Princípio da igualdade, ações afirmativas e ADPF 186

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05/04/2015 às 17:44
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4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A ADPF 186

Foi ajuizada, em 2009, perante o STF, pelo partido político Democratas (DEM), uma ação questionando o sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília (UnB), programa que reserva 20% das vagas do vestibular para candidatos afrodescendentes.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 proposta pelo partido tinha como escopo obter a declaração de inconstitucionalidade dos atos administrativos do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (Cepe/UnB) que resultaram na utilização do critério racial na seleção de candidatos para ingresso na universidade, alegando, em suma, ofensa aos artigos 1º, III; 3º, IV; 4º VIII; 5º, I, II, XXXIII, XLI, LIV; 37; 205; 206, I; 207; e 208, V da Constituição Federal de 1988, dessa forma ferindo vários princípios e preceitos fundamentais: princípio republicano; dignidade da pessoa humana; vedação ao preconceito de cor e à discriminação; repúdio ao racismo; igualdade; legalidade; direito á informação dos órgãos públicos; combate ao racismo; devido processo legal; princípios da proporcionalidade, impessoalidade, razoabilidade, publicidade e moralidade; direito universal à educação; igualdade nas condições de acesso ao ensino; autonomia universitária; e o princípio meritocrático – acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um.

Entretanto, do julgamento, iniciado no dia 25 e concluído no dia 26 de abril de 2.012, resultou a improcedência da arguição, por unanimidade e nos termos do voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski.

A ADPF mencionada possui um rico conteúdo sobre as ações afirmativas, merecendo, portanto, destaque quando trata-se do tema ações afirmativas. Gerou grande polêmica na sociedade brasileira e foi objeto de análise de vários especialistas[18]. Além disso, do julgamento da ação participaram diversas entidades na condição de amigos da Corte (amici curiae) e foi expresso o entendimento unânime do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro. Por estes motivos segue uma breve exposição do conteúdo da ação.

4.1 Motivos do DEM

Como já mencionado, o autor da arguição foi o partido político DEM. Este requereu a declaração de inconstitucionalidade dos atos administrativos do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (Cepe/UnB) que resultaram na utilização do critério racial na seleção de candidatos para ingresso na universidade.

O partido, na peça inicial da arguição, deixa claro que não questiona a constitucionalidade de ações afirmativas como gênero e política necessária para a inclusão de minorias[19], mas, nos termos da inicial (p. 26 e 28):

se a implementação de um Estado Racializado, ou, em outras palavras se o Racismo Institucionalizado, nos moldes em que praticados nos Estados Unidos, em Ruanda e na África do Sul, será a medida mais adequada, conveniente, exigível e ponderada, no Brasil, para a finalidade à que se propõe: a construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária.

[...]

Discute-se, aqui, tão-somente, acerca da constitucionalidade da implementação, no Brasil, de ações afirmativas baseadas na raça. Em outras palavras: a raça, isoladamente, pode ser considerada no Brasil um critério válido, legítimo, razoável, constitucional, de diferenciação entre o exercício de direitos do cidadão?

Alega, ainda, que nos moldes adotados, a medida decorre de certo deslumbramento precipitado em relação ao modelo adotado pelos Estados Unidos, pois a UnB deixou de considerar as diferenças estruturais relativas à história das relações raciais entre os EUA e o Brasil e que, desta forma, o problema somente é mascarado por uma política simbólica à custo zero.

Defende-se nesta ADPF que, no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro, diferentemente do que aconteceu em outros países, como nos Estados Unidos e na África do Sul. Aqui, a dificuldade de acesso à educação e a posições sociais elevadas decorre, sobretudo, da precária situação econômica, que termina por influir em uma qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele. Infelizmente, no Brasil, os negros são as maiores vítimas do fenômeno da desigualdade social: dados do PNAD/IBGE (2001) demonstram que aproximadamente 70% dos indigentes no Brasil são negros, e, dentre os pobres, a proporção de negros é de 64%. (Petição Inicial da ADPF 186, p. 29)

A advogada do DEM, Roberta Kaufmann, no dia 25[20], reafirmou que adotando-se o sistema de cotas para negros poderá criar-se no Brasil um modelo de Estado racializado. Argumentou que aqui[21] não há critério preciso, objetivo, para definir-se quem é pardo ou moreno e por isso a adoção de leis que criam categorias raciais poderão ser mais desastrosas do que eventuais vantagens que possam gerar. “A imposição de um modelo de Estado racializado traz consequências perversas para a formação da identidade de uma nação. Criam-se identidades paralelas, bipolares, e não um sentimento de cultura nacional”. E defendeu: “Se fizermos uma política de recorte social, a partir de critérios objetivos, como por exemplo renda mínima ou ter estudado em escolas públicas, faremos a integração necessária, sem criarmos os riscos de dividirmos o Brasil racialmente”.

“É uma falácia a ideia de que a cota racial integra aqueles que mais precisam da ajuda estatal”, afirmou Kaufmann embasando-se numa pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes de Ensino, publicada em agosto de 2011, que demonstrou que dez anos de adoção do sistema cotas raciais em universidades não conseguiram ampliar nem em 1% o total de estudantes pobres na academia.

