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Condução coercitiva do Lula: (i)legalidade e a busca da verdade (Aletheia)

07/03/2016 às 10:09
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A inobservância das regras jurídicas anula tudo que foi feito. Veja Satiagraha, Castelo de Areia etc. Foram gastos milhares de reais e tudo virou pó (por inobservância da lei). A oitiva feita com violação do ordenamento jurídico significa prova obtida de forma ilícita.

Aletheia (24ª fase da Operação Lava Jato) significa mais que “busca da verdade”: é desvelamento, é desesquecimento (ver Heidegger, citado por Schwartsman), é ficar acordado, não dormir, permanecer atento em busca de algo. O Brasil quer saber a verdade (e tem esse direito, quando se trata de um homem público): os bens materiais de Lula e do seu Instituto são frutos de serviços prestados ou de resgates e bonificações de corrupções das empreiteiras na Petrobras? Tudo isso tem que ficar esclarecido.

Interessa para o país todo (para o povo, para as empresas e os empreendedores, para a economia, para a retomada do crescimento, para a restauração da ética e da confiança) passar a limpo todas as histórias de corrupção (como as delatadas por Delcídio, por exemplo), não importando quem seja o seu autor (gente do PT, do PMDB, PSDB, DEM etc.). Com muito mais razão a investigação é necessária se as negociatas fazem parte de um projeto de perpetuação no poder. Ao Estado compete investigar a corrupção (de quem quer se seja), não este ou aquele corrupto.

O problema jurídico da condução coercitiva

Cheguei a imaginar que a condução coercitiva teria sido necessária. Mas a fundamentação apresentada pelo juiz Moro (à qual tive acesso por volta das 19h do dia 04/03/16) tem problemas. Vamos ao tema:

Para apurar o possível envolvimento de Lula na corrupção da Petrobras (via empreiteiras e outras empresas) há um procedimento investigatório instaurado pelo MPF (em fev/16).

Paralelamente corre outra investigação (pelo MP Estadual) para apurar supostos delitos sofridos pelos cooperados da Cooperativa Habitacional dos Bancários (BANCOOP).

São duas investigações com objetos distintos (sublinhou a ministra Rosa Weber, na ACO 2833 MP/SP); daí a inexistência de duplicidade investigativa (bis in idem). Por esse motivo a ministra não suspendeu nenhum dos dois procedimentos investigatórios. Decisão muito acertada. Não pode haver nem cerceamento de defesa nem cerceamento de investigação (liberdade e segurança contam com bases constitucionais).

Em tese, no procedimento do MPF (Curitiba), poderia o juiz Moro decretar: (a) prisão preventiva; (b) prisão temporária; (c) condução coercitiva para depor (se o conduzido quiser depor, porque todo cidadão tem direito ao silêncio, inclusive quando conduzido coercitivamente).

Ao MPF competiria marcar uma data para a oitiva do Lula, intimando-o para isso. Como se vê, quatro caminhos legais (em tese).

O MPF, neste caso, no entanto, destoando das suas atuações precedentes, alopradamente, sem bases probatórias suficientes (como o próprio Moro reconheceu), já pediu a prisão temporária de várias pessoas (não incluindo Lula no rol).

O MPF queria prender, sem nenhuma base probatória, para investigar. Isso é paradoxal e tecnicamente aberrante. Se as provas são ainda precárias (como reconheceu Moro), é evidente que essa mácula (da precariedade) vale para todos os investigados.

Não se pode escolher quem será preso. Fato único, consequências jurídicas únicas (ressalvadas peculiaridades comportamentais de cada investigado, como é o caso de coação a testemunha, por exemplo).

Sempre que não enjaulamos o Leviatã hobbesiano que existe dentro de nós, fazendo-o seguir rigorosamente as leis vigentes, os monstros aparecem. “O sonho da razão produz monstros” (dizia Goya).

O juiz Moro deliberou não decretar a prisão de Lula, Okamotto, de Fillipi e Gordilho (OAS) e disse o seguinte:

“Apesar do requerimento do MPF [em relação aos três últimos], entendo que mais apropriado nessa fase é o aprofundamento da colheita dos elementos probatórios, sem a imposição da prisão temporária. Não obstante, entendo que se justifica a condução coercitiva dos indicados para que prestem esclarecimentos nas mesmas datas das apreensões.”, escreveu Moro (ver UOL) (grifamos).

