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Responsabilidade eleitoral: definição e problemática

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2. A RESPONSABILIDADE NO SISTEMA ELEITORAL

Apresentadas as premissas básicas da teoria da responsabilidade civil, passa-se, neste tópico, a apurar as condições de aplicabilidade dos pressupostos, bem como as peculiaridades que envolvem a responsabilização de cidadãos no âmbito do sistema jurídico eleitoral.

O estudo da reponsabilidade no direito eleitoral não pode prescindir da análise do “ilícito eleitoral”, porquanto tais categorias jurídicas apresentam um elo indissociável e necessário. Conforme ensinamento de José Jairo Gomes, no aspecto estrutural, o ilícito eleitoral compõem-se dos seguintes elementos: a) conduta abusiva; b) resultado; c) relação causal; d) ilicitude ou antijuridicidade[17].

Como salientado alhures, a configuração de resultado material da conduta, para o direito eleitoral, é irrelevante, porquanto o bem jurídico tutelado é de ordem difusa e relaciona-se aos aspectos mais caros ao Estado Democrático de Direito: o adequado funcionamento das instituições e do regime democrático, a higidez do processo eleitoral e a legitimidade do exercício do poder político. Nas palavras do insigne eleitoralista José Jairo Gomes, in verbis:

O resultado não é necessariamente natural ou mecânico, podendo ser meramente normativo, traduzindo ferimento ao bem ou interesse protegido pela norma eleitoral. Ressalte-se que, no Direito Eleitoral, o resultado não apresenta caráter patrimonial, como ocorre no Direito Privado. Antes, malfere bens e interesses político-coletivos, difusos (no sentido de que diz respeito a todos indistintamente), preciosos ao adequado funcionamento das instituições e do regime democrático e à normalidade da vida político-social, tais como a legitimidade do exercício do poder político, a higidez do pleito, a veraz representatividade, a sinceridade dos votos, a confiança no sistema de votação etc. Desnecessário dizer que esses bens não são apreciáveis economicamente.[18]

Para parte significativa da doutrina, igual deferência há que se atribuir à questão do nexo causal, uma vez que, no sistema eleitoral, o vínculo existente entre a conduta e a lesão ao bem ou interesse tutelado “é lógico, não material ou físico; cuida-se de relação imputacional em que um resultado é atribuído a pessoa ou ente, que por ele deverá responder”[19].

A partir da responsabilidade será possível imputar a determinada pessoa um dever jurídico, cuja consequência é a sanção. No âmbito eleitoral, a responsabilidade “é aquela que decorre de atos considerados ilícitos e sujeitos a sanções como multa e até inelegibilidade e cassação (de registro, de diploma ou de mandato) daquele que agiu com irresponsabilidade eleitoral”[20].

Nessa esteira, o direito eleitoral sofre profunda influência do modelo objetivo de responsabilidade, porquanto o elemento “culpa” não é determinante para a fixação da sanção jurídica[21].

Dada as vicissitudes do sistema eleitoral, o tema da responsabilidade ganha relevo a partir da ilicitude de condutas havidas em sede das eleições (em toda a amplitude do “processo eleitoral”) e do exercício do mandato, envolvendo aspectos relacionados ao abuso de poder (econômico, político e “político-econômico”), propaganda política-eleitoral e captação ilícita de sufrágio e seus consectários.

A responsabilidade do ato de governar e, inclusive, de ser governado envolve razão, ética, honestidade, moralidade, probidade e inúmeras outras características, as quais também integram o que se entende por responsabilidade eleitoral que, por sua vez, envolve deveres, regras, sanções e restrições atinentes ao Direito Eleitoral.

Ao analisar criticamente a responsabilidade eleitoral, é possível dizer que ela se interessa muito mais pela mácula do pleito do que pela penalização dos sujeitos que, ocasionalmente, possam violá-lo. Portanto, a violação de um dever eleitoral, além de concretizar um ilícito eleitoral, enseja principalmente a responsabilidade eleitoral, que não é fundada em dolo ou culpa, mas sim na transparência do pleito.[22]

A noção de responsabilidade no direito eleitoral e sua conformação estrutural são regidas pela natureza de fundamentalidade dos bens e interesses jurídicos tutelados no paradigma do Estado Democrático de Direito e, nesse desiderato, sobreleva-se a necessidade de prevenção geral, de modo a desestimular a prática de atos atentatórios à democracia.