Conforme noticia o portal eletrônico do STF:

A advogada do DEM advertiu que na UnB as cotas são implementadas por meio de “tribunais raciais, de composição secreta”, que definem quem é pardo, moreno ou branco com base em “critérios mágicos, místicos”. Ela relembrou o célebre caso dos gêmeos idênticos (univitelinos) que foram, cada um, considerados de uma raça diferente pela universidade. Um foi enquadrado no sistema de cotas raciais enquanto outro foi considerado branco. “Menos que um fato biológico, a raça é um mito social, e, como tal, tem causado em anos recentes pesados danos em termos de vida e de sofrimento humanos”, informou a advogada ao ler uma declaração da Unesco.

Ela também teceu duras críticas à Secretaria de Igualdade Racial, que classificou como “Secretaria do Racismo Institucionalizado”. Para Roberta Kaufmann, a secretaria pretende dividir o Brasil em diversos segmentos sociais, desde o atendimento em hospitais públicos, passando pelas universidades, pelo mercado de trabalho e pela representação em partidos políticos.

Diante do exposto, pode-se concluir que o partido político Democratas não é contra ações afirmativas, mas tão-somente questiona os moldes da ação adotada pela Cepe/UnB. Ficou claro que não concorda com a cota para afrodescendentes, pois não há no Brasil critérios objetivos para definir quem serão os beneficiados e, além disso, alega que a universidade vale-se de uma comissão composta arbitrariamente, que também não possui critérios precisos, para a implementação da medida.

4.2 Amici curiae

Participaram do julgamento, por meio de seus representantes, sete entidades, na condição de amici curiae (amigo da Corte), manifestando-se contra a ação proposta pelo DEM, ou seja, a favor da ação afirmativa adotada pela UnB[22]. O principal fundamento das sustentações foi no sentido de que a política de cotas raciais garante uma reparação histórica aos negros[23], mas outros pontos também merecem ser mencionados.

Afirmou o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, que antes de o sistema de cotas ser implementado "as universidades brasileiras estavam reservadas para a classe econômica mais abastada”; e com a política de reserva de cotas, “hoje, as universidades brasileiras privilegiam também a questão social, econômica”.

Por sua vez, o defensor público-geral federal, Haman Córdova, entendendo pela constitucionalidade do sistema de cotas raciais em questão, afirmou que os preceitos constitucionais fundamentais que, de acordo com o partido político, estariam sendo violados, na realidade, “dão sustentáculo para que a política seja utilizada em universidades públicas”. Argumentou, também, que a maioria da população brasileira é composta por afrodescendentes, mas esta não teria um acesso justo ao mercado de trabalho, pois “temos hoje um salário médio, de acordo com o IBGE, de R$ 1.850,00 para a raça branca, e de R$ 850,00 para a raça dos afrodescendentes”.

Manifestou-se pela Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos o advogado Hédio Silva Júnior. Para ele, no Brasil de antes da existência das cotas raciais imperava o racismo cordial: “Negros entravam nas universidades para ser vigilantes, cozinheiros, bedéis, serviçais, o Brasil era feliz, tudo ia bem, tudo funcionava bem” – ironizou. E, ao rebater o argumento de que o sistema de cotas raciais para negros criará um país racializado, acrescentou: “Agora, com o debate das ações afirmativas, o Brasil não vai bem. Agora a genética olha para o cantor Neguinho da Beija Flor e conclui que ele é eurodescendente”.

O advogado Humberto Adami, representante do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), foi o quarto a falar. Segundo ele, o modelo adotado promove a justa inclusão dos afrodescendentes, uma vez que a escravidão deixou resquícios que permanecem até hoje. Destacou que na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) a experiência de cotas para negros existe há 12 anos, e se provou acertada.

Silvia Cerqueira, advogada que representou o Movimento Negro Unificado (MNU), afirmou: “Todas as pesquisas demonstram através de números a desigualdade a que estão submetidos os negros (no Brasil)” e com o sistema de cotas é possível, juridicamente, à luz da Constituição, “mitigar os efeitos dessa discriminação”. Destacou, também, os bons resultados constatados obtidos por todos os alunos cotistas que saíram da universidade.

Thiago Bottino, representante do Educafro (Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes), ressaltou que existe uma grande diferença entre ações afirmativas implementadas por meio de cotas sociais ou cotas raciais: “São ações afirmativas que geram resultados distintos. O fato é que 300 anos de escravidão fizeram com que jovens negros não pudessem aspirar ao exercício de papéis sociais relevantes”. Bottino classificou como “argumento terrorista” a afirmação de que as cotas raciais vão despertar o ódio racial no Brasil e advertiu: “Dez anos de ações afirmativas nesse país mostraram que não houve nenhum incidente decorrente da aplicação desse mecanismo”.

O último amici curiae a falar foi o representante da Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (Anaad), o advogado Márcio Thomaz Bastos. Disse estar orgulhoso e alegre de ver o STF cumprir sua função de zelar pela Constituição quando permitiu a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, permitiu a união homoafetiva, manteve a pesquisa com células-tronco e julgou correta a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol. “Hoje vivemos um momento histórico. O momento de trazer o negro para viver sob esse amparo” – completou. Para ele, “as ações afirmativas de cotas, existente há mais de 10 anos, melhoram a cor dos álbuns de formatura no Brasil, que deixam de ser exclusivamente brancos e passam a ser mesclados”. E concluiu: “Ao contrário das proposições abstratas (dos que são contra as cotas), temos para mostrar a história de 300 anos de escravatura como um peso que amarrou essas pessoas”.

