na pessoa, coisa ou situação pode ser escolhido, pela lei, para ser o fator de discriminação, porém, inarredavelmente, deve guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta[10]. O princípio da igualdade estabelece que:

A discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia. (MELLO, 2008, p. 29)

Em síntese, não é permitido à lei estabelecer tratamento específico, seja vantajoso ou desvantajoso, à luz de traços e circunstâncias diferenciadoras se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e a disciplina dispensada aos que se inserem na categoria diferenciada. Exige-se que essa desequiparação “faça sentido”, isto é, deve haver entre o fator discriminatório e a disciplina desigual estabelecida uma relação de pertinência. É de tamanha importância esta relação, que de acordo com sua pertinência o mesmo fator pode estar envolvido em uma situação de injustiça (com quebra da isonomia) e em outra situação de justiça (prestigiando a isonomia). Como já dito, o que é vedado é a discriminação gratuita, arbitrária, sem nexo de relação com a nota distintiva escolhida.

Fatores históricos próprios de uma sociedade podem legitimar uma relação diferenciada estabelecida, como por exemplo, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos previstos em lei (artigo 7º, XX, da CF), decorrente da discriminação histórica da mão-de-obra feminina, que hoje se atenuou.

Finalmente, cumpre fazer uma importante observação. A correlação lógica ora em análise nem sempre é absoluta, significa dizer, não é isenta de influência das concepções, ou intelecção das coisas, da época em que é estabelecida.

Basta considerar que em determinado momento histórico parecerá perfeitamente lógico vedar às mulheres o acesso a certas funções públicas, e, em outras épocas, pelo contrário, entender-se-á inexistir motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação. Em um caso terá prevalecido a tese de que a proibição, isto é, a desigualdade de tratamento jurídico se correlaciona juridicamente com as condições do sexo feminino, tidas como inconvenientes com certa atividade ou profissão pública, ao passo que em outra época, a propósito de igual mister, a resposta será inversa. Por consequência, a mesma lei, ora surgirá como ofensiva da isonomia, ora como compatível com o princípio da igualdade. (MELLO, 2008, p. 39-40)

Consoante visto até agora, são quatro os elementos que devem concorrer para que não haja a quebra do princípio da igualdade, são eles:

a) que a desequiparação não individualize, de modo atual e absoluto, odestinatário;

b) que seja utilizado como critério para a desequiparação características ou traços residentes nas próprias coisas diferenciadas;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre o fator diferencial e o tratamento jurídico diferenciado em função deles;

d) que, concretamente, este vínculo de correlação lógica esteja de acordo com os interesses prestigiados pela Constituição.

Deve-se ter em vista, que nenhum direito é absoluto e em decorrência disto é possível relativizar os direitos fundamentais, desde que para isso haja um fator relevante. Diz Sampaio Dória quanto á igualdade e a desigualdade: “a igualdade e a desigualdade são ambas direitos, conforme as hipóteses” (DÓRIA apud TAVARES, 2007, p. 531). Tal afirmativa não deve ser interpretada no sentido de assegurar a inviolabilidade dos direitos de uns em total detrimento de direitos de outros, é preciso cautela.

Como já afirmado, os tratamentos diferenciados podem ser conciliados com os preceitos constitucionais, “é que a igualdade implica tratamento desigual das situações de vida desiguais, na medida de sua desigualação” (TAVARES, 2007, p. 525). Para André Ramos Tavares isto é exigência do princípio da Justiça, atrelados (a justiça e a igualdade) diretamente à dignidade da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III, da CF). A própria Constituição, que proíbe desigualações, às vezes estabelece situações de desigualdades. Em certas situações proíbe “ainda que se trate de situações substancialmente desiguais, e outras nas quais imporá a distinção, em casos que seriam impensáveis para a legislação ordinária implantar por si só” (TAVARES, 2007, p. 532).

O último elemento faz uma restrição: não é possível qualquer diferença que se apresente como logicamente explicável, requer-se, ainda, que esta correlação lógica seja constitucionalmente pertinente. Ou seja, “as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional” (MELLO, 2008, p. 42).

            Nesse sentido, a lei não pode colocar em desvantagem ou em vantagem situações que o sistema constitucional confere conotação positiva. Em outras palavras, para a lisura jurídica da desequiparação, a lei não pode atribuir efeitos valorativos ou depreciativos em desconformidade com os valores trazidos pela Constituição Federal.

Fica sublinhado que não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações sem ofensa à isonomia. Também não é suficiente o poder-se arguir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário. (MELLO, 2008, p. 43)

Tavares possui entendimento similar: o elemento discriminador escolhido como motivo da desequiparação deve ser apto ao alcance de uma finalidade, que, esta, por sua vez, deve ser um objetivo abrangido pelo Direito, explicita ou implicitamente. Com acerto, ele destacou, é necessário, ainda, que os meios utilizados para alcançar a finalidade não sejam extremamente gravosos, isto é, deve haver uma relação de proporcionalidade entre os meios (a desequiparação) e a finalidade por ela (pela desequiparação) perseguida. Vale dizer que o tratamento diferenciado se legitima levando em conta os efeitos decorrentes da sua utilização. Se os efeitos forem extremamente gravosos, o meio não é possível.

Ainda, “não se podem interpretar como desigualdades legalmente certas situações, quando a lei não haja “assumido” o fator tido como desequiparador” (MELLO, 2008, p. 45). Significa dizer, quando ocasionalmente a lei traga fortuitas, acidentais ou sutis distinções entre categorias de pessoas não são de considerar, pois “não tem sentido prestigiar interpretação que favoreça a contradição de um dos mais solenes princípios constitucionais” (MELLO, 2008, p. 45).

A Constituição impõe uma presunção de igualdade genérica e absoluta em favor da lei, portanto a distinção deve ser querida pela lei e, quando não, deve se prezar pela igualdade, uma vez que este é o maior dos princípios garantidores dos direitos individuais.

É preciso que se trate de desequiparação querida, desejada pela lei, ou ao menos, pela conjugação harmônica das leis. Daí, o haver-se afirmado que discriminações que decorram de circunstâncias fortuitas, incidentais, conquanto correlacionadas com o tempo ou a época da norma legal, não autorizam a se pretender que a lei almejou desigualar situações e categorias de indivíduos. E se este intento não foi professado inequivocamente pela lei, embora de modo implícito, é intolerável, injurídica e inconstitucional qualquer desequiparação que se pretenda fazer. (MELLO, 2008, p. 46).

Com a exposição feita até então, pode-se concluir que o princípio da igualdade somente é ofendido quando: a) a norma, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, coisas ou situações, singulariza, atual e definitivamente, seu destinatário; b) a norma nomeia como critério discriminador, com a finalidade de diferenciação de regimes, elemento não residente nos destinatários; c) entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diferenciado adotado não haja correlação lógica; d) ainda que existente a referida correlação lógica, esta não guarde pertinência com os interesses constitucionais prestigiados; e) finalmente, “a interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita” (MELLO, 2008, p. 48).

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