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Quem deve ser o guardião da Constituição?

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23/08/2015 às 15:33
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Apesar de a doutrina de Carl Schmitt ter se estabelecido na Alemanha, em um primeiro momento, após a Segunda Guerra Mundial, foi o pensamento de Hans Kelsen que se expandiu para o mundo.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar as divergências doutrinárias sobre qual órgão deve deter o poder de ser o guardião da constituição do Estado. Para alcançar a sua finalidade, primeiro, analisa os argumentos que implantaram a Suprema Corte como a guardiã da Constituição de 1787, nos Estados Unidos da América, bem como a supremacia do Parlamento, no Reino Unido. Em seguida, analisa a divergência doutrinária entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre quem deveria ser o guardião da Constituição de Weimar. Por fim, expõe a difusão da justiça constitucional, após a Segunda Guerra Mundial, como guardiã da constituição, da democracia e dos direitos fundamentais.   

Palavras-chave: Guardião da Constituição – Democracia – Direitos Fundamentais – Tribunal Constitucional

Abstract: This article aims at analyzing the doctrinaire divergences about which organ must hold the power of being the guardian of the constitution of the State. In order to attain its objective, first, it analyzes the arguments that implemented the Supreme Court as guardian of the 1787 Constitution in the United States of America, as well as the supremacy of the Parliament in the United Kingdom. Next, it analyzes the doctrinaire divergence between Hans Kelsen and Carl Schimitt on who should be the guardian of the Weimar Constitution. Finally, it expounds he diffusion of the electoral justice after the Second World War, as guardian of the constitution, democracy and fundamental rights.

Keywords: Guardian of the Constitution – Democracy – Fundamental Rights – Constitutional Court.


Introdução

Guardião da constituição é o órgão que controla a conformidade (e a desconformidade) à constituição dos atos dos poderes executivo, legislativo e judiciário do Estado, isto é, guardião da constituição é o órgão que detém a competência de manter todos os órgãos e atos estatais em conformidade com a constituição (escrita ou não escrita) do Estado.

Desde a promulgação das primeiras constituições, tem existido um debate doutrinário sobre qual órgão deveria ter a competência de ser o guardião da constituição do Estado. Em linhas gerais, ao longo da história, existiram três possíveis guardiões da constituição: o Parlamento, o Chefe de Estado ou um órgão jurisdicional. Na terceira hipótese, existe a possibilidade de o controle caber a todo o Poder Judiciário, no caso da existência de um controle difuso de constitucionalidade, ou a um órgão de cúpula ou a uma corte constitucional, se for implantado o controle concentrado de constitucionalidade.

O presente artigo analisa como se desenvolveu essa controvérsia jurídica, com foco no debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen, ocorrido na primeira metade do Século XX, sobre quem deveria ser o guardião da Constituição de Weimar, de 1919.

Para isso, primeiro, será analisada a escolha do guardião da Constituição de 1787, nos Estado Unidos da América, e a definição do Parlamento como principal instituição do Reino Unido. Em seguida, analisa-se o debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, no qual, de um lado, Kelsen defende um tribunal constitucional como guardião da Constituição e, de outro lado, Schmitt sustenta que o referido guardião deveria ser o Chefe de Estado. Por fim, verifica-se a ascensão dos tribunais constitucionais como guardiões das constituições nos países que se redemocratizaram ou se libertaram da dominação estrangeira.


O guardião da Constituição de 1787 e o Parlamento do Reino Unido

O primeiro a defender que incumbia ao Poder Judiciário manter o Parlamento e o governo sob o controle da Constituição foi Alexander Hamilton, nos Federalistas (Federalist papers), principalmente no Federalista n. 78 e no Federalista n. 81, ambos publicados em 1788.[1]

Hamilton (2005) comparou o Poder Judiciário com os outros poderes e defendeu que, pela natureza de suas funções, o Judiciário é o poder mais indicado para defender a Constituição, porque é o poder que menor perigo oferece aos direitos previstos na Constituição. Segundo Hamilton (Ibid.), enquanto o Presidente empunha a espada da comunidade e o legislador controla os gastos e dita normas para regular os direitos e obrigações dos cidadãos, o Poder Judicial tem somente a justiça e, ademais, depende do Presidente para fazer cumprir suas decisões.

Segundo Hamilton (2005), a completa independência das cortes é peculiarmente essencial a uma constituição limitadora do Estado, ou seja, uma constituição que contenha determinadas e específicas exceções à autoridade legislativa. Para ele, tais limitações não podem ser preservadas, na prática, a não ser pelas cortes de justiça, que devem declarar nulos os atos contrários ao teor manifesto da Constituição. Sem isso, diz ele, todas as preservações dos direitos particulares importarão em nada (Ibid.).

Após a decisão no Caso Marbury vs. Madison, de 1803, o Poder Judiciário dos Estados Unidos, em geral, bem como a Suprema Corte, em particular, tornaram-se os guardiões da Constituição de 1787. Apesar de o controle de constitucionalidade caber a todos os juízes e tribunais, tendo assim a Constituição de 1787 diversos guardiões, a harmonia do sistema é mantida pelo princípio fundamental do stare decisis, por força do qual a decisão da corte superior em um caso concreto tem um efeito regulador sobre todos os demais órgãos judiciários. O resultado final da vinculação aos precedentes é que, embora todos os juízes singulares e cortes possam declarar, divergindo entre si, quanto à constitucionalidade de uma determinada lei, por meio do sistema de impugnações, a questão da constitucionalidade acabará, porém, nos órgãos judiciários superiores e, em particular, na Suprema Corte, cuja decisão será, daquele momento em diante, vinculatória para todos os órgãos judiciários. Portanto, a Suprema Corte é, de fato, a guardiã da Constituição de 1787.

No Reino Unido, a Revolução Gloriosa (1688) finaliza o processo iniciado com a Magna Carta (1215) de formação do Reino Unido liberal. No entanto, sem a supremacia de uma Constituição escrita, como nos Estados Unidos da América, mas, sim, com a supremacia do Parlamento.

Além de Locke (2005), no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, defender a supremacia do Parlamento, Wilian Blackstone (2015), de maneira explícita, rechaçou terminantemente qualquer possibilidade de órgãos judiciais controlarem o Parlamento, ao afirmar que tal instituto é o equivalente a colocar o Poder Judicial sobre o Legislativo e, quase um século após a Revolução de 1688, descreveu o resultado da evolução constitucional inglesa, em seu livro Commentaries on the Laws of England, de 1770, no qual afirma que o Parlamento é o verdadeiro soberano e sua autoridade é suprema, irresistível, absoluta e incontrolada. Desde então, apesar de não ser mais absoluto, após as últimas reformas, o Parlamento inglês continua sendo a principal instituição do Reino Unido.


Hans Kelsen vs. Carl Schmitt

Após a Suprema Corte ter se tornado a guardiã da Constituição de 1787, nos Estados Unidos da América, bem como depois de o Parlamento ter emergido como principal instituição do Reino Unido, houve um dos debates mais importante da história do constitucionalismo, no qual Hans Kelsen e Carl Schmitt discutiram sobre quem deveria ser o guardião da Constituição de 1919, durante a crise da República de Weimar, que levaria ao poder, na Alemanha, o Partido Nazista, de Adolf Hitler.

Nesse debate, contrapuseram-se duas concepções de Estado: a democracia constitucional, protegida por um Tribunal Constitucional, de Kelsen, e o Estado total, no qual o Presidente do Reich é o guardião da Constituição, de Carl Schmitt.

As questões que foram debatidas e as consequências da ascensão ao poder das concepções de Estado de Carl Schmitt, na Alemanha da década de 1930, são de fundamental importância para a compreensão de um Tribunal Constitucional no Estado de direito democrático.

Kelsen proferiu, na Associação dos Constitucionalistas Alemães, a Conferência sobre “a natureza e o desenvolvimento da Justiça Constitucional”. Nessa conferência, expôs a justificação do cabimento e da necessidade de um tribunal independente para apreciar a conformidade das leis com a Constituição, fundando, assim, uma noção alargada de “Justiça Constitucional” (autônoma), que se substituía à noção limitada de “Justiça do Estado”, até então predominante nos estudos constitucionais alemães (CARDOSO DA COSTA, 1999).

Em reação à conferência de Kelsen, no princípio de 1931, Carl Schmitt, publica um artigo intitulado Der Hüter der Verfassung (O guardião da Constituição), além de outros escritos nos quais critica a teoria de Kelsen e a democracia parlamentar. Pouco tempo depois, Kelsen publica, em resposta, Wer soll der Huter der Verfassung sein? (Quem deve ser o guardião da Constituição?)[2].

A situação política e social na qual se travou o debate e as diferenças entre o controle de constitucionalidade austríaco e alemão no período são relevantes. A Conferência de Kelsen e a publicação do artigo de Carl Schmitt ocorreram no período entre guerras. Com a crise econômica de 1929, acabou o período de relativa estabilidade na República de Weimar. A coalizão no governo estava em crise. Após diversas dificuldades, o Reichstag é dissolvido e, nas eleições que se seguem, Hitler obtém um importante êxito. A partir de 1930, começa-se a utilizar os poderes da segunda parte do art. 48.º da Constituição de Weimar[3] [4].

Além disso, havia uma importante diferença entre o controle de constitucionalidade na Áustria, de Kelsen, e na Alemanha, de Carl Schmitt. Nesse período, na Alemanha, o controle de constitucionalidade era difuso, suscetível de ser exercido por todos os juízes, por via incidental, diferentemente da Áustria, país no qual acabava de ser implantado o controle concentrado de competência exclusiva da Corte Constitucional.

Em seu artigo, Schmitt ataca o controle de constitucionalidade, afirmando que uma lei superior não pode ser parâmetro para uma lei inferior já que, nesse caso, não há o que subsumir, a não ser uma decisão acerca do conteúdo da lei e, segundo ele, toda instância que resolve autenticamente sobre o conteúdo duvidoso de uma lei, realiza, de maneira efetiva, uma missão de legislador (HERRERA, 1984)[5]. Carl Schmitt, ao defender que o Tribunal Constitucional seria contrário ao princípio democrático, afirma que, do ponto de vista democrático, dificilmente seria possível entregar a guarda da Constituição a uma aristocracia formada de juízes (KELSEN, 2003). De acordo com Carl Schmitt (1968), o controle de constitucionalidade sempre terá uma feição mais política do que jurisdicional, eis que importa em uma avaliação necessariamente discricionária do conteúdo das leis. Schmitt sustenta que um Tribunal Constitucional, na realidade, completa e determina o que é a Constituição, mais do que a aplica. A solução proposta por Hans Kelsen, de um Tribunal Constitucional que concentra e monopoliza o controle da Constituição, acarreta, para o pensador alemão, uma indesejável “politização da justiça” (Politisierung der Justiz), muito mais do que uma “judicialização da política” (Juridifizierung der Politik) (CARDOSO DA COSTA, 1999).

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A democracia parlamentar é somente o despotismo de uma maioria quantitativamente maior sobre a minoria vencida no escrutínio e, portanto, subjugada, diz Schmitt. Nessa forma de governo, não há identidade democrática entre governantes e governados, entre os que mandam e os que obedecem. Nele, somente a maioria manda e a minoria tem de obedecer (SCHMITT, 1968).

Os Estados europeus atuais, afirma Carl Schmitt (1968), com suas lutas e contraposições de interesses (especialmente no Estado industrial, com sua estrutura social de equilíbrio entre burguesia e proletariado), não podem se transformar em Estados jurisdicionais, sob pena de que se dissolvam. É necessário proteger a Constituição contra abusos do legislativo, mas de modo algum com uma instância de interpretação dotada de força de lei. Contra o abuso da forma legislativa, se organizaria o abuso da forma judicial (ENTERRIA, 1982).

Após criticar o Estado democrático parlamentar e o Estado de direito democrático no qual o guardião da Constituição é um Tribunal Constitucional, Carl Schmitt (1968) defende o Estado total. Esse, segundo a teoria do jurista, seria fruto de uma evolução histórico-dialética do Estado em três etapas: do Estado absolutista dos séculos XVII-XVIII ao Estado total do século XX, passando pelo Estado neutro do século XIX. No Estado total, o guardião da Constituição seria o Presidente do Reich (KELSEN, 2003).

Carl Schmitt fundamenta essa conclusão de que deve ser o Presidente do Reich o guardião da Constituição em uma tripla argumentação: legal, histórica e doutrinária (HERRERA, 1984). Primeiro, na argumentação legal, Schmitt (1968) fundamenta-se na unidade do povo alemão, expressa no preâmbulo da Constituição de Weimar, e em uma interpretação sem dúvida extensiva do art. 48.º da mesma Constituição, que dava poderes excepcionais ao Presidente para garantir o federalismo e preservar a ordem interna.

No segundo argumento, o histórico, Schmitt (1968) fundamenta-se na situação do Parlamento Weimar que, desestruturado pela luta de partidos e com maiorias instáveis, que neste momento histórico difícil, discute, mas é incapaz de decidir e, portanto, segundo ele, tornou-se incapaz de garantir a unidade do povo alemão, ao contrário do Presidente do Reich, que representa o povo em sua unidade. Nos argumentos históricos, Carl Schmitt também utiliza a teoria da evolução histórico-dialética do Estado absolutista ao Estado total (Ibid.).