... nem sempre é necessário haver real ferimento aos bens e interesses protegidos, bastando a potencialidade ou o risco do dano – ainda porque, quando a conduta ilícita visa influenciar o voto, o segredo de que é revestido impossibilita averiguar se ela realmente o influenciou.

[...]

Em tais situações, a responsabilidade eleitoral se funda antes no efeito (= lesão ao bem tutelado) que na causa (ação ilícita). Isso porque sua missão primordial é salvaguardar a lisura e a normalidade do processo eleitoral, a higidez do pleito, a isonomia das candidaturas, a veraz representatividade.

[...]

Nesse contexto, a responsabilidade eleitoral harmoniza-se com a contemporânea noção de risco. O discurso do risco liga-se à ideia de prevenção de um mal ou dano futuro a um bem ou interesse valorizados na sociedade [...] A responsabilidade se funda na realização dessas condutas ou nos benefícios que elas proporcionaram (ou teriam proporcionado) a determinada candidatura.[23] [destaque no original]

A perspectiva hermenêutica ora delineada é desenvolvida não apenas pela doutrina especializada, como, também, pela jurisprudência dos tribunais eleitorais. De se salientar, ainda, que a própria legislação eleitoral apresenta exemplos de previsão de responsabilidade objetiva. Nesse sentido, cumpre transcrever alguns dispositivos da Lei nº 9.504/1997, a chamada “Lei das Eleições”:

Art. 20. O candidato a cargo eletivo fará, diretamente ou por intermédio de pessoa por ele designada, a administração financeira de sua campanha, usando recursos repassados pelo comitê, inclusive os relativos à cota do Fundo Partidário, recursos próprios ou doações de pessoas físicas ou jurídicas, na forma estabelecida nesta Lei.

Art. 21.  O candidato é solidariamente responsável com a pessoa indicada na forma do art. 20 desta Lei pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha, devendo ambos assinar a respectiva prestação de contas.  

Art. 31.  Se, ao final da campanha, ocorrer sobra de recursos financeiros, esta deve ser declarada na prestação de contas e, após julgados todos os recursos, transferida ao partido, obedecendo aos seguintes critérios:

I - no caso de candidato a Prefeito, Vice-Prefeito e Vereador, esses recursos deverão ser transferidos para o órgão diretivo municipal do partido na cidade onde ocorreu a eleição, o qual será responsável exclusivo pela identificação desses recursos, sua utilização, contabilização e respectiva prestação de contas perante o juízo eleitoral correspondente;

II - no caso de candidato a Governador, Vice-Governador, Senador, Deputado Federal e Deputado Estadual ou Distrital, esses recursos deverão ser transferidos para o órgão diretivo regional do partido no Estado onde ocorreu a eleição ou no Distrito Federal, se for o caso, o qual será responsável exclusivo pela identificação desses recursos, sua utilização, contabilização e respectiva prestação de contas perante o Tribunal Regional Eleitoral correspondente;       

III - no caso de candidato a Presidente e Vice-Presidente da República, esses recursos deverão ser transferidos para o órgão diretivo nacional do partido, o qual será responsável exclusivo pela identificação desses recursos, sua utilização, contabilização e respectiva prestação de contas perante o Tribunal Superior Eleitoral;  

Art. 40-B. A representação relativa à propaganda irregular deve ser instruída com prova da autoria ou do prévio conhecimento do beneficiário, caso este não seja por ela responsável.   

Parágrafo único.  A responsabilidade do candidato estará demonstrada se este, intimado da existência da propaganda irregular, não providenciar, no prazo de quarenta e oito horas, sua retirada ou regularização e, ainda, se as circunstâncias e as peculiaridades do caso específico revelarem a impossibilidade de o beneficiário não ter tido conhecimento da propaganda.     

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[...]

§ 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de cinco a cem mil UFIR.

§ 5º Nos casos de descumprimento do disposto nos incisos do caput e no § 10, sem prejuízo do disposto no § 4º, o candidato beneficiado, agente público ou não, ficará sujeito à cassação do registro ou do diploma.

[...]

§ 8º Aplicam-se as sanções do § 4º aos agentes públicos responsáveis pelas condutas vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem.

