Conflitos da Lei de Repatriação

29/03/2016 às 15:48
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O artigo trata de possível inconstitucionalidade e ilegalidade na Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016, notadamente em seu art. 6º, § 4º e art. 7º, § 2º.

 

 

O artigo trata de possível inconstitucionalidade e ilegalidade na Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016, notadamente em seu art. 6º, § 4º  e art. 7º, § 2º, a qual serviu de base para representação apresentada por este autor ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público Federal.

 

Lei 13.254/2016, popularmente conhecida como Lei da Repatriação, instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT). A nova legislação permite que recursos, com origem lícita, de pessoa física ou jurídica que tenham sido transferidos ou mantidos no exterior sem terem sido declarados oficialmente, ou declarados com omissão ou incorreção, possam ser regularizados com benefícios diversos.

 

O único tributo previsto sobre os referidos recursos é o Imposto de Renda, com alíquota de 15%, mais uma multa de igual percentual, totalizando 30%. Quem regularizar o patrimônio até então não declarado fica isento de todos os demais tributos federais e penalidades aplicáveis por outros órgãos regulatórios que poderiam ter incidido sobre os fatos geradores relacionados, se ocorridos até 31 de dezembro de 2014.

 

Outrossim, quem aderir será anistiado de diversos crimes tributários,  além de outros previstos em leis específicas, como falsidade de documentos público e particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, manutenção de depósitos no exterior, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

 

Para adesão, o contribuinte deverá preencher uma específica declaração de regularização instituída pela Receita Federal do Brasil (RFB), com descrição pormenorizada dos ativos a serem regularizados, além de pagar o imposto e multa devidos.

 

Entretanto, a referida Lei traz aparentes afrontas à Constituição Federal, Lei de Responsabilidade Fiscal e Código Tributário Nacional, as quais podem impactar na arrecadação e finanças de União, Distrito Federal, Estados e Municípios, conforme demonstrado a seguir.

 

1. DA LEI 13.254/2016, ART. 6º, § 4º.

 

1.1 Infração ao CTN, art. 180, inc I

 

A Lei nº 13.254/2016, em seu art. 6º, § 4º, estabelece:

 

Art. 6º  (...)

(...)

§ 4º  A regularização dos bens e direitos e o pagamento dos tributos na forma deste artigo e da multa de que trata o art. 8º implicarão a remissão dos créditos tributários decorrentes do descumprimento de obrigações tributárias e a redução de 100% (cem por cento) das multas de mora, de ofício ou isoladas e dos encargos legais diretamente relacionados a esses bens e direitos em relação a fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2014 e excluirão a multa pela não entrega completa e tempestiva da declaração de capitais brasileiros no exterior, na forma definida pelo Banco Central do Brasil, as penalidades aplicadas pela Comissão de Valores Mobiliários ou outras entidades regulatórias e as penalidades previstas na Lei no 4.131, de 3 de setembro de 1962, na Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, e na Medida Provisória no 2.224, de 4 de setembro de 2001.

 

Pelo exposto, a regularização dos bens e direitos, feita de acordo com o art. 6º, implicará na remissão dos respectivos tributos e anistia de suas penalidades. Por se tratar de lei ordinária federal e considerando que esta mesma regularização afastará a aplicação de crimes de sonegação de contribuição previdenciária (vide art. 5º, inc III), dúvidas não há de que a remissão e anistia alcançarão todos os tributos federais, estando aí incluídos, dentre outros, o IPI, PIS, CONFINS e a própria Contribuição Previdenciária.

 

Contudo, como se já não fosse questionável o fato de se abrir mão de recursos previdenciários em nome de um possível incremento no Imposto de Renda, o art. 6º, § 4º da Lei 13.254/2016 traz aparente violação à legislação complementar que rege o direito tributário brasileiro.

 

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 146, inc. III, definiu que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. Por força do disposto no art. 34, §5º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o CTN - Código Tributário Nacional - Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, foi recepcionado como cumpridor das referidas funções de lei complementar.

 

Desta forma, sobre anistia tributária, o CTN, em seu art. 180, inc. I, regula:

 

Art. 180. A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede, não se aplicando:

 

                                             I - aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele;

 

A Lei nº 13.254/2016, ao tratar da regularização de ativos não declarados, está, em tese, tratando de atos tipificados como crime ou contravenção em legislações diversas, haja vista as diversas extinções de punibilidade estipuladas em seu art. 5º, não raro relacionadas a ações praticadas com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo de impostos.

 

Logo, quando o art. 6º, § 4º da Lei 13.254/2016 estende sobre tais atos o fenômeno da anistia tributária, tem-se uma inegável afronta ao art. 180, inc. I do CTN.

 

 

1.2 Infração à LRF, arts. 1º e 14

 

Outra possível irregularidade incidente sobre o mesmo § 4º seria o desatendimento a dispositivos diversos da Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF).

 

A LRF limita a ação do legislador na concessão de incentivos de natureza tributária nos termos do art. 14, que assim prescreve:

 

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

 

I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

 

II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

 

§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

 

§ 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de  trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.

 

§ 3º O disposto neste artigo não se aplica:

 

I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1º;

 

II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.

 

Como se vê, o art. 14 da LRF objetiva uma gestão fiscal responsável a fim de prevenir situações de desequilíbrio orçamentário. É necessário que cada proposta de renúncia de receita, seja na forma de remissão ou anistia, venha acompanhada de minucioso planejamento de seu impacto, feito de forma transparente, em sintonia com o disposto no art. 1º da LRF:

 

 Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.

§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

§ 2º As disposições desta Lei Complementar obrigam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

 

Todavia, no caso da Lei nº 13.254/2016, a Mensagem de seu respectivo Projeto de Lei nº 2.960, de 2015[1], traz, como única menção de impacto financeiro, uma genérica estimativa de arrecadação de 100 a 150 bilhões de reais, a qual se daria exclusivamente através do Imposto de Renda. Isto é, mesmo determinando uma ampla remissão e anistia tributária, com possível consequência sobre a arrecadação da Previdência Social, não se faz qualquer menção de atendimento aos requisitos dispostos pelo arts. 1º e 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

Seria extrema ingenuidade acreditar numa justificativa de que o estudo de impacto financeiro é desnecessário porque tais recursos, em condições normais, se manteriam fora do Brasil, nunca ingressando em nossos cofres. Pois a Suíça, possível destino da maior parte do dinheiro mantido clandestinamente no exterior, porá fim ao sigilo bancário de seus clientes estrangeiros a partir de janeiro de 2018[2], junto com outros 34 países, passando a automaticamente trocar informações bancárias com autoridades fiscais internacionais, o que, por certo, possibilitaria à nossa Receita Federal a identificação de vultuosa sonegação. Além disso, ações policiais recentes, que desbarataram poderosas redes de doleiros, revelaram e ainda estão por revelar volumosos recursos remetidos clandestinamente ao exterior, os quais inevitavelmente serão objeto de cobrança pela Receita Federal (se já não estão sendo).

 

Outro erro seria crer que o possível impacto financeiro de tal medida será sempre positivo. No ano de 2015[3], aproximadamente para cada R$ 1,50 arrecadado em Imposto de Renda, outros R$ 1,36 foram arrecadados em COFINS e R$ 2,38 em Receita Previdenciária. Assim, a primeira vista, é possível inferir que, se o RERCT traz uma expectativa de arrecadação de 150 bilhões de reais em Imposto de Renda, podemos, por outro lado, até estar renunciando a arrecadação de outros 374 bilhões de reais, dos quais 238 bilhões seriam de Receita Previdenciária que deixaria de custear as aposentadorias dos trabalhadores brasileiros.

 

Vê-se, portanto, que o tema é grave e de enorme complexidade, principalmente diante do quadro de crise nas finanças da Previdência Social, amplamente divulgado pelo próprio Executivo Federal. Neste cenário, a falta de demonstração clara das consequências dessa renúncia de receitas viola frontalmente a própria ratio legis da LC 101/00, exposta em seu artigo 1º, e detalhada em seu art. 14.

