Capa da publicação Quando pessoa com foro por prerrogativa de função liga para um telefone interceptado legalmente: o que acontece?
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A serendipidade heterogênea nas interceptações telefônicas em foro por prerrogativa de função.

O que ocorre quando uma pessoa que tem foro por prerrogativa de função liga para um telefone interceptado legalmente

23/03/2016 às 09:25
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Após a adoção da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, logo se percebeu que sua adoção de forma absoluta poderia causar várias inconveniências e injustiças, portanto, foram formuladas várias teorias que são verdadeiras exceções à teoria da prova ilícita por derivação.

Sumário: 1.Hipóteses de serendipidade. 2. Soluções jurídicas possíveis. 3. Limitações à teoria dos frutos da árvore envenenada (the fruit of the poisonous tree). 4. As teorias que legitimam a serendipidade heterogênea.


1. HIPÓTESES DE SERENDIPIDADE

O termo serendipidade foi formulado a partir do conto de fada “Os três príncipes de Serendip”, cujos heróis sempre faziam descobertas, acidentalmente ou por sagacidade, de coisas que não procuravam.

Imaginem as seguintes situações de ordem prática.

Fato nº 1: No ano de 2005, uma jovem de apenas 15 anos foi encontrada assassinada e estuprada. Após exaustiva investigação, no ano de 2007, o inquérito policial foi arquivado por absoluta ausência de indícios que indicassem a autoria.

Fato nº 2: No ano de 2010, Tício foi assassinado. Um inquérito policial foi aberto com escopo de investigar o principal suspeito, Mévio.

No curso da investigação criminal, o delegado ofertou uma representação com objetivo de ser autorizada a interceptação telefônica nos telefones de Mévio.

A interceptação foi autorizada para investigar o crime de homicídio cujo agente passivo era Tício. Ao final do inquérito, ao ler as degravações, o promotor teve uma grande surpresa. Nada foi descoberto em relação à morte de Tício, mas Mévio confessava detalhes de como tinha assassinado e estuprado a menina de 15 anos no ano de 2005 e ainda ameaçava duas testemunhas que supostamente tinham presenciado o crime.

Fato nº 3: A interceptação foi autorizada para investigar o crime de homicídio cujo agente passivo era Tício, no curso da interceptação, descobriu-se um crime cometido por alguém que tem foro por prerrogativa de função.


2- SOLUÇÕES JURÍDICAS POSSÍVEIS

O fato nº 1 não tem a mínima conexão com o fato nº 2, mas, de posse das degravaçãos, o promotor requereu o desarquivamento do inquérito policial que investigava o fato nº 1, requerendo ainda a oitiva das duas testemunhas que supostamente tinham presenciado o crime.

Com o depoimento das testemunhas indicadas por Mévio na interceptação, enfim o crime foi desvendado e o autor denunciado e preso preventivamente.

O advogado interpôs um habeas corpus com fito de trancar a ação penal e decretar a nulidade de todo o processo, argumentando que o fato nº 1 não tem a mínima conexão com o fato nº 2, portanto, os elementos informativos colhidos na interceptação telefônica não poderiam ser usados para desarquivar o inquérito.

E agora, o que o órgão julgador deverá fazer?

Hipótese 1: anular o processo e o fato nº 1 ficar impune.

Hipótese 2: não anular o processo e aceitar como válidos, mesmo na ausência de conexão, os elementos informativos colhidos na interceptação telefônica.

Solução jurídica: o tema é complexo e enseja grande controvérsia. Temos que enfrentar o tema serendipidade na produção de provas no processo penal.

Em análise didática, o caso relatado no fato nº 1 e 2, foi desvendado por serendipidade heterogênea, ou seja, estamos diante de um encontro fortuito de provas em que o fato 01 não tem relação com o 02.

O jurista Luiz Flávio Gomes só admite o encontro fortuito de provas caso exista conexão entre os fatos:

“(...) se o fato objeto do ‘encontro fortuito’ é conexo ou tem relação de continência (concurso formal) com o fato investigado, é válida a interceptação telefônica como meio probatório, inclusive quanto ao fato extra descoberto.”

Portanto, segundo o entendimento do renomado jurista supracitado, caso a serendipicidade não seja heterogênea, ou seja, não exista conexão entre os fatos, a prova é ilícita.

Na realidade, essa é a reprodução do entendimento jurisprudencial do Direito Espanhol, que afirma: “a prova assim alcançada tem valor jurídico desde que o fato encontrado fortuitamente guarde conexão com o fato investigado”.


3- LIMITAÇÕES À TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA (THE FRUIT OF THE POISONOUS TREE)

Defendo no livro Curso de Processo Penal (ainda no prelo) que, após a adoção da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (Fruits of the Poisonous Tree), logo percebeu-se que sua adoção de forma absoluta poderia causar, no contexto prático, várias inconveniências e injustiças, portanto, foram formuladas várias teorias que são verdadeiras exceções à teoria da prova ilícita por derivação.

Entre elas, podemos citar:

a) Primeira exceção: Teoria da Fonte Independente (An independent source);

b) Segunda exceção: Princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade ou proibição de excesso);

c) Terceira exceção: Teoria da Descoberta Inevitável (The Inevitable Discovery Limitation).

d) Quarta exceção: Teoria da Boa-fé (The Good Faith Exception);

e) Quinta exceção: Teoria do Nexo Causal Atenuado ou “Limitação da Descontaminação” (The Purged Taint Limitation);

f) Sexta exceção: Teoria do Encontro Fortuito de Provas.


4- AS TEORIAS QUE LEGITIMAM A SERENDIPIDADE HETEROGÊNEA

Entendemos que, das teorias supracitadas, duas legitimam o uso da serendipidade heterogênea, quais sejam:

1. Teoria da Boa-fé (The Good Faith Exception)

Segundo a teoria, deve ser considerada válida a prova obtida ilegalmente, caso seja demonstrado que esta foi produzida de boa-fé. Argumenta-se que o não aproveitamento da prova ilícita tem como escopo reprimir e não incentivar as práticas de má-fé na produção dos elementos informativos por parte da polícia, portanto, se a produção foi de boa-fé, a prova deve ser aproveitada. A teoria se originou nos Estados Unidos no caso United States v. Leon, de 1984.

Exemplo didático: No Brasil, houve um caso em que o STF aceitou a Teoria da Boa-fé. Foi no caso PC Farias, em que policiais, no cumprimento de mandado judicial para apreensão específica de documentos, levaram também os computadores para averiguar se estes eram objetos materiais do delito de descaminho. Posteriormente, houve perícia nos computadores e descobriram-se novas provas do crime investigado, e duas teses foram produzidas:

a) Os advogados alegaram que as provas colhidas nos computadores eram ilícitas por derivação (Fruits of the Poisonous Tree);

b) o Ministério Público alegou que a apreensão ilegal dos computadores foi realizada de boa-fé pelos policiais, que tinham como objetivo investigar outro crime.

2. Teoria do Encontro Fortuito de Provas

Segundo esta teoria, caso a autoridade investigante encontre casualmente provas de outro crime no curso do desdobramento plenamente lícito de uma investigação, essas provas não podem ser consideradas ilícitas.

Exemplo didático: O delegado Tício obteve uma autorização judicial para interceptar o telefone de Mévio. Considere as hipóteses infracitadas:

a) Mévio era investigado por tráfico de entorpecentes;

b) A interceptação telefônica descobriu provas de que Mévio era traficante e também exercia ilegalmente a profissão de médico.

Pergunta-se: Além do tráfico de drogas, Mévio pode ser denunciado pelo delito de “exercício ilegal da medicina”?

Resposta: Para responder o caso, você tem que saber:

a) O crime de “exercício ilegal da medicina” é punido com detenção.

b) A Lei nº 9.296/1996 (“Lei que disciplina e uniformiza as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação de comunicações telefônicas”) proíbe a interceptação de comunicações telefônicas quando o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção (vide art. 2º, inciso III).

