O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter “constitutivo” e não regulamentar” daquilo que é punível [...].[1]
A decisão liminar nos autos da Medida Cautelar na reclamação 23.457, proferida pelo ministro Teori Zavascki, tem o condão de restabelecer a ordem constitucional, ao menos momentaneamente e no que tange ao respeito à prerrogativa de foro, antes de tudo, garantia do cargo funcional, que ultrapassa a pessoa detentora da prerrogativa, constituindo-se como verdadeiro manto para o bom e fiel cumprimento do dever republicano (funcional). O foro por prerrogativa de função há ser respeitado em conformidade com as diretrizes constitucionais e, ainda, por representar manifestação do juiz natural.
É de se dizer, logo nesta abertura, que os autores deste texto não estão a analisar os fatos concretos da vida que ensejam as investigações mencionadas; não estão a acusar e nem a defender quem quer que seja, estão, tão somente, preocupados com o processo penal, que vem sendo solapado diariamente.[2] O direito penal é do fato e não do autor, de sorte que as pessoas não podem ser julgadas nem de forma mais grave nem de forma mais branda por serem quem são.
A preocupação, efetivamente, não se dirige a pessoas, mas ao esvaziamento da garantia da legalidade estrita e às próprias regras processuais. Assiste-se a uma escalada de emergência, pseudofundamentada, seja pela vulgarização de delações sem respeitar a legalidade[3], seja pela mudança de entendimento a respeito do momento de início de cumprimento de pena[4], seja pelo famigerado e malfadado pacote de medidas anticorrupção[5] (invulgar coletânea de inconstitucionalidades).
Nessa senda, a República assistiu à publicação de áudio, o qual consta conversa entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a atual presidente da República, Dilma Rousseff. O que causou espanto foi a autoridade que chancelou a publicação: um juiz de primeiro grau. Independente da capacidade técnica e da popularidade que ostenta, cuida-se de juiz de primeiro grau. E até onde se sabe, a mesmíssima Constituição da República, que consagra o Poder Judiciário, prevê o foro privilegiado (prerrogativa de função).
Conforme se depreende da leitura do decisum, o juízo reclamado deveria ter encaminhado os autos ao Supremo Tribunal Federal, no exato momento em que diálogos entre o investigado Luiz Inácio Lula da Silva e autoridades com prerrogativas de função (Ministros e Presidente da República), vieram à tona. Isso porque, somente a corte máxima do país possui legitimidade, competência, cabedal teórico e jurídico para decidir questões que envolvam, mesmo que de forma diminuta, tais autoridades. Repita-se: não se trata de benesse pessoal, a prerrogativa é funcional. Cuida-se de garantia da função. Ao fim e ao cabo, revela-se como garantia da República e do Regime Democrático.
A reflexão que deve ser realizada pelos cidadãos, juristas ou não: por que o juízo processante não remeteu imediatamente as gravações (que envolviam um recém nomeado, mas ainda não empossado ministro e a presidente da república) ao Supremo Tribunal Federal? Deve-se analisar se a gravação foi captada legalmente. Por outro lado, as circunstâncias em que as declarações tornaram-se públicas denotam verdadeira e lastimável afronta aos direitos e garantias constitucionalmente previstos. Em verdade, o conteúdo da gravação somente pode ser considerado, para qualquer fim de direito, se for reputado válido, o que, efetivamente, não foi.
Quanto à manifesta incompetência do Juízo reclamado, asseverou o ministro:
“6. Embora a interceptação telefônica tenha sido aparentemente voltada a pessoas que não ostentavam a prerrogativa de foro por função, o conteúdo das conversas – cujo sigilo, ao que consta, foi levantado incontinenti, sem nenhuma das cautelas exigidas em lei – passou por análise que evidentemente não competia ao juízo reclamado”. (Obs: original não contem os destaques).
Sobre as cautelas, há de se ter em mente que o interesse (aparentemente) público não pode justificar a violação às regras processuais. O processo penal, em muitos casos, para ser democrático, assume uma feição contra majoritária, consoante adverte CROZARA:[6]
“A posição mais acentuada do Poder Judiciário, através da jurisdição constitucional,representado na importância do controle difuso de constitucionalidade, constitui, como defende Rogério Bento, na função contra-majoritária de defesa da superioridade constitucional, valorizando a prática democrática de coerência na proteção dos direitos humanos supra-estatais”
Com efeito, não há que se falar nem mesmo em “quebra” de sigilo telefônico: o que existe é uma transferência do sigilo dos dados das companhias telefônicas para os agentes de controle, que devem guardar sigilo, máxime pela inexistência de contraditório em relação a tais elementos. Nunca é demais recordar e registrar que publicidade, no processo penal, não se confunde com denuncismo nem alarmismo, muito menos com (pré)julgamentos. Os que não enxergam no processo um problema in reipsa sabem que, no processo penal, a publicidade surgiu como uma garantia pro reo, como desdobramento do sistema acusatório (se é que ele existiu algum dia). Aliás, outra parte lapidar da decisão assim constata:
Em primeiro lugar, porque emitida por Juízo que, no momento da prolação, era reconhecidamente incompetente para a causa, ante a constatação, já confirmada, do envolvimento de autoridades com prerrogativa de foro, inclusive a própria presidente da República (...).
A lei regência (Lei 9.269/1996), além de vedar expressamente a divulgação de qualquer conversação interceptada (art. 8º), determina a inutilização das gravações que não interessem à investigação criminal (art. 9º). Não há como conceder, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal. Contra essa ordenação expressa, que – repita-se, tem fundamento de validade constitucional – é descabida a invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoa pública dos interlocutores atingidos, como se essas autoridades, ou seus interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua intimidade e privacidade (obs: o original não contem destaques).