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2. DA LEI 13.254/2016, ART. 7º, § 2º 

 

2.1 Infração à CF, art. 37, inc XXII e art. 145, § 1º 

 

Outro item da Lei 13.254/2016 que merece nosso reparo é o seu art. 7º, § 2º , in verbis:

 

 § 2º  Sem prejuízo do disposto no § 6º do art. 4º, é vedada à RFB, ao Conselho Monetário Nacional (CMN), ao Banco Central do Brasil e aos demais órgãos públicos intervenientes do RERCT a divulgação ou o compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes que tiverem aderido ao RERCT com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive para fins de constituição de crédito tributário.

 

Referido dispositivo estabelece uma proibição de compartilhamento de informação com Estados, Distrito Federal e Municípios, até mesmo para fins tributários. Desta forma, busca-se impedir que os demais Fiscos tenham acesso à “declaração única de regularização específica”, apresentada pelo contribuinte, a qual conteria a descrição dos ativos regularizados e sua origem  (vide Lei 13.254/2016, art. 4º, caput).

 

Ocorre, porém, que tal vedação contraria o disposto em nossa Carta Magna, em seu art. 145, § 1º :

Art. 145. (...)

(...)

§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

                                                                  

A Constituição faculta à administração tributária, sem distinção, o poder de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, ou seja, o único limite constitucional ao trabalho da fiscalização é o do "respeito aos direitos individuais", cabendo à lei apenas estabelecer os seus termos, ou, em outras palavras, a forma como se deve dar a busca de informação. Não pode, portanto, uma lei ordinária impedir que os fiscos dos diferentes entes da União tenham acesso a informações do RERCT que, por si só, não configura violação de qualquer direito individual, uma vez que eles próprios já seriam obrigados a manter o seu sigilo.

 

A propósito, o Supremo Tribunal Federal (STF), recentemente, ao analisar o mérito do fisco ter acesso a informações bancárias sem precisar de autorização judicial, também deixou bem claro a amplitude do poder do fisco outorgada pela Constituição (ADIns 2390, 2386, 2397 e 2859 e o RE 601.314).

 

Ademais, especificamente em relação à Receita Federal do Brasil (RFB), a Constituição Federal, em seu art. 37, inc. XXII, escancara o dever desta entidade de colaborar com as fazendas dos demais entes:

 

Art. 37. (...)

(...)

XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.

                                                                        

A Constituição impõe o compartilhamento de informações entre os diferentes fiscos, cabendo à lei (ou convênio) apenas determinar o formato desse compartilhamento, isto é, determinar os procedimentos necessários a sua ocorrência. Logo, não pode uma lei ordinária estabelecer qualquer tipo de vedação nesse sentido, ficando evidente, mais uma vez, a inconstitucionalidade do art. 7º, § 2º da Lei 13.254/2016, principalmente em sua parte final: "inclusive para fins de constituição de crédito tributário".

 

CONCLUSÃO

 

Isto posto, considerando que a Lei 13.254/2016:

 

- em seu art. 6º, § 4º, possivelmente infringiu o CTN, art. 180, inc. I, e a LRF, arts. 1º e 14;

 

- e em seu art. 7º, § 2º, possivelmente infringiu a CF, art. 37, inc. XXII e art. 145, § 1º.

 

E considerando, ainda, o impacto indireto de tais regramentos, via renúncia à arrecadação de tributos diversos ou via cerceamento do trabalho arrecadatório dos Estados, Distrito Federal e Municípios, torna-se premente a devida análise do mérito pelo Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal, assim como o avançar da questão ao crivo do Poder Judiciário.

 

Vitória, 29 de março de 2016.

 


[1] Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1715687Acesso em: 27.03.2016

[2] Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151101_suica_dinheiro_lk Acesso em: 27.03.2016

[3] Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2015/agosto2015/analise-mensal-ago-2015.pdf Acesso em: 27.03.2016

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Sobre o autor
Alexandre Gomes Nunes

MBA em Direito Tributário (FGV),ex-Fiscal de Tributos Municipais de Maceió-AL, ex-Auditor Fiscal do Município de São Paulo-SP, atual Auditor Fiscal de Tributos Municipais em Vitória-ES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Publicações anteriores: NUNES, Alexandre Gomes. Cartórios: ISS calculado sobre o preço do serviço. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2155, 26 maio 2009. NUNES, Alexandre Gomes. Responsabilidade tributária de ISS sobre ente público. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1101, 7 jul. 2006.

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