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A lei da fosfoetanolamina e o esvaziamento do papel da Anvisa

25/04/2016 às 22:45
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A Lei nº 13.269/16 autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes com neoplasia maligna, desrespeitando todas as recomendações e análises técnicas da Anvisa.

Sumário: Introdução. 1. Da Anvisa e de sua importância enquanto agência reguladora. 2. A atuação da Anvisa no que concerne ao registro de medicamentos. 3. Da fosfoetanolamina sintética e da suposta cura do câncer. 4. A fosfoetanolamina e a Nota Técnica nº 56/2015 da Anvisa. 5. A Lei da fosfoetanolamina o esvaziamento do papel da Anvisa. Conclusão. 


Introdução

O objetivo do presente trabalho é analisar criticamente a recente Lei nº 13.269/16, problematizando seu possível confronto com a Lei nº 9.782/99.

Inicialmente, serão abordados os aspectos introdutórios atinentes à Anvisa, à luz da Lei nº 9.782/99, dando-se especial atenção à sua natureza jurídica de agência reguladora e sua importância na  proteção à saúde da população por meio do controle sanitário.

Em seguida, será analisada a Lei nº 6.360/76 em conjunto com a Lei nº 9.782/99, verificando-se a atuação da Anvisa no que concerne especificamente ao registro de medicamentos.

De forma subsequente, se traçará um panorama geral acerca da fosfoetanolamina sintética e da crença sobre a suposta cura do câncer, colacionando-se, para tanto, esclarecimentos técnicos da USP (Universidade de São Paulo), do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) e da própria Anvisa.

Por fim, malgrado não seja possível (nem seja esse o objetivo do presente estudo) avaliar as consequências médicas da autorização e do uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, será analisado o confronto entre a Lei nº 13.269/16 e a Lei nº 9.782/99, constatada a nítida consequência jurídica do esvaziamento do papel da Anvisa enquanto agência reguladora.


1. Da Anvisa e de sua importância enquanto agência reguladora.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi criada em 1999, por meio da Lei nº 9.782, com o objetivo de promover a proteção à saúde da população, com o controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços, como também dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias usadas na produção, e o controle sanitário dos portos, aeroportos e fronteiras.

A Anvisa, como a sua própria lei instituidora determina, tem natureza jurídica de agência reguladora, ou seja, se trata de autarquia especial, dotada de prerrogativas próprias, com poder de polícia, e caracterizada por sua desvinculação em relação não somente aos particulares, mas inclusive ao Poder Público. Daí porque a Anvisa apresenta autonomia político-administrativa e autonomia econômico-financeira.

Esse regime de autarquia especial visa a preservar a Anvisa, enquanto agência reguladora, de ingerências indevidas, advindas de quem quer que seja. Foi conferido à agência reguladora um espaço de atuação onde devem predominar os juízos técnicos sobre as valorações políticas e as pressões sociais. 


2. A atuação da Anvisa no que concerne ao registro de medicamentos.

O registro de medicamentos no Brasil tem como fundamento a Lei nº 6.360/76, e desde a criação da Anvisa, essa atividade tornou-se sua responsabilidade. Logo, para que um medicamento venha a ser registrado e comercializado, é necessário que a Anvisa avalie a documentação administrativa e técnico-científica relacionada à qualidade, à segurança e à eficácia do medicamento.

Nesse sentido, vale colacionar o art. 16 da Lei nº 6.360, de 1976.

“Art. 16 O registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, dadas as suas características sanitárias, medicamentosas ou profiláticas, curativas, paliativas, ou mesmo para fins de diagnóstico, fica sujeito, além do atendimento das exigências próprias, aos seguintes requisitos específicos: (...)

II - que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias; III - tratando-se de produto novo, que sejam oferecidas amplas informações sobre a sua composição e o seu uso, para avaliação de sua natureza e determinação do grau de segurança e eficácia necessários”.

Então, analisada a Lei nº 6.360/76 em conjunto com a Lei nº 9.782/99, resta claro que cabe à Anvisa avaliar tecnicamente a segurança e eficácia do medicamento.  O procedimento de pesquisas científicas e de registro de medicamentos é complexo, mas em apertada síntese, destaca-se que o requerente deve, no dossiê de registro, apresentar, dentre outros documentos, relatórios de estudos não clínicos, ou seja, não realizados em seres humanos e relatórios de estudos clínicos, realizados em seres humanos, seguindo rigoroso método científico que demonstrem a atuação medicamentosa. A partir desse dossiê, a Anvisa fará uma análise pautada na relação de benefício x risco do medicamento, sendo por ela registrados os medicamentos cujos estudos comprovem que os benefícios superam os riscos.

Além dos requisitos clínicos, os medicamentos devem apresentar no dossiê garantias sobre a qualidade, o prazo de validade e condições de armazenamento. Estes requisitos são obrigatórios e o não cumprimento de especificações de qualidade consideradas imprescindíveis, pode resultar em sérias implicações na saúde dos pacientes. Dessa forma, para garantir a qualidade, a segurança e a eficácia dos medicamentos, a sua produção e liberação para o uso deve ser baseada no cumprimento da regulamentação sanitária. 


3. Da fosfoetanolamina sintética e da suposta cura do câncer.

A fosfoetanolamina é uma substância produzida pelo corpo humano e, em sua versão sintética, foi estudada de forma independente pelo professor aposentado Dr. Gilberto Orivaldo Chierice que, até 2014, por decisão pessoal e sem os rigores técnicos, doou a algumas pessoas acometidas de câncer pílulas contendo essa substância sintética para a utilização com fins medicamentosos.

No ano de 2015, divulgada, pela população e por parte da imprensa, a crença de que a fosfoetanolamina, supostamente, pode tratar todos os tipos de câncer, multiplicaram-se as ações judiciais visando obter dita substância química. Por força de incontáveis liminares judiciais, baseadas em decisão do STF (RE 657718), o Instituto de Química da USP, ao qual o Prof. Gilberto Orivaldo Chierice era vinculado, passou a ser obrigado a fornecer o produto. Apesar de o fornecimento ser feito pela USP, a própria Universidade emitiu, em outubro de 2015, um comunicado oficial esclarecendo que:

 “Essa substância não é remédio. Ela foi estudada na USP como um produto químico e não existe demonstração cabal de que tenha ação efetiva contra a doença: a USP não desenvolveu estudos sobre a ação do produto nos seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos. Não há registro e autorização de uso dessa substância pela Anvisa e, portanto, ela não pode ser classificada como medicamento, tanto que não tem bula.

Além disso, não foi respeitada a exigência de que a entrega de medicamentos deve ser sempