A omissão estatal violadora de direitos fundamentais ganhou novo destaque após a manifestação do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 347, que reconheceu, em prudente decisão liminar, a existência de um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), com base na sistêmica violação de direitos fundamentais que se manifesta no âmbito penitenciário brasileiro. Na decisão em questão, dentre os oito pedidos formulados pelo PSOL, autor da ação, dois foram deferidos: (i) a obrigatoriedade da realização de audiências de custódia e (ii) a liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para a melhoria do sistema carcerário. Além disso, foi também deferida, de ofício, medida de natureza cautelar sugerida pelo Ministro Roberto Barroso para a realização de diagnóstico da situação fática denunciada para instruir o julgamento de mérito a ser realizado em momento oportuno.
O Estado de Coisas Inconstitucional supõe, enquanto conceito, a identificação de agressões em larga escala aos direitos fundamentais e a busca, pelo Judiciário, de uma solução estrutural e complexa demandante de uma rede de posturas ativas e deferentes, cuidadosamente desenhada de modo a, produzindo resultados satisfatórios, não implicar substituição dos demais órgãos constitucionais.
A Corte Constitucional da Colômbia concebeu, pioneiramente, o ECI, aprovando medidas inéditas para combatê-lo. A primeira decisão reconhecendo um estado de cosas inconstitucional foi proferida em 1997 num feito envolvendo omissão generalizada das autoridades públicas em relação à implementação de providências capazes de satisfazer determinado direito dos professores de um grande número de coletividades locais. Em 1998, a Corte, na Sentencia T-153/98, decidiu caso mais complexo tratando da grave situação dos presídios do país, tendo declarado o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário colombiano em face das condições de vida infames (e atentatórios à dignidade da pessoa humana) dos reclusos e de sua superlotação. Mais recentemente, em 2004, foi julgado o caso das pessoas “deslocadas”, vítimas de migração forçada em razão da violência dos conflitos armados que castigam o país. Na ocasião, a Corte reconheceu o ECI diante da omissão estatal no atendimento dos desplazados, tendo determinado uma série de providências para a superação das falhas estruturais no auxílio dessas pessoas em situação de vulnerabilidade.
Inspiradas nas structural injunctions, experimentadas nos Estados Unidos, as decisões estruturantes, ao ultrapassar as receitas do processo tradicional, procuram resolver questões coletivas com o emprego de respostas adequadas, singulares, muitas vezes incrementais, tudo para corrigir circunstância caracterizada pela generalizada violação dos direitos garantidos pela lei fundamental.
Não cabe confundir o Estado de Coisas Inconstitucional com as omissões inconstitucionais de caráter exclusivamente normativo. No ECI, mais do que a inércia do órgão encarregado de providenciar um ato normativo requerido pela Constituição, manifesta-se uma situação fática, um determinado “estado de coisas” estruturalmente relevante, reclamando combate por meio de um conjunto de providências, materiais e jurídicas, que possam dar cabo à contínua e sistemática violação de direitos. Diante disso, a natureza complexa do problema desafia uma atuação judicial diferenciada, sendo insuficiente um agir solitário do Judiciário com medidas tradicionais. Na maioria das vezes, o procedimento do ECI vai demandar a manufatura de políticas públicas que só podem ser construídas com a participação ativa dos demais Poderes no processo. De modo que uma postura dialógica, com a definição comum, pelas autoridades implicadas, de metas e de indicadores objetivos e precisos no desenvolvimento prolongado de respostas ao problema, é de todo recomendada.
É verdade que, na Colômbia, o ECI foi desenhado pela Corte Constitucional para enfrentar questões que não encontravam remédio adequado no sistema processual do país. No Brasil, ao contrário, diante dos meios processuais contemplados para a defesa dos direitos fundamentais difusos e coletivos, com possibilidade de adoção, em tais meios, de sentenças estruturais, o ECI, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, deverá assumir configuração particular e caráter de instrumental excedente, de uso pontual nos episódios de violação sistêmica dos direitos fundamentais.
Os dilemas no âmbito da eficácia dos direitos fundamentais vão, nos dias que correm, assumindo complexidade sempre maior, sendo certo que o momento reclama não apenas a descoberta do que deve ser feito, mas, também, a definição do como fazer, supondo, respeitada a organização funcional do Estado e os postulados democráticos e republicanos, forma adequada de realização das promessas constitucionais, mormente nos desafios reivindicando soluções abrangentes. Cumpre, então, na altura, esperar da Colenda Corte, por ocasião do julgamento de mérito, um cuidado superlativo no manejo do conceito e no desenho das providências requisitadas, isso tudo para evitar a possibilidade da emergência de respostas voluntaristas de difícil justificação do sentido de sua legitimação democrática.
É preciso reconhecer, voltando à ADPF 347, que os problemas sistêmicos do aparelho carcerário não toleram uma solução simples. Há, portanto, na hipótese, algum risco de que a autoridade judicial, caso venha a tratar da matéria de modo menos cuidadoso, perca sua autoridade diante da constatação, no futuro, da ineficácia do modelo de decisão adotado. Acredita-se, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, sempre ciente de suas responsabilidades, no momento de cuidar do mérito da ADPF, mais do que aderir a mais uma novidade importada, saberá dosar cautela e ousadia, deferência e imaginação, tudo para, respeitado o nosso sistema de poderes divididos, prosseguir no necessário e virtuoso caminho de realização dos direitos fundamentais.