4.3 Advocacia-Geral da União

O advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, defendeu, no julgamento da arguição, a adoção de cotas raciais pela UnB. Adams articulou que o Brasil sempre firmou convenções internacionais contra a discriminação, como a Convenção Internacional contra Todas as Formas de Discriminação, mas não vinha pondo em prática uma política de igualdade em seu próprio território.

Contradizendo a advogada do DEM que se pronunciou em plenário, Roberta Kaufmann, o Advogado-geral da União ressaltou que a cota adotada pela UnB pretende acabar com uma discriminação cultural impregnada em toda a sociedade brasileira, e não com uma discriminação biológica.

Adams fez uma comparação entre a situação brasileira e a que existe, atualmente, nos Estados Unidos, onde a discriminação não é mais contra o negro, mas contra os hispânicos que migraram para o país, sobretudo oriundos do México e de países centro-americanos, que se situam na parte inferior da escala social. Ou seja, é uma discriminação cultural, que, segundo ele, foi preciso adotar uma política afirmativa para retirar o país desta situação de discriminação. No Brasil, disse Adams, uma medida no sentido de acabar com esta forma de discriminação foi a criação da Secretaria da Igualdade Racial que, conforme afirmou em contraposição à Kaufmann, não é uma secretaria do racismo, mas um órgão destinado à integração de todas as raças, reconhecendo e valorizando, porém, as suas diferenças e identidades culturais.

Em sua sustentação citou medidas afirmativas adotadas no Brasil, dentre elas as promulgações das leis 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial); e 10.558/2002, que criou o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com o fim de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, em especial dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.

Para dimensionar a desigualdade existente no Brasil, de acordo com notícia disponibilizada no endereço eletrônico do STF:

Luís Inácio Adams citou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo os quais 50% da população brasileira são constituídos de negros e pardos, mas que dos 10% mais pobres da população do país, 11,5 milhões são negros ou pardos e apenas quatro milhões, brancos. Ou seja, para cada 2,7 negros ou pardos, apenas um branco está nessa faixa da miséria.

Já na faixa dos 10% mais ricos, ainda conforme os dados por ele citados, 8% são pardos e apenas 1% é constituído de negros, ao passo que 88,4% dessa faixa é constituída de brancos. Assim, segundo Adams, “a realidade social reproduz a discriminação”. E não é uma discriminação institucionalizada, mas cultural. O país tem, segundo ele, “uma aparente democracia racial”.

O advogado mencionou que um mil estudantes negros admitidos pelo sistema de cotas já se formaram, dentro de um total de três mil até então admitidos e que os alunos cotistas atingiram praticamente o mesmo nível de excelência e qualidade dos demais.

Finalizando sua explanação, Adams pediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse a improcedência da ADPF ajuizada pelo DEM e confirmasse a política afirmativa de integração de estudantes negros, adotada pela UnB.

4.4 Procuradoria-Geral da República

A Procuradoria-geral da República, através da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, pela improcedência da ação. Duprat defendeu as ações afirmativas como consequentes do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição da República.

A vice-procuradora-geral lembrou que a CF/88 trata expressamente de ações afirmativas em relação a dois grupos minoritários: as mulheres e os deficientes, no mercado de trabalho. “É preciso analisar com o coração aberto por que as ações afirmativas de recorte racial provocam tanto desassossego”, propôs-se, então, em sua manifestação, destruir convicções que, “de tão reiteradas, ficaram naturalizadas”.

Dentre as convicções a que se propôs desconstruir está a da miscigenação como um processo natural: “Ela decorre de uma engenharia social do período colonial escravocrata como estratégia de povoamento e de força de trabalho escravo”. Destacou, também, o aspecto da violência contra a mulher negra.

Questionou também o mito da democracia racial no Brasil. Afirmou que a abolição não significou a “transformação da coisa em sujeito” nem assegurou garantias mínimas de dignidade aos negros libertos ou o acesso a terra e isto, segundo ela, se projeta na sociedade atual. “Não precisamos de dados estatísticos, basta um olhar na composição dos cargos do alto escalão do Estado brasileiro ou nas grandes corporações e, na contrapartida, olhar para a população carcerária desse país, e para quem é parado pela polícia nas cidades brasileiras”.

Desconstruiu também a convicção de inexistência de raças. Para isso, citou o preâmbulo da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas, de 1968, ratificada pelo Brasil, lembrando que este e vários outros documentos internacionais declaram que os seres humanos pertencem a uma mesma espécie, mas “apenas para impedir doutrinas de superioridade racial”. Ressaltou que a própria convenção admite o uso das ações afirmativas. Conquanto cientificamente não mais se reconheçam subdivisões da raça humana, “o racismo persiste enquanto fenômeno social”, consequência de concepções históricas, políticas e sociais[24].

Segundo consta de notícia publicada no site do STF:

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O argumento econômico, segundo o qual a diminuição da desigualdade econômica resolveria o problema racial, foi classificado por Duprat como “um reducionismo inaceitável” do ser humano ao aspecto econômico. “Ninguém fala nas cotas para mulheres ou portadores de deficiência sob esse caráter social”, destacou. “Por que não só mulheres e deficientes pobres? Por que essa questão é invocada apenas quando se trata de cotas raciais?”, questionou, lembrando que a finalidade das cotas é garantir a diversidade nas universidades, e não resolver um problema meramente social.