A partir de tais dispositivos, notadamente no que tange à propaganda eleitoral, prática de conduta vedada e abuso de poder, a responsabilidade restará configurada com a evidenciação do benefício eleitoral angariado com o ato, independentemente de prova da efetiva participação ou prévio conhecimento do beneficiário.

2.1. A questão da responsabilidade eleitoral do beneficiário de ato ou comportamento de terceiro: posição do Tribunal Superior Eleitoral

Reiterando os ensinamentos de Jairo José Gomes, a imputação de responsabilidade eleitoral funda-se, ainda, “nos benefícios que elas proporcionaram (ou teriam proporcionado) a determinada candidatura”[24]. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral agasalha tal entendimento:

2. É desnecessário, em AIJE, atribuir ao réu a prática de uma conduta ilegal, sendo suficiente o mero benefício eleitoral angariado com o ato abusivo e a demonstração da gravidade da conduta. Precedente[25]. (grifou-se)

[...]

 3. Na apuração de abuso de poder, não se indaga se houve responsabilidade, participação ou anuência do candidato, mas sim se o fato o beneficiou, o que teria ocorrido na espécie, segundo o Tribunal a quo[26]. (grifou-se)

Não se pode olvidar que a seriedade na proteção aos valores democráticos pelo sistema eleitoral influencia a guinada hermenêutica do Poder Judiciário quanto ao elemento “culpa” para a configuração da responsabilidade. Tal paradigma orienta, até mesmo, a aferição da ocorrência de captação ilícita de sufrágio prevista no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997, conforme se denota das seguintes ementas:

2. A atual jurisprudência do Tribunal não exige a prova da participação direta, ou mesmo indireta, do candidato, para fins de aplicação do art. 41-A da Lei das Eleições, bastando o consentimento, a anuência, o conhecimento ou mesmo a ciência dos fatos que resultaram na prática do ilícito eleitoral, elementos esses que devem ser aferidos diante do respectivo contexto fático. No caso, a anuência, ou ciência, da candidata a toda a significativa operação de compra de votos é fruto do envolvimento de pessoas com quem tinha forte ligação familiar, econômica e política.[27] (grifou-se)

[...]

 5. A desnecessidade de comprovação da ação direta do candidato para a caracterização da hipótese prevista no art. 41-A da Lei nº 9.504/97 não significa dizer que a sua participação mediata não tenha que ser provada. Por se tratar de situação em que a ação ou anuência se dá pela via reflexa, é essencial que a prova demonstre claramente a participação indireta, ou, ao menos, a anuência do candidato em relação aos fatos apurados.[28] [grifou-se]

Em se tratando de responsabilidade decorrente de abuso de poder, vale observar, a partir do voto da Relatora do Recurso Ordinário nº 406.492/MT, Ministra Laurita Vaz, que o Tribunal Superior Eleitoral, com esteio no art. 23 da Lei Complementar nº 64/1990[29], entende que a anuência do candidato quanto ao ilícito eleitoral que configure abuso de poder político ou econômico "pode ser revelada por presunções ou indícios, sem necessidade de existência de prova robusta de sua participação direta ou indireta nem mesmo da mera ciência ou conhecimento do fato".

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Outrossim, na ótica da Corte Superior, a responsabilização do beneficiário nos casos de abuso de poder político e econômico, com a consequente sanção de cassação do registro ou diploma, decorre, ainda, de previsão legal contida no inciso XIV do art. 22 da “Lei de Inelegibilidades”:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:  

[...]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; 

Nessa esteira, é interessante transcrever trechos da decisão monocrática proferida pelo Ministro Joaquim Barbosa, no Agravo de Instrumento nº 7.209/BA:

Quanto ao prévio conhecimento, é certo que sua comprovação é imprescindível para fins de representação com fundamento no art. 96 da Lei nº 9.504/97, mas não é essa a hipótese dos autos, que versa sobre recurso contra a expedição de diploma em virtude de abuso de poder. A respeito disso, esta Corte consagrou o entendimento de que o abuso de poder pode ser apurado tanto em relação ao beneficiário como em relação ao autor, pois o que se busca preservar é a lisura do pleito, sendo de somenos importância perquirir a participação ou não do beneficiário na prática dos atos abusivos (cf. Ac. nº 21.308, de 18.12.2003, rel. min. Barros Monteiro e Ac. nº 2.987, de 04.09.2001, rel. min. Fernando Neves).

Cito trecho de voto bastante elucidativo sobre o tema, proferido pelo min. Sepúlveda Pertence no Ac. nº 1.230, de 25.06.1991, rel. min. Hugo Gueiros:

[...]

A perda do mandato, que pode decorrer da ação de impugnação, não é pena, cuja imposição devesse resultar da apuração de crime eleitoral de responsabilidade do mandatário, mas, sim, conseqüência do comprometimento da legitimidade da eleição por vícios de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.

Por isso, nem o art. 14, §10, nem o princípio do due process of law, ainda que se lhe empreste o conceito substancial que ganhou na América do Norte, subordinam a perda do mandato à responsabilidade pessoal do candidato eleito nas práticas viciosas que, comprometendo o pleito, a determinem.

O que importa é a existência objetiva dos fatos - abuso do poder econômico, corrupção ou fraude - e a prova, ainda que indiciária, de sua influência no resultado eleitoral.

Assim, creio, ninguém porá em dúvida que a fraudulenta manipulação matemática na totalização dos votos - ainda que atribuída exclusivamente à conduta criminosa de órgãos da Justiça Eleitoral - quando tenha importado em proclamar vencedor o candidato vencido, deva acarretar a perda do mandato, nada importando, contra a verificação objetiva da adulteração do resultado do pleito, que seja inocente o beneficiário dela.

O mesmo é de concluir, mutatis mutandis, no caso do abuso por terceiro do poder econômico ou da prática da corrupção eleitoral.

O voto vencido no TRE do il. Juiz Delmival de Almeida Campos suscita contra esse entendimento, primeiro, que o Direito Penal repele a responsabilidade sem culpa e, segundo, com a possibilidade de adversários, na antevisão da derrota, forjarem a prática de corrupção ou fraude em favor do favorito, para, depois, impugnar-lhe a eleição.

Mas, de responsabilidade penal não se cuida e, sim, de objetivo comprometimento da legitimidade ou da autenticidade do resultado eleitoral.[30] [grifou-se]

Por conseguinte, convém analisar o entendimento jurisprudencial quanto a outro pressuposto da responsabilidade: o nexo de causalidade.

Partindo da mesma premissa utilizada para apontar a prescindibilidade de comprovação do resultado material da conduta na seara eleitoral, em caso de abuso de poder (político, econômico ou político-econômico) incidirá a responsabilidade e seus efeitos (cassação do mandato, inelegibilidade, etc) quando demonstrada a potencialidade ou o risco da conduta de influenciar indevidamente o espírito do eleitor e, assim, o resultado do pleito.

1. Para a configuração de abuso de poder, não se exige nexo de causalidade, entendido esse como a comprovação de que o candidato foi eleito efetivamente devido ao ilícito ocorrido, mas que fique demonstrado que as práticas irregulares teriam capacidade ou potencial para influenciar o eleitorado, o que torna ilegítimo o resultado do pleito.

 2. Se fossem necessários cálculos matemáticos, seria impossível que a representação fosse julgada antes da eleição do candidato, que é, aliás, o mais recomendável, visto que, como disposto no inciso XIV do art. 22 da LC nº 64/90, somente neste caso poderá a investigação judicial surtir os efeitos de cassação do registro e aplicação da sanção de inelegibilidade.[31] [grifou-se]

Nessa senda, é mister transcrever a redação do inciso XVI do art. 22 da Lei Complementar nº 64/1990, incluída pela Lei Complementar nº 135/2010:

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

Resta claro, portanto, que, independentemente da participação direta ou imediata na prática do abuso de poder ou condutas vedadas, os candidatos devem responder pelo ato ilícito, sofrendo as sanções previstas, inclusive, a perda do mandato nos casos de gravidade suficiente para macular a legitimidade do pleito. Assim, no direito eleitoral, é admissível falar em responsabilização por ato de terceiro.

Para tanto, consoante o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, “embora o candidato não participe do ato e não atue com culpa, dolo ou prévio conhecimento, a supressão do mandato seria a única forma de restabelecer a legitimidade do pleito viciado pelo ato de terceiro”[32].