Por último, na argumentação doutrinária, fundamenta-se na teoria do pouvoir neutre, intermediaire e régulateur, de Benjamim Constant (1767-1830), para a qual a defesa da Constituição caberia ao poder moderador, como previsto na Constituição do Império do Brasil, de 1824, a ser exercido pelo monarca constitucional, com a função de equilibrar e harmonizar a atuação dos demais poderes. Schmitt (1968) somente transferiu do monarca constitucional para o Presidente do Reich a incumbência de guarda da Constituição.

Kelsen (2003), por sua vez, no seu artigo Wer soll der Huter der Verfassung sein? (Quem deve ser o guardião da Constituição?), rebateu os argumentos de Carl Schmitt. Fundamentando-se no entendimento de que ninguém pode ser juiz em causa própria, afirma que, caso se deva, de fato, criar uma instituição por meio da qual seja controlada a conformidade à Constituição de certos atos do Estado, particularmente do Parlamento e do governo, tal controle não deve ser obviamente confiado a um dos órgãos cujos atos devem ser controlados. Se a função política da Constituição é justamente estabelecer limites jurídicos ao exercício do Poder, diz Kelsen (2003), é indubitável que nenhuma instituição é tão pouco idônea para o exercício de tal função quanto aquela a quem a Constituição confia, na totalidade ou em parte, o exercício do poder e que, portanto, possui a oportunidade jurídica e o estímulo político para violá-la.

Segundo Hans Kelsen (2003, p. 275-276),

uma vez que nos casos mais importantes de violação constitucional, Parlamento e governo são partes litigantes, é recomendável convocar para a decisão da controvérsia uma terceira instância que esteja fora desse antagonismo e que não participe do exercício do poder que a Constituição dividiu essencialmente entre Parlamento e governo. Que essa mesma instância tenha, com isso, um certo poder, é inevitável. Porém há uma diferença gigantesca entre, de um lado, conceder a um órgão apenas esse poder que deriva da função de controle e, de outro, tornar ainda mais forte os dois principais detentores do poder, confiando-lhes, ademais, o Controle da Constituição.

Desconstruindo a acusação de que Justiça Constitucional seria mais política do que jurisdicional, Kelsen (2003) defende que tal afirmação parte do pressuposto errôneo de que, entre funções jurisdicionais e funções políticas, existiria uma contradição essencial. O caráter político da jurisdição, segundo o autor austríaco, é tanto mais forte quanto mais amplo for o poder discricionário que a legislação, generalizante por sua própria natureza, lhe deve necessariamente ceder. Na medida em que o legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites, interesses contrastantes entre si, e decidir o conflito em favor de um ou de outro, está lhe conferindo um poder de criação do Direito e, portanto, um poder que dá à função judiciária o mesmo caráter político que possui a legislação. Entre o caráter político da legislação e o da jurisdição, há apenas uma diferença quantitativa, não qualitativa.

Para Hans Kelsen (2003, p. 253):

a função de um Tribunal Constitucional tem um caráter muito mais político de grau muito maior que a função de outros tribunais – e nunca os defensores da instituição de um Tribunal Constitucional desconheceram ou negaram o significado eminentemente político das sentenças deste - mas não que por causa disso, ele não seja um tribunal e que sua função não seja jurisdicional.

Em seu ensaio, Kelsen (2003) demonstra diversos equívocos técnicos do pensamento de Carl Schmitt, como a concepção, ultrapassada já na época, de que a decisão judicial já estaria contida inteiramente na lei, sendo apenas deduzida desta por meio de uma operação lógica, além de expor o caráter autoritário, antidemocrático e inconstitucional do Estado total.

Contudo, ao analisar a questão lançada por Carl Schmitt sobre os limites da jurisdição constitucional, Kelsen afirma que tal questão é absolutamente legítima, mas como não é possível encontrar justificativas teóricas para o caráter eminentemente criativo e político da Justiça Constitucional dentro do normativismo jurídico de Kelsen, argumenta que tal questão não deva ser colocada como um problema conceitual de jurisdição, mas sim sobre a melhor configuração da função desta (KELSEN, 2003).

Para Kelsen (2003), caso se tenha a intenção de restringir o poder dos tribunais e, assim, o caráter político da sua função, deve-se então limitar ao máximo possível a margem de discricionariedade que as leis concedem à utilização daquele poder. Segundo o autor, as normas constitucionais a serem aplicadas por um Tribunal Constitucional, sobretudo as que definem o conteúdo, como as disposições sobre os direitos fundamentais e similares, não devem ser formuladas em termos demasiados gerais, nem devem operar com chavões vagos como “liberdade”, “igualdade”, “justiça” etc. Do contrário, existe o perigo de uma transferência do poder, não previsto na Constituição e inoportuno, do Parlamento para uma instância externa a ele, a qual possuiria o risco de tornar-se o expoente de forças totalmente distintas daquelas que se expressam no Parlamento.