Por não haver provas suficientes, decretou-se a condução coercitiva, não a prisão temporária. Moro evitou a arbitrariedade da prisão (porque “ainda não há provas suficientes”). Mas acabou caindo no extremo da condução coercitiva, sem respeitar a lei vigente.

É muito simples entender o tema (não precisa ser jurista).

O art. 260 do CPP diz o seguinte: “Se o acusado não atender a intimação para o interrogatório (…) a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Repita-se: “Se o acusado não atender a intimação”.

A condução coercitiva só pode ocorrer nas situações expressamente descritas no art. 260.

O problema: não houve intimação prévia (que é o núcleo essencial da condução coercitiva). Sem intimação prévia desatendida, a condução é fragrantemente ilegal (disse o ministro do STF, Marco Aurélio).

Todos queremos que o Lula preste contas de tudo de que é acusado. Mas em sã consciência, se a lei exige intimação prévia para se decretar a condução coercitiva, não tendo havido essa intimação, não pode acontecer a condução.

Tudo claro, como a luz do meio dia. Sem a causa, não se pode extrair o efeito. Sem a massa, não se faz o pão. Sem o ar, não se respira. Sem oxigênio, não existe água. Sem o Sol, não existiria o sistema solar. Sem Helena, não haveria Tróia.

A lei não foi atendida. O fundamento apresentado por Moro (condução para evitar tumulto) não está na lei.

Nenhum juiz pode deixar o réu preso para sua segurança depois de cumprida a pena. É uma fraude de etiqueta. A pretexto de se fazer o bem a Justiça não pode aplicar o mal contrariando as regras jurídicas.

Isso se chama Estado de Direito (que tanto permite investigar os suspeitos – como o Lula, por exemplo – como prevê uma série de regras tutelares da liberdade). A regra é clara (diria um comentarista de futebol).

Se você, caro leitor, acha tudo isso um absurdo, passe os olhos na jurisprudência do STF (que manda observar as regras jurídicas, particularmente quando é o Ministério Público o órgão investigador – RE 593.727, que reconheceu poderes investigativos ao MP por força da teoria da “necessary and proper clause”, ou seja, a Constituição tem poderes implícitos, ela não esgota todas as matérias).

Recorde-se: a inobservância das regras jurídicas anula tudo que foi feito. Veja Satiagraha, Castelo de Areia etc. Foram gastos milhares de reais e tudo virou pó (por inobservância da lei). A oitiva feita com violação do ordenamento jurídico significa prova obtida de forma ilícita.

Mais: experimente se sujeitar a uma ação truculenta do Estado. Nos EUA se diz que “ninguém é mais liberal que o conservador processado criminalmente”; “ninguém é mais conservador que o liberal que foi vítima de roubo”; “ninguém é mais reformador (dos presídios) que o conservador que vai para a cadeia”.

A equação é simples: o fundamento apresentado por Moro não está na lei. Mais: o juiz não pode usar seu poder geral de cautela fora da razoabilidade e da lei. Medidas restritivas de direitos dependem de lei. E quando a lei disciplina a matéria, não se pode fugir dos seus termos.

O velho liberalismo (político) do direito inglês (Locke, Hume, Stuart Mill etc.), que transmigrou para os EUA e que apareceu já na primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1791), não pode ser jogado no lixo. Nosso complexo de inferioridade (de vira-lata) não pode ser obstáculo para que as regras liberais descritas na lei tenham validade.

No Brasil, nem Lula, nem FHC, nem Aécio, nem Temer, nem Renan, nem Cunha, nem você e nem ninguém pode ser conduzido coercitivamente sem ter havido intimação prévia desatendida.

É o que diz a lei (que vale para todos da base social assim como para as elites). Já se imaginou uma condução coercitiva, sem intimação prévia, para ouvir FHC sobre o contrato falso da Brasif para pagar pensão à sua ex-amante Mirian Dutra? Já se imaginou uma condução coercitiva do Aécio para ser ouvido sobre a corrupção em furnas (há três delações contra ele nesse sentido) sem ter sido intimado previamente?

É tolo quem festeja uma injustiça ou uma ilegalidade contra os outros quando existe o sério risco de que o tambor da próxima comemoração seja feito da sua própria pele.