Ponto importante da decisão ora em análise diz respeito ao seguinte trecho:
“... teve decisão de deferimento em 19.2.2016 e sucessivos atos confirmatórios e significamente ampliativos, em 20.2.2016, 26.2.2016, 29.2.2016, 3.3.2016, 4.3.2016 e 7.3.2016, sempre com motivação meramente remissiva, tornando praticamente impossível o controle, mesmo a posteriori, de interceptações de um sem número de ramais telefônicos.”
Percebe-se do excerto acima reproduzido constatação, mesmo que provisória, da violação ao dever fundamental de motivação dos atos. Cuida-se de imperativo essencial, não somente para a garantia do acusado/investigado, mas, sobretudo, para o posterior controle das decisões prolatadas. Assim, fundamentar é o primeiro passo para o fiel e necessário respeito à Constituição. Decisões carentes de fundamentação (e aí se inclui o caso da motivação remissiva) ignoram os mais comezinhos princípios da Constituição de 1988, tornando arbitrário todos os atos decorrentes de tal “decisão”.
A decisão discorre ainda sobre o conceito de “reserva legal qualificada”. Quer isto dizer que o direito fundamental à privacidade/intimidade não pode ser afastado por qualquer autoridade judicial. Por mais projeção e aparente apoio da opinião publicada, trata-se o juiz que coordena a operação “lava jato”, de juiz de primeiro grau, incompetente, pois, para valorar interceptações as quais contam com participação de autoridades com prerrogativa de foro.
Além disso, a decisão liminar concedida pelo ministro Teori assinala a importância de respeito à intimidade/privacidade. Não sem razão, assinala o decisum a premente necessidade de fazer valer tais garantias fundamentais. Mesmo figuras públicas, que anuem com a diminuição de sua esfera de privacidade, mesmo essas merecem ser tratadas conforme os ditames da Carta Maior. Assim, invocar o suposto e falacioso interesse público para menoscabar tais preceitos não se coadunam com o Estado Democrático de Direito.
Nem se argumente, como alguns pretendem, que a situação de exceção, pela grandiosidade da investigação, justifica o aviltamento da legalidade estrita e da taxatividade, regras básicas e mínimas do estado de direito. Sempre asseveramos em nossas aulas que legalidade sem anterioridade, legalidade sem taxatividade é uma garantia vazia. Não se pode fazer interpretação compreensiva, ajuste da lei a fato social ou qualquer outro tipo de fraude à legalidade. A dogmática penal não pode ceder espaço às exigências da vida prática. Sobre isso, Ferrajoli:
Enquanto o axioma de mera legalidade se limita a exigir a lei como condição necessária da pena e do delito (nullapoena, nullumcrimensine lege), o princípio da legalidade estrita exige todas as demais garantias como condições necessárias da legalidade penal (nullalexpoenalissinenecessitate, sine injuria, sineactione, sine culpa, sine judicio, sineaccusatione, sineprobatione, sinedefensione). Graças ao primeiro princípio, a lei é condicionante; graças ao segundo, é condicionada.[7]
Ainda em sede liminar, a decisão impossibilita a utilização do conteúdo interceptado em qualquer área do direito, seja penal, cível ou administrativa. A decisão liminar, apesar de precária, parece reestabelecer as regras do processo penal, que não podem ser nem reeditas e nem transgredidas sob a roupagem da exceção ou emergência.
Começamos com Ferrajoli. Com ele encerraremos, na expectativa de que o processo penal seja saneado, corrigindo os desvios que vêm acontecendo; punindo, sempre que comprovado e necessário, mas sem desrespeitar as garantias fundamentais:
“A sujeição do juiz à Lei já não é mais de fato, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da Lei, qualquer que seja o seu significado, mas sim à Lei somente enquanto válida, ou seja, coerente com a constituição. E a validade já não é, no modelo Constitucional-Garantista, um dogma ligado à mera existência formal da Lei, mas uma sua qualidade ligada à coerência – mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz – dos seus elementos com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também um juízo sobre a própria lei relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos por ela estabelecidos...” [8]
Era preciso um freio de arrumação. Não se pode vender para uma nação algo que o processo penal não pode e não deve resolver. Espera-se que a decisão liminar represente o renascimento do processo penal, e que nunca mais garantias sejam desprestigiadas, afinal, há um limite tênue entre a justiça e a barbárie. Evidentemente, as mãos de todos devem estar sempre limpas, mas que não lavemos as mãos para cumprir tal mister.
Notas
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 31.
[2] Ver, no particular, texto publicado neste site: http://www.conjur.com.br/2015-abr-14/felizmente-respeito-constituicao-problema-processo.
[3]http://www.conjur.com.br/2016-jan-19/necessidade-respeito-principio-legalidade-delacao
[4]http://www.conjur.com.br/2016-fev-17/decisao-stf-capitulo-direito-penal-emergencia
[5]http://www.bahianoticias.com.br/artigo/744-por-que-os-pacotes-anticorrupcao-sao-inocuos-ilegitimos-e-inconstitucionaisa.html
[6] Texto disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2306.pdf
[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 76.
[8] (FERRAJOLI, Luigi. O Direito como um sistema de Garantias, In O novo Direito e a Política. Ed. Livraria dos Advogados, 1997). Apud QUEIROZ, Paulo. Sobre a Função do Juiz Criminal na vigência de um Direito Penal Simbólico. Boletim do IBCCRIM, n.º 74, p. 9)