Há exatamente setenta e cinco anos atrás, Adolf Hitler enviava carta ao seu General das SS, Reinhard Heydrich, determinando que este lhe apresentasse uma pronta solução final para a questão judaica. Heydrich respondeu afirmando que os nazistas deveriam destruir todos os judeus através de envenenamento, gás, fuzilamento, atos aleatórios de terror, doenças ou inanição, tudo em centros de morte consistentes em campos de extermínio estabelecidos no território polonês ocupado.
O saldo desse holocausto: mais de um milhão de crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens judeus morreram nesses campos de horror. Anatoly Shapiro, o primeiro oficial do exército soviético a entrar no campo de concentração de Auschwitz, descreveu suas primeiras impressões sobre o que encontrou em 27 de janeiro de 1945:
“Não tínhamos a menor ideia da existência daquele campo. Nossos superiores não disseram coisa alguma sobre ele. Entramos ao amanhecer de 27 de janeiro. Havia um cheiro tão forte que era impossível aturar por mais de cinco minutos. Meus soldados não conseguiam suportá-lo e me imploraram para que fôssemos embora. Mas tínhamos uma missão a cumprir. Vimos algumas pessoas de pé em roupas listradas - eles não pareciam humanos. Eram pele e osso, somente esqueletos. Quando dissemos a eles que o Exército soviético os havia libertado, eles sequer reagiram. Não conseguiam falar ou mesmo mexer a cabeça. Os prisioneiros não tinham calçados. Seus pés estavam envoltos em trapos. Era janeiro e a neve estava começando a derreter. Até hoje não sei como conseguiram sobreviver. Quando chegamos ao primeiro pavilhão, estava escrito que era para mulheres. Entramos e vimos uma cena horrível. Mulheres desnudas e mortas jaziam perto da porta. Suas roupas tinham sido removidas pelas sobreviventes. Havia sangue e excrementos pelo chão. Nos alojamentos infantis, havia apenas duas crianças vivas. E elas começaram a gritar 'Não somos judias! Não somos judias'. Elas eram judias, mas estavam com medo de serem levadas para as câmaras de gás. Nossos médicos as tiraram dos alojamentos para serem limpas e alimentadas. Abrimos as cozinhas e preparamos refeições leves para os prisioneiros. Algumas das pessoas morreram porque seus estômagos não podiam mais funcionar normalmente. Vi os fornos e as máquinas de matar. As cinzas (dos mortos) eram espalhadas pelo vento”.
Ao final da guerra, a Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, aos 10 de dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento marco na história dos direitos humanos, para que nunca mais se repita esse trágico capítulo da história universal. Em um de seus considerandos, reza a Declaração: “O desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade.”.
Setenta e um anos após o holocausto dos judeus, lemos em revistas, jornais, periódicos, na internet e redes sociais que aviventam-se vozes propondo o livre direito ao aborto em gestações de bebês com microcefalia. E, mais do que isso, parece que a microcefalia reabriu a discussão sobre aborto no Brasil de forma generalizada.
Noutras palavras, vem-se propagando com muita força e ênfase uma solução final para os bebês com microcefalia. Em verdade, uma solução para a sempre inoperância e ineficiência do Poder Público no combate ao mosquito aedes aegypti, transmissor do vírus zika, este causador da microcefalia. E, também, uma solução para a falta de amor de alguns pais, disfarçada sob uma retórica nada convincente.
Aborto necessário, praticado por médico, se não há outro meio de salvar a vida da gestante é uma coisa, encontra previsão legal. Agora, aborto de bebês com microcefalia, não havendo risco à vida das gestantes, é genocídio.
Ora, o argumento de que a mulher não deve ser punida por uma falha das autoridades públicas em controlar o mosquito transmissor da doença não autoriza o exercício do direito de matar. Os bebês com microcefalia também são vítimas da falha do agente público. Aliás, em muito maior grau, pois só eles sentirão a doença na pele.
A gestante poderá até vir a renunciar à maternidade, através da chamada entrega consciente do bebê. Esclarece o Estatuto da Criança que “as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude” (§ Único, Art. 13). O dispositivo, naturalmente, também vale para os bebês com microcefalia. Entretanto, a gestante jamais terá o direito de decidir pela descontinuação dolosa de sua gravidez, optando pela morte de seu filho.
Não é por outra razão que o Código Civil, afinado com a Constituição Federal e os tratados de direitos humanos subscritos pelo Brasil, garante que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
A suprema ilusão do feto perfeito não pode e não deve permear as aspirações de uma Nação. Assiste inteira razão ao Apóstolo Paulo quando em suas cartas aos Coríntios diz que, sem amor, nada seria: “o amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece” (1 Coríntios 13:4).
O amor não mata!
Não se pode criar um ângulo ou um ponto de vista subjetivo sobre os direitos da pessoa humana. Ou todos os seres humanos, indistintamente, são dotados do sagrado e inalienável direito à vida, à liberdade e à igualdade; ou admitamos o triunfo do totalitarismo, da homogeneização da sociedade, da ideologia da superioridade racial.
Ao contrário do asseverado, a questão dos bebês com microcefalia não deve reabrir uma discussão sobre o aborto no País. Mas, sim, reafirmar o compromisso do Brasil em promover a dignidade da pessoa humana, a prevalência dos direitos humanos, o progresso da humanidade e, enfim, o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.