2.2 Críticas à posição do Tribunal Superior Eleitoral quanto à responsabilidade do beneficiário: adoção da teoria do risco integral?

Com fulcro nos fundamentos lançados nos representativos julgados do Tribunal Superior Eleitoral acima mencionados e transcritos, é possível depreender que se admite a responsabilidade objetiva para sancionar não apenas os responsáveis diretos e imediatos pela prática de conduta vedada ou abuso de poder, mas também dos beneficiários de tais atos, independentemente de prova da culpa ou participação.

Sobressaem em tal entendimento, dois importantes aspectos que merecem atenção mais detida quanto aos seus fundamentos: 1) os candidatos beneficiados são juridicamente responsáveis por ato de terceiros, ainda que não tenha qualquer participação comprovada; 2) para imputar a responsabilidade ao beneficiário e, assim, aplicar-lhe as sanções cabíveis (multa, cassação do registro e do mandato e inelegibilidade), o TSE dispensa a necessidade de demonstração do nexo de causalidade material ou físico entre a conduta e o resultado (mácula do pleito e/ou vontade do eleitor), bastando apenas o nexo de causalidade lógico-argumentativo.

Diante disso, Marilda de Paula Silveira entende que, ao manifestar tal entendimento, dispensando o elemento subjetivo e o nexo de causalidade, o TSE estaria adotando, sem expressa previsão legal, a teoria do risco integral, in verbis:

De fato, como dispensa o elemento subjetivo e o nexo de causalidade, pode-se dizer que a jurisprudência tem adotado uma responsabilidade eleitoral fundada no risco: a partir do momento em que lança sua candidatura, o candidato assume a responsabilidade por todos os atos praticados na campanha eleitoral. Independentemente de seu prévio conhecimento, de sua participação ou do elemento subjetivo com que atue, ele assumiria as consequências de todos os atos praticados ao longo de sua campanha eleitoral.

[...]

Ademais, a excepcionalidade e o extremo dessa medida exigem previsão normativa específica. Para dispensar o nexo de causalidade seria necessário encontrar referência expressa a esse formato de responsabilidade no art. 73 da Lei 9.504/97 e no art. 22 da LC 64/90, o que não ocorre. Com todo o respeito que merecem as opiniões contrárias, tais dispositivos não fornecem elementos sequer para sustentar a responsabilidade objetiva – que dispensa apenas o elemento subjetivo, repita-se.

[...]

De todo modo, independentemente da vertente de responsabilidade que se adote (objetiva ou subjetiva) nenhuma delas prescinde do nexo de causalidade. A imputação de responsabilidade pressupõe, em qualquer hipótese, a identificação do nexo de causalidade entre o dano e o ato ou comportamento danoso. Não se pode desprezar a causalidade para impor uma “consequência” ou sanção, seja ao responsável, seja ao beneficiário do ato lesivo, pois seria indevida a imposição de responsabilidade sobre àquele que não participou da produção do resultado.[33]

De fato, as conclusões transcritas são pertinentes e palpitantes, afinal, diante do paradigma do Estado Democrático de Direito e das garantias fundamentais que lhe são inerentes, inclusive em relação ao indivíduo no exercício de seu legítimo direito de cidadania, seria admissível, sob o pálio do objetivo de restaurar a legitimidade do pleito, o sancionamento “pessoal” de candidato beneficiado (multa e inelegibilidade), dispensando a comprovação/verificação da culpa e do nexo de causalidade entre o dano e o ato ou comportamento de terceiro? 

O desenvolvimento da resposta de instigante questionamento demanda uma espécie de depuração dos fundamentos lançados pela jurisprudência do TSE e pela doutrina que admitem a responsabilidade do beneficiário por ato de terceiro a partir dos efeitos jurídicos das sanções correspondentes.

Partindo-se do pressuposto de que o direito eleitoral é regido por um sistema peculiar que assegure o reestabelecimento da legitimidade do pleito, ainda que tal objetivo resulte em “efeito colateral” para aqueles candidatos que não são efetivamente culpados pelo ilícito, a responsabilização do beneficiário do ato (com a dispensa da prova da culpa e do nexo de causalidade material) fica destituída de sentido nos casos em que não há cassação do registro ou do diploma, uma vez que, nessas situações, não se fala em legitimidade do pleito a ser restaurada[34].