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Moro, que já entrou para a História do Brasil, neste caso, sufragou a “lei da bipolaridade dos erros” (Bachelard). Saiu de uma extremidade equivocada (prisão) e caiu em outra (condução coercitiva), porque não houve intimação prévia desatendida ou ao menos frustrada, como exige a lei (ou como a lei pode ser interpretada).

Sabe-se que hoje, por força da Constituição, todo acusado ou suspeito tem direito ao silêncio. Por causa disso há quem entenda que nunca poderia haver condução coercitiva (ver manifestações sociais de Pedro Paulo Medeiros e Aury Lopes Júnior). Há situações, no entanto, em que o suspeito “frustra” a intimação (não se deixa ser intimado, mente que não está em casa etc.).

Nessa situação de frustração da intimação, mesmo depois de se fixar a intimação por hora certa, pode ser válida a condução coercitiva para se evitar, no futuro, alegação de nulidade porque não teve chance de apresentar sua defesa (sua versão dos fatos). Mas nem essa situação aconteceu no caso concreto do ex-presidente.

Leia-se: colocaram o bonde fora dos trilhos do Estado de Direito. Ato nulo. E custou caro para todos nós. Igual Satiagraha, Castelo de Areia etc. Temos que lamentar toda essa situação, porque todos estamos ávidos por ver provas contundentes contra todos os agentes públicos acusados de corrupção.

A faxina (dentro da lei) não pode mais esperar. O empobrecimento (ou redução da riqueza) do corrupto não pode deixar de acontecer. O Brasil, exausto, não tem mais fôlego para suportar tantos desvios do erário.

Nas Repúblicas ninguém está acima da lei (Celso de Mello). Lula tem que ser investigado até o último fio de cabelo. Agente público acusado de corrupção tem que prestar contas (accountability) das suas eventuais estrepolias.

Comprovados fatos graves, tem que ser condenado (depois do devido processo) e preso em regime fechado, se a pena passar de oito anos.

Isso se chama império da lei (rules of law), que deve valer inclusive para os donos do poder (político, econômico, financeiro e corporativo). Numa República cleptocrata, repleta de aventureiros escroques e “bandoleiros” (a última expressão é do ministro Celso de Mello), jamais existirá ordem sem o império da lei (para todos, incluindo os barões ladrões).

Derrapagem do O Globo

Para que a verdade não seja torpedeada, eis uma mentira cabeluda que contou O Globo: “A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou nesta sexta-feira o pedido feito pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para interromper as investigações contra ele [isso é verdade e a investigação não pode mesmo parar] e também as ações deflagradas nesta manhã [de 04/03/16], quando a Polícia Federal o levou para prestar depoimento e fez buscas e apreensões em imóveis usados pelo petista. Segundo a ministra, não houve “ilegalidade irrefutável” na condução das apurações[1]” [que mentira cabeluda!] (grifei).

Li e reli o voto da ministra Rosa Weber (ACO 2833 MP/SP) e não existe nenhum parágrafo (aliás, nenhuma linha) a respeito das “ações deflagradas nesta manhã” nem tampouco sobre “o depoimento de Lula sob condução coercitiva”. A ministra não tocou nesses assuntos. A informação é descaradamente equivocada.

CAROS internautas que queiram nos honrar com a leitura deste artigo: sou do Movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE) e recrimino todos os políticos comprovadamente desonestos assim como sou radicalmente contra a corrupção cleptocrata de todos os agentes públicos (mancomunados com agentes privados) que já governaram ou que governam o País, roubando o dinheiro público. Todos os partidos e agentes inequivocamente envolvidos com a corrupção (PT, PMDB, PSDB, PP, PTB, DEM, Solidariedade, PSB etc.), além de ladrões, foram ou são fisiológicos (toma lá dá cá) e ultraconservadores não do bem, sim, dos interesses das oligarquias bem posicionadas dentro da sociedade e do Estado. Mais: fraudam a confiança dos tolos que cegamente confiam em corruptos e ainda imoralmente os defende. 

[1] Ver http://oglobo.globo.com/brasil/stf-nega-pedido-para-anular-investigacoes-contra-lula-na-lava-jato-18809246#ixzz422PoAHpf, consultado em 05/03/16.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Condução coercitiva do Lula: (i)legalidade e a busca da verdade (Aletheia). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4632, 7 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47126. Acesso em: 22 dez. 2024.

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