Entretanto, as constituições mantiveram os termos vagos e os princípios (estes, por natureza, com grande grau de indeterminação e abstração) em seu texto. Além disso, as Cortes Constitucionais, após a Segunda Guerra Mundial, elaboraram uma jurisprudência eminentemente construtiva e o problema teórico decorrente do caráter criativo da jurisdição exposto por Carl Schmitt, para o qual Kelsen não encontrou solução, permanece.

Como justificar dentro do princípio democrático da soberania popular que a interpretação dada às constituições pelos tribunais constitucionais, compostos por juízes não eleitos, que se traduz em uma jurisprudência essencialmente criativa e construtiva, possua a capacidade de declarar inconstitucional e, portanto, nula, a produção legislativa de órgão políticos diretamente legitimados pelo sufrágio popular?

Essa questão fica ainda mais difícil ao se analisar que atualmente se entende a Constituição como um sistema aberto, no qual se conceitua, segundo Canotilho (2003, p. 1159), “sistema aberto” como uma estrutura dialógica, que se traduz na disponibilidade e capacidade de aprendizagem das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da “verdade” e da “justiça”. Ressalte-se que quem interpreta e, portanto, define em última instância, quando a Constituição é modificada pelas concepções cambiantes de “verdade” e da “justiça” é o Tribunal Constitucional (Ibid.).

Na década de 1930, as concepções de Carl Schmitt dominaram a Alemanha. Em 1932, eleições transformaram o Partido Nacional-Socialista, de Hitler, no maior partido do Parlamento. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler torna-se chanceler e nas eleições que se seguiram, o Partido Nacional-Socialista obteve dezessete milhões de votos ou 44% do eleitorado. Em 1934, Hitler tornou-se Presidente do Reich e implantou o seu regime totalitário que durou até 1945, quando houve invasão da Alemanha pelas democracias ocidentais e pela ditadura comunista soviética.

Os lamentáveis acontecimentos que se seguiram à ascensão ao poder pelo Partido Nacional-Socialista[6] abalaram definitivamente a doutrina de Carl Schmitt e fortaleceram o discurso que defende a necessidade de um instrumento como a Justiça Constitucional na defesa dos direitos, das minorias e da democracia nos Estados democráticos que ressurgiram no pós-guerra.

Para Kelsen (2003, p. 181),

se virmos a essência da democracia não na onipotência da maioria, mas no compromisso constante entre grupos representados no Parlamento pela maioria e pela minoria, e por conseguinte na paz social, a justiça constitucional aparecerá como um meio adequado à realização dessa ideia. A simples ameaça do pedido ao Tribunal Constitucional pode ser, nas mãos da minoria, um instrumento capaz de impedir que a maioria viole seus interesses constitucionalmente protegidos, e de se opor à ditadura da maioria, não menos perigosa para a paz social que a da minoria.

Segundo Aja (1998), a ideia do Tribunal Constitucional como um órgão de controle das leis contrárias à Constituição adquiriu força pelo fato das experiências nazistas e fascistas, na Alemanha, na Itália e na Áustria e em outros países, mostrarem, de uma maneira dramática, que as leis podem violar os direitos e acabar com o próprio Estado de Direito.

Por isso, após a Segunda Guerra, a primeira preocupação das novas constituições foi estabelecer garantias de sua aplicação e do respeito ao seu conteúdo pelo legislador (AJA, 1998).

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Sobre o autor
Pablo Viana

Doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com bolsa da Capes, Pablo Viana Pacheco é Mestre em Direito do Estado e Especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Foi orientador de pesquisas da Pós-Graduação da Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais (ESP-MG). Atualmente, é professor de Direito da UNIFENAS e do IMES-FUMESC, sócio do Cardoso & Viana Advogados Associados, assessor jurídico da fundação de apoio à Universidade Federal de Alfenas, assessor jurídico da fundação de apoio ao IFSULDEMINAS, assessor jurídico da Bruker AXS, membro da Comissão de Direitos Humanos da 21º Subseção da OAB-MG e advogado.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Pablo. Quem deve ser o guardião da Constituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4435, 23 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41077. Acesso em: 28 mar. 2024.

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