Solução jurídica: As provas do crime de “exercício ilegal da medicina” seriam ilícitas, mas usando a Teoria do Encontro Fortuito de Provas, tais provas não podem ser consideradas ilegais.

O STJ tratando sobre a quebra de sigilo de dados, já validou a possibilidade de utilização dos dados obtidos mesmo que não se trate do crime objeto da investigação, in verbis:

[...] o fato de as medidas de quebra do sigilo bancário e fiscal não terem como objetivo inicial investigar o crime de peculato não conduz à ausência de elementos indiciários acerca do referido crime, podendo ocorrer o que se chama de fenômeno da serendipidade, que consiste na descoberta fortuita de delitos que não são objeto da investigação. (HC 282.096/SP. Sexta Turma. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Publicado no DJ de 06/05/2014).

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Ante o exposto, entendemos que, usando a Teoria da Boa-fé e a Teoria do Encontro Fortuito de Provas, podemos sim legitimar a serendipidade, e, mesmo na ausência de conexão entre os fatos, os elementos informativos colhidos na interceptação telefônica do fato nº 2 são válidos e podem ser livremente usados como prova no fato nº 1.

A Teoria da Boa-fé e a Teoria do Encontro Fortuito de Provas, podem ser usadas na solução jurídica do fato 03, pois embora o juiz não tenha competência para autorizar uma interceptação no telefone de alguém que com foro por prerrogativa de função, a provas ou os elementos informativos colhidos são válidos, foram colhidos no processo de serendipidade heterogênea.

No caso supracitado, caso exista indícios de crime cometido pala pessoa que tem foro por prerrogativa de função, o juiz deve remeter os autos, com fulcro no artigo 78 do Código de Processo Penal,[2] a jurisdição de maior graduação.

Em conclusão, colaciono as sábias palavras de Sergio Demoro Hamilton[3]

 “(...) n) a exclusionary rule (princípio da exclusão do processo de prova obtida ilicitamente) não é tomada em termos absolutos nem mesmo nos Estados Unidos, onde inocorre unanimidade a respeito de sua adoção; o) os direitos e garantias assegurados na Constituição Federal não podem revestir sentido absoluto, diante do princípio da convivência da liberdade, impondo-se, por tal motivo, uma interpretação harmônica dos bens jurídicos em contraste. É caso da aplicação do brocardo segundo o qual ‘meu direito termina onde começa o do próprio’; p) a Constituição Federal protege o direito, não o abuso de direito; q) a Lei Maior, como de resto qualquer lei, deve apresentar um caráter eminentemente ético, não podendo servir de instrumento para proteger toda sorte de abusos praticados por marginais da pior espécie, em nome da defesa dos direitos e garantias individuais de criminosos;(...)”.

A jurisprudência começa a enfrentar o tema:

“É perfeitamente possível a prisão em flagrante e o início de inquérito policial após o chamado ‘encontro fortuito de provas’, ou seja, quando as informações da prática criminosas são obtidas em outra investigação em andamento, ainda que por meio de interceptação telefônica. O pedido de exame toxológico é faculdade do juízo, não configurando cerceamento de defesa a sua não realização. Ordem prejudicada em relação à prisão e denegada em relação aos demais fundamentos.” (TJ-ES; HC 100100001070; Primeira Câmara Criminal; Relª Desª Subst. Heloisa Cariello; DJES 28.06.2010, p. 43)


Notas

[1] Sig. Ing. serendipity antigo nome do Sri Lanka, + suf. ing. -ity, palavra cunhada, em 1754, por Horace Walpole, 1717-1797, escritor inglês.

[2] III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação;

[3] (HAMILTON, Sergio Demoro. As provas ilícitas, a teoria da proporcionalidade e a autofagia do Direito. In: Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: PGJRJ, nº 11, p. 264-265, jan./jun. 2000).

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Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Francisco Dirceu. A serendipidade heterogênea nas interceptações telefônicas em foro por prerrogativa de função.: O que ocorre quando uma pessoa que tem foro por prerrogativa de função liga para um telefone interceptado legalmente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4648, 23 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47570. Acesso em: 2 nov. 2024.

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