A vice-procuradora-geral concluiu sua manifestação tratando da tese da meritocracia (artigo 208, V, da Constituição). Para Duprat é preciso que o dispositivo constitucional seja devidamente interpretado e não somente sob o ponto de vista acadêmico: “A maioria das universidades tem vários critérios para a admissão de alunos, de modo a valorizar determinados conjuntos de qualidades”; “É isso que vai determinar os méritos relevantes para a admissão”. Nesse sentido, esse aspecto que será considerado do ponto de vista do mérito, quando a universidade eleger como missão promover a diversidade. “A Constituição não prega o mérito acadêmico como o único critério”.

4.5 Votos dos ministros

Como dito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou improcedente a ação proposta pelo DEM (ADPF 186), considerando, deste modo, constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília. Os ministros seguiram o voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski. A seguir, uma síntese das manifestações dos ministros.

4.5.1 Ministro Ricardo Lewandovski

Com um minucioso e extenso relatório, que, de acordo com o ministro Joaquim Barbosa, “esgotou o assunto e está em sintonia com o que há de mais moderno a respeito das políticas de ações afirmativas”, o ministro relator Ricardo Lewandovski expôs seu voto. Posicionou-se a favor do modelo de cota adotado pela UnB.

Inicialmente, o ministro assentou o cabimento da ação[25], uma vez que não há outro meio hábil de sanar a lesividade apontada pelo partito político DEM.

Destacou a questão fundamental que seria analisada: “saber se os programas de ação afirmativa que estabelecem um sistema de reserva de vagas, com base em critério étnico-racial, para acesso ao ensino superior, estão ou não em consonância com a Constituição Federal”.

Em seguida, fez considerações sobre a igualdade formal e a material. Em suma, sobre igualdade formal:

De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão o legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre aqueles que se encontram sob seu abrigo.

E sobre igualdade material, também em síntese:

É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito – não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei.

À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos sociais.

E concluiu:

O Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.

Para Lewandovski, “a adoção de tais políticas, que levam à superação de uma perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o próprio cerne do conceito de democracia”.

Ressaltou que o único modo de transformar o direito à isonomia em igualdade de possibilidades, sobretudo no tocante a uma participação equitativa nos bens sociais, é aplicar a justiça distributiva[26]:

Só ela permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo.

Juntamente com o Procurador-geral da República[27], o ministro entende que o modelo constitucional brasileiro não se mostrou alheio ao princípio da justiça distributiva ou compensatória, pois “incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.

Vale destacar que na avaliação do ministro:

No que interessa ao presente debate, a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si. Mas, convém registrar, ao levar em conta a inelutável realidade da estratificação social, não se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos. Ela consiste em uma técnica de distribuição de justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade.

Interessante um conceito de ação afirmativa dos quais se valeu: “um programa público ou privado que considera aquelas características as quais vêm sendo usadas para negar [aos excluídos] tratamento igual”[28].

Não deixou de avultar que as medidas devem ter caráter transitório, ou seja, elas devem ser extintas após atingirem seus objetivos.

Trouxe uma informação atraente, de cunho internacional:

Dentre as diversas modalidades de ações afirmativas, de caráter transitório, empregadas nos distintos países destacam-se: (i) a consideração do critério de raça, gênero ou outro aspecto que caracteriza certo grupo minoritário para promover a sua integração social; (ii) o afastamento de requisitos de antiguidade para a permanência ou promoção de membros de categorias socialmente dominantes em determinados ambientes profissionais; (iii) a definição de distritos eleitorais para o fortalecimento minorias; e (iv) o estabelecimento de cotas ou a reserva de vagas para integrantes de setores marginalizados.

Ponderou que a política adotada pela universidade tem o objetivo de sobrepujar deformidades sociais historicamente consolidadas e estabelecer um espaço acadêmico plural e diversificado. Para o relator, os meios empregados e os fins acossados pela UnB possuem proporcionalidade e razoabilidade. Destacou, ainda, que a política é transitória e prevê a revisão periódica do seu resultado. Sobre o método de seleção de candidatos[29], Lewandovski os considerou “eficazes e compatíveis” com o princípio da dignidade humana. Nas palavras do ministro:

No caso da Universidade de Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros e de “um pequeno número” delas para “índios de todos os Estados brasileiros”, pelo prazo de 10 anos, constitui providência adequada e proporcional ao atingimento dos mencionados desideratos. Dito de outro modo, a política de ação afirmativa adotada pela UnB não se mostra desproporcional ou irrazoável, afigurando-se, também sob esse ângulo, compatível com os valores e princípios da Constituição.

Para Lewandovski critérios objetivos de seleção de candidatos, empregados de forma linear em sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades interpessoais profundas, como acontece no Brasil, acabam por consolidar ou, até mesmo, acirrar as distorções existentes.

Entende o ministro sobre os artigos 205 e 207 da Constituição, que preconizam, respectivamente, a promoção e o incentivo da educação pela sociedade, buscando pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, e a autonomia didático-científica e administrativa, fazendo-as repousar, ainda, sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão:

Pretendeu o legislador constituinte assentar que o escopo das instituições de ensino vai muito além da mera transmissão e produção do conhecimento em benefício de alguns poucos que logram transpor os seus umbrais, por partirem de pontos de largada social ou economicamente privilegiados.

Assim, diante da realidade brasileira, onde, de acordo com o MEC, o número de negros com diplomas universitários se limita a 2%, ao ministro parece “ser essencial calibrar os critérios de seleção à universidade para que se possa dar concreção aos objetivos maiores colimados na Constituição”. Conclui: para a concretização da justiça social, “cuida-se, em especial no âmbito das universidades estatais, de utilizar critérios de seleção que considerem uma distribuição mais equitativa dos recursos públicos” e não simplesmente o critério do mérito aferido pela prova vestibular atual, que beneficia os alunos de escolas particulares (na grande maioria, brancos) em detrimento dos alunos de escolas públicas (que possuem a maioria dos estudantes negros).

Sobre a adoção do critério étinico-racial, mencionou que cumpre afastar o conceito biológico de raça para enfrentar a discussão posta pelo partido político, porque se trata de um conceito histórico-cultural, artificialmente arquitetado, para justificar a discriminação ou, até mesmo, a dominação sobre certos grupos sociais, “maliciosamente reputados como inferiores”.

Tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível empregar essa mesma lógica para autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos.

Na avaliação da alegação do argumento de que o mais justo seria a utilização do critério econômico, ensinou:

Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.

Esse modo de pensar revela a insuficiência da utilização exclusiva do critério social ou de baixa renda para promover a integração social de grupos excluídos mediante ações afirmativas, demonstrando a necessidade de incorporar-se nelas considerações de ordem étnica e racial.

A convivência com a discriminação histórica de negros e pardos gera neles “a perturbação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social”. Nesse sentido, mencionou outra função das ações afirmativas:

Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.

O papel das universidades no Brasil não é apenas formar profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas “representam também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos públicos e privados do País”. Com isso, pode-se afirmar que os beneficiados pelas políticas de ação afirmativa não são só os estudantes que por ela ingressaram na faculdade, mas todo o meio acadêmico, que terá a oportunidade de conviver com o outro, e toda a sociedade, pois os que hoje são discriminados têm um enorme potencial para contribuir para o avanço dela.

É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo globalizado em que vivemos.

Prestes a finalizar seu voto, o ministro mencionou decisões da Suprema Corte norte-americana que estabeleceram, nos EUA, a possibilidade de considerar a raça como um elemento da política de admissão para as instituições de ensino superior, explanando, assim, a visão internacional sobre as ações afirmativas como medidas paliativas.

Citou, outrossim, em diversas partes do voto, o entendimento de ministros do STF e o posicionamento desta Corte em decisões que guardam relação com a questão em pauta, demonstrando que seu voto, coerentemente, os segue, julgando, com acerto, improcedente a arguição.

4.5.2 Ministro Luiz Fux

O segundo ministro a pronunciar seu voto foi Luiz Fux. Este fundamentou seu voto no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal. O referido dispositivo estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que, ao seu entende, impõe ao Estado brasileiro uma reparação de danos pretéritos do país em relação aos negros. Ademais, considerou que a criação de cotas raciais dá cumprimento ao artigo 208, inciso V, da CF, no qual situa o dever do Estado com a educação: será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.

Fux apoiou o argumento de que não satisfazia simplesmente abolir a escravatura e deixar o negro sujeito a sua própria sorte. Entende que era necessário a realização de ações afirmativas para possibilitar ao negro igualdade material em relação à população branca (tratar desigualmente os desiguais; e neste princípio, de acordo com ele, ações afirmativas se encaixam).

Baseou-se, também, em julgamentos da Suprema Corte norte-americana que consideraram constitucionais as ações afirmativas em benefício dos afrodescendentes, como cotas em estabelecimentos de ensino. Uma discriminação benigna, que favoreça o negro, para a Supreme Court, é constitucional. Mencionou que o Brasil vem, continuamente, criando leis para a institucionalização da discriminação benigna[30].

“Justiça não é algo que se aprende, é algo que se sente”, disse o ministro, citando uma afirmação que ouviu do ministro presidente da Corte, Carlos Ayres Britto. Para Fux, julgar também implica em ouvir o que a população sente: “Prefiro a leitura pela alma humana”.

Por fim, lembrou que o Supremo Tribunal Federal tem adotado a postura de não defender esta ou aquela raça, mas a raça humana.

4.5.3 Ministra Rosa Weber

A ministra Rosa Weber rejeitou todos os argumentos apresentados na arguição pelo partido DEM, porém deixou claro que respeita as opiniões divergentes: “Com todo o respeito, do fundo minha alma, pelas compreensões em contrário, entendo que os princípios constitucionais apontados como violados (no pedido do DEM) são justamente os postulados que levam à total improcedência da ação”.

Segundo a ministra, diante da grande diferença entre quantidade de pobres brancos e negros, não é plausível afirmar que o fator cor é desimportante[31] e  rebateu o argumento de que o adequado seria as cotas adotarem o fator econômico e não o racial: “enquanto as chances dos mais diversos grupos sociais brasileiros, evidenciadas pelas estatísticas, não forem minimamente equilibradas, a mim não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico“.

Weber explicou o significado de igualdade formal[32], entretanto destacou que, por ser presumida, desconsidera os processos sociais concretos de formação de desigualdades e defendeu que cabe ao Estado “adentrar no mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico”[33]. Para ela, “a desigualdade material que justifica a presença do Estado nas relações sociais só se legitima quando identificada concretamente, impedindo que determinado grupo ou parcela da sociedade tenha as mesmas chances de acesso a oportunidades sociais” e é exatamente neste contexto que entram as ações afirmativas, abarcando o sistema de cotas raciais.

Destacou o acerto das universidades em tomarem o cuidado de estimar prazos de duração para as ações afirmativas que adotarem, pois “quando houver o equilíbrio da representação social nas diversas camadas sociais, o sistema (de cotas) não mais se justificará, não mais será necessário”. “Quando o negro se tornar visível nas esferas mais almejadas das sociedades, política compensatória alguma será necessária”.

No entender da ministra, igualdade e liberdade “andam de mãos dadas” e:

Sem igualdade mínima de oportunidade, não há igualdade de liberdade. As possibilidades de ação, de escolhas de vida, de visões de mundo, de chances econômicas, de manifestações individuais ou coletivas específicas são muito mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade, não têm consideradas as suas condições particulares.

Concluiu: “às vezes se impõe tratamentos desiguais em determinadas questões sociais ou econômicas para que o resto do sistema possa presumir que todos somos iguais nas demais esferas da sociedade”.

4.5.4 Ministra Carmem Lucia

Na avaliação da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, a conjuntura dos negros no Brasil não pode ser ignorada e afirmou: “Tantas vezes decantada, a igualdade é o princípio mais citado na Constituição Federal. Quem sofre preconceito percebe que os princípios constitucionais viram retórica”.

Para a ministra, a Constituição de 1988 reforçou o princípio da igualdade, que é estático, com o processo dinâmico da igualação.

Demonstrou sua opinião em relação às ações afirmativas: “As ações afirmativas não são a melhor opção, mas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres”. Ressaltou que outras medidas para não avigorar o preconceito devem escoltar as políticas compensatórias. Enfatizou, ainda, que a responsabilidade estatal e social de cumprir o princípio da igualdade pede ações afirmativas.

Concluindo, a ministra entendeu pela constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela UnB, pois a proporcionalidade e a função social da universidade foram observadas.

4.5.5 Ministro Joaquim Barbosa

Por sua vez, o ministro Joaquim Barbosa, concordando com o relator, afirmou que o voto deste “esgotou o assunto e está em sintonia com o que há de mais moderno a respeito das políticas de ações afirmativas”. Nesse sentido, salientou:

Não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de Nação que tenha se erguido de uma condição periférica à condição de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo, no plano doméstico, uma política de exclusão, aberta ou dissimulada – pouco importa! Legal ou meramente estrutural ou histórica, pouco importa! –, em relação a uma parcela expressiva da sua população.

O ministro, que é autor de vários artigos sobre o tema, além de declarações pontuais sobre o que entendeu essencial, citou parte de um texto[34] que escreveu há mais de 10 anos.

Acho que a discriminação, como componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se de uma roupagem competitiva. O que está em jogo aqui é, em certa medida, competição: é o espectro competitivo que germina em todas as sociedades. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre o discriminador e o discriminado.

Para o ministro, é disso que resulta a contraposição de interesses: uns em prol da concretização da igualdade, outros em prol da manutenção do status quo.

É natural, portanto, que as ações afirmativas – mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar essa dinâmica perversa –, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários”, enfatizou.

Barbosa caracterizou as ações afirmativas como políticas públicas voltadas à efetivação do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos cruéis da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Pelas ações afirmativas, “a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade”.

Finalmente, observou que a implementação de ações afirmativas não são exclusivas do Poder Executivo ou Legislativo, também podem ser adotadas por iniciativa particular e, em casos extremos, inclusive pelo Poder Judiciário:

Há, no Direito Comparado, vários casos de medidas de ações afirmativas desenhadas pelo Poder Judiciário em casos em que a discriminação é tão flagrante e a exclusão é tão absoluta, que o Judiciário não teve outra alternativa senão, ele próprio, determinar e desenhar medidas de ação afirmativa, como ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, especialmente em alguns estados do sul.

4.5.6 Ministro Cezar Peluso

Para o ministro Cezar Peluso, a o ponto central da discussão, era se as cotas raciais, como ações afirmativas, ofenderiam o princípio constitucional da igualdade. Nesta análise, entende o ministro, o princípio assume feição própria, tanto pelo aspecto formal quanto pelo material, de acordo com a realidade sobre a qual incida. Por isso faz-se mister “aceitar que o princípio implica a necessidade jurídica não apenas da interpretação, mas também de produção normativa da equiparação de situações que não podem ser desequiparadas sem uma razão lógico-jurídica suficiente”.

Conforme pondera o ministro: “é fato histórico incontroverso o déficit educacional e cultural dos negros, desde os primórdios da vida brasileira, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso dos negros às fontes da educação e da cultura”, logo:

O acesso à educação tem que ser visto como meio indispensável de acesso ou, pelo menos, da possibilidade de acesso mais efetivo aos frutos de desenvolvimento socioeconômico e, portanto, de uma condição sociocultural que corresponda ao grande ideal da dignidade da pessoa humana e do projeto de vida de cada um.

Na avaliação de Peluso, diante desta situação existe “um dever, que não é apenas ético, mas também jurídico, da sociedade e do Estado perante tamanha desigualdade, à luz dos objetivos fundamentais da Constituição e da República, por conta do artigo 3º da Constituição Federal”[35], ou seja, ainda com suas palavras:

Há a responsabilidade ético-jurídica da sociedade e do Estado em adotar políticas públicas que respondam a esse déficit histórico, na tentativa de superar, ao longo do tempo, essa desigualdade material e desfazer essa injustiça histórica de que os negros são vítimas ao longo dos anos.

Lembrou que a própria Constituição concede tratamento diferenciado (e, com base nela, a legislação infraconstitucional também o faz) de acordo com o princípio da igualdade, como por exemplo, em situação de desigualdade socioeconômica tutela mulheres, menores, e hipossuficientes. Citou a Lei Maria da Penha para demonstrar “como é legitimado, do ponto de vista constitucional, esse olhar de proteção constitucional a certas situações de vulnerabilidade”.

No entendimento do ministro, “mesmo que as universidades públicas fossem pagas, não ofenderia a Constituição se a lei tivesse reservado uma cota de 20 por cento a alunos hipossuficientes”.

Antes de concluir seu voto, Peluso objetou algumas alegações contra as cotas raciais.

Quanto ao argumento de que elas seriam discriminatórias: este desconhece as discriminações positivas que a própria Constituição faz, no amparo desses grupos, classes e comunidades vulneráveis do ponto de vista sociopolítico.

Sobre a alegação de que o mérito pessoal deve ser considerado: esta ignora os obstáculos historicamente opostos aos empenhos dos grupos marginalizados, pois sua superação não depende das vítimas da marginalização, mas depende de terceiros.

“A meu ver, a política pública afirmativa volta-se para o futuro, independe de intuitos compensatórios, reparatórios, de cunho indenizatório, simplesmente pela impossibilidade, não apenas jurídica, de responsabilizar os atuais por atos dos antepassados” – em contestação ao argumento de que as cotas raciais seriam compensatórias pelo passado e afrontariam o princípio da igualdade. “Essas políticas públicas são voltadas para o futuro. Não compensam. Estão atuando sobre a realidade de uma injustiça hic et nunc[36]

Também não concordou com o entendimento de que as cotas raciais são um incentivo ao racismo: “não há elemento empírico para sustentar essa tese. A experiência é que não tem ocorrido, e se tem, foi em escala irrelevante que não merece consideração”.

“Esquece que o que são e fazem depende das oportunidades e das experiências que tiveram para se constituir como pessoas” – opôs ao argumento de que as pessoas devem ser avaliadas pelo que fazem e pelo que são.

4.5.7 Ministro Gilmar Mendes

Sétimo ministro a votar, Gilmar Mendes também se posicionou pela improcedência da ADPF 186, mas fez resalvas no sentido de que, por se tratar de um programa pioneiro nas universidades federais, ele está sujeito à questionamentos e aperfeiçoamento: “o modelo da UnB, nas universidades públicas federais, tem a virtude e, obviamente, os eventuais defeitos de um modelo pioneiro, feito sem paradigmas anteriores”.

O ministro entende que ação afirmativa é uma forma de aplicação do princípio da igualdade. Destacou que em muitos casos este princípio exige uma atuação do Poder Público para realizar efetivamente a equiparação de grupos que se encontram em situações vulneráveis. E assinalou: “A própria Constituição preconiza medidas de assistência social como política de compensação”.

O critério exclusivamente racial – principal questão –, diferentemente de outros programas que adotam também critérios socioeconômicos, para Mendes “resvalou para uma situação que é objeto de crítica e até de caricatura”: a seleção fica a critério de uma espécie de “tribunal racial”. Os defeitos são conhecidos, como no caso dos irmãos gêmeos univitelinos em que um foi considerado negro e o outro não – exemplificou.

Para o ministro, o baixo número de negros nas universidades é consequência de um processo histórico, resultado de um modelo escravocrata de desenvolvimento, somado à baixa qualidade das escolas públicas e à “dificuldade quase lotérica” de ingresso às universidades por meio do vestibular. Neste ponto, destacou a possibilidade da ocorrência de situações indesejáveis: este modelo de cota pode permitir que os negros de boa condição socioeconômica e de estudo dele se beneficiem. O ministro, que defende a adoção de critérios objetivos, como o de índole socioeconômica, assinalou que este fundamento poderia levá-lo a posicionar-se pela procedência da arguição, mas reconheceu que “que esse é um modelo que está sendo experimentado, cujas distorções vão se revelando no seu fazimento”. “E não se pode negar a importância de ações que levem a combater essa crônica desigualdade” presente no país.

4.5.8 Ministro Marco Aurélio

“A meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”, disse o ministro Marco Aurélio coerentemente com seu entender de que as ações afirmativas devem ser utilizadas para a correção de desigualdades. Contudo, advertiu que o sistema de cotas deve ser extinto logo que essas diferenças sejam eliminadas, “mas estamos longe disso”.

Segundo o ministro, “a prática das ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras é uma possibilidade latente nos princípios e regras constitucionais aplicáveis à matéria” e a supremacia da Constituição[37] e o princípio da autonomia universitária[38] autorizam sua implementação, ainda que por deliberação administrativa.

Contradizendo a afirmação do DEM, Marco Aurélio destacou que a adoção ações afirmativas desse molde não resultariam em um Estado racializado, citando como exemplo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) que vale-se de cotas em favor dos negros e outras minorias: “ao menos até agora essa não foi uma consequência advinda da mencionada política. São mais de 10 anos de práticas sem registro de qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial no Brasil que possa ser associado a tais medidas.”