Em se tratando de cominação de multa ou declaração de inelegibilidade há, tão somente, a sanção pessoal do candidato. Daí, diante da inexistência de legitimidade ou lisura do pleito a ser restabelecida, resta ausente qualquer substrato ou fundamentação jurídica para o sancionamento do indivíduo beneficiário.

É de se reconhecer, de forma alvissareira, no tocante à cominação de multa decorrente da realização de propaganda eleitoral extemporânea (art. 36, §3º, da Lei nº 9.504/1997), que o Tribunal Superior Eleitoral reputa ser exigível, ao menos, a comprovação de seu “prévio conhecimento”, o que demonstra certa amenização do entendimento anteriormente exposto.

1. Na análise das condutas vedadas, necessária a avaliação criteriosa com absoluta observância do princípio da razoabilidade, que deve nortear a boa aplicação da lei.

[...]

 6. Para a configuração da conduta vedada indicada no inciso III do art. 73 da Lei nº 9.504/1997, não se pode presumir a responsabilidade do agente público.

[...]

 9. Para aplicação da penalidade prevista no § 3º do art. 36 da Lei no 9.504/1997, há que ser comprovado o prévio conhecimento do beneficiário. Precedentes.[35] (grifou-se)

[...]

 2. O prévio conhecimento somente se mostra imprescindível para apurar a responsabilidade do beneficiário - e não da emissora - por eventual veiculação de propaganda eleitoral extemporânea, irregular ou na Internet, como previsto nos arts. 36, 37 e 57-A e seguintes da Lei das Eleições.[36] [grifou-se]

[...].

 1. O beneficiário da propaganda antecipada pode ser por ela responsabilizado desde que provado o prévio conhecimento[37]. [grifou-se]

Outrossim, se não está a se falar em cassação do registro[38] ou cassação do mandato[39], não haverá objetivo de restauração de legitimidade do pleito e, dessarte, para a aplicação da sanção ao candidato meramente beneficiado por ato de terceiro, não poderá ser admitida a utilização das mesmas premissas que lastreiam a desnecessidade de comprovação da participação (culpa) e do nexo de causalidade material entre a conduta e o resultado. Forte nesses argumentos, cabe indicar a existência de emblemático julgado do TSE:

9.   Deve ser feita distinção entre o autor da conduta abusiva e o mero beneficiário dela, para fins de imposição das sanções previstas no inciso XIV do art. 22 da LC nº 64/90. Caso o candidato seja apenas benificiário da conduta, sem participação direta ou indireta nos fatos, cabe eventualmente somente a cassação do registro ou do diploma, já que ele não contribuiu com o ato.[40] [grifou-se]

Há que se ter em mente que o sancionamento correspondente à inelegibilidade é de extrema gravidade para o indivíduo, porquanto lhe retira, temporariamente, o exercício da cidadania passiva, vedando, assim, o direito de ser representante do povo no Poder e, sob outro prisma, o direito de outros cidadãos em votar naquele indivíduo que consideram o mais adequado para o desempenho do mandato. Logo, não se pode olvidar a incidência na hipótese dos primados mais caros do Estado Democrático do Direito: devido processo legal (em todas as suas dimensões), segurança jurídica e proteção à cidadania (não apenas sob o ponto de vista coletivo como também individual).

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Sobre o autor
Victor Aguiar Jardim de Amorim

Doutorando em Constituição, Direito e Estado pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Professor de pós-graduação do ILB, IDP, IGD, CERS e Polis Civitas. Por mais de 13 anos, atuou como Pregoeiro no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (2007-2010) e no Senado Federal (2013-2020). Foi Assessor Técnico da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações, constituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19/2013, responsável pela elaboração do PLS nº 559/2013 (2013-2016). Membro da Comissão Permanente de Minutas-Padrão de Editais de Licitação do Senado Federal (desde 2015). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras "Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência" (Editora do Senado Federal) e "Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019" (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Victor Aguiar Jardim. Responsabilidade eleitoral: definição e problemática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6234, 26 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47434. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Artigo originalmente publicado da Revista Estudos Eleitorais (ISSN 1414-5146), vol.10, n° 3, setembro/dezembro 2015.

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