O ministro afirmou que a atual Constituição Federal ultrapassa a igualização estática, que somente proíbe a discriminação (meramente negativa). A CF de 1988 almeja uma igualização eficaz, dinâmica. “Não basta não discriminar. É preciso viabilizar, e a Carta da República oferece base para fazê-lo, as mesmas oportunidades”.

Finalizando seu voto defendendo a correção das desigualdades: “Façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal”.

4.5.9 Ministro Celso de Mello

Para o ministro Celso de Mello, o sistema adotado pela UnB está de acordo com a Constituição Federal e com os tratados internacionais referentes à defesa dos direitos humanos.

Na sua avaliação, o modelo implementado pela universidade é um mecanismo compensatório que se destina a concretizar o direito da igualdade. “O desafio não é apenas a mera proclamação formal de reconhecer o compromisso em matéria dos direitos básicos da pessoa humana, mas a efetivação concreta no plano das realizações materiais dos encargos assumidos”.

Mencionou a temporariedade das ações afirmativas ao lembrar que os resultados serão reavaliados em dez anos: “As políticas públicas têm na prática das ações afirmativas um poderoso e legítimo instrumento impregnado de eficácia necessariamente temporária, já que elas não deverão ter a finalidade de manter direitos desiguais depois de alcançados os objetivos”.

Mello salientou que as universidades não deveriam limitar-se ao sistema de cotas: “As políticas públicas podem se valer de outros meios, mas temos que considerar a autonomia universitária, garantida pela Constituição Federal”.

O ministro acentuou que o assunto possui dimensão moral:

O racismo representa grave questão de índole moral que se defronta qualquer sociedade, refletindo uma distorcida visão do mundo de quem busca construir hierarquias artificialmente fundadas em suposta hegemonia de um certo grupo étnico-racial sobre os demais.

Apresentou uma contradição dentro de uma sociedade que tolera práticas discriminatórias e qualifica-se como social e democrática, pois frustrar e aniquilar a condição de cidadão da pessoa que sofre exclusão estigmatizante propiciada pela discriminação e ofender valores essenciais da pessoa humana e da igualdade:

Representa a própria antítese dos objetivos fundamentais da República, dentre os quais figuram aqueles que visam a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, inteiramente comprometida com a redução das desigualdades sociais.

Em apontamento presente no endereço eletrônico do STF, o ministro, no voto, apontou a dimensão do racismo quanto à violação de direitos:

A Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2001, na cidade de Durban (África do Sul), reconheceu que o racismo representa uma grave violação de todos os direitos humanos e um injusto obstáculo ao gozo pleno dos direitos e prerrogativas das pessoas, além de significar uma injusta negação do dogma de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e notícia direitos.

Por fim, o ministro destacou que a repulsa ao racismo, no Brasil, se tornou expressa com a Constituição de 1988 e também com a subscrição de tratados internacionais neste sentido.

4.5.10 Ministro Ayres Britto

O julgamento foi encerrado com o voto do ministro presidente Ayres Britto. Este seguiu integralmente o voto do relator e ratificou a validade das ações afirmativas: “As políticas públicas de justiça compensatória, restaurativas, afirmativas ou reparadoras de desvantagens históricas são um instituto jurídico constitucional”.

É notícia do Supremo Tribunal Federal que o voto de Britto:

Enfatizou a distinção entre cotas sociais e cotas raciais, a partir do preâmbulo da Constituição da República – que fala em assegurar o bem estar e na promoção de uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos”.  Para o presidente do STF, o “bem estar” tem caráter material e se refere à distribuição de riquezas, enquanto a fraternidade, a pluralidade e a ausência de preconceitos vão além da questão material. A inclusão de tais expressões no texto constitucional partiu, segundo o ministro, da verificação empírica de “um estado genérico e persistente de desigualdades sociais e raciais”.

[...]

A diferença entre as políticas afirmativas sociais e raciais se explicita, segundo Ayres Britto, quando se constatam “desigualdades dentro das desigualdades”, ou seja, quando uma desigualdade – a econômica, por exemplo – potencializa outra – como a de cor. Daí a necessidade de políticas públicas diferenciadas que reforcem outras políticas públicas e permitam às pessoas transitar em todos os espaços sociais – “escola, família, empresa, igreja, repartição pública e, por desdobramento, condomínio, clube, sindicato, partido, shopping centers” – em igualdade de condições, com o mesmo respeito e desembaraço

O ministro também mencionou o caráter histórico do preconceito racial, porém afastou a ideia de que a nação está pagando pelo erro de seus ancestrais. “A nação é uma só, multigeracional”; “O que fez uma geração pode ser revisto pelas gerações seguintes”.

Para Britto, já se posiciona vantajosamente na escala social quem não sofre preconceito, e internaliza a desigualdade quem a sofre.

“O preâmbulo da Constituição é um sonoro ‘não’ ao preconceito, que desestabiliza temerariamente a sociedade e impede que vivamos em comunhão, em comunidade”. Porém destacou que a CF não se limitou em proibir o preconceito ao mencionar que são objetivos fundamentais do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e a promoção do bem de todos sem preconceitos[39], e que o artigo 23, X, da Lei Maior brasileira atribui aos entes da Federação o combate das causas da pobreza e dos fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

Britto encerrou seu voto afirmando que a Constituição validou todas as políticas públicas destinadas a impulsionar as esferas sociais histórica e culturalmente desfavorecidas. “São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”.

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora do Curso de Direito, Centro Universitário de Bauru, Mantido pela Instituição Toledo de Ensino, para a obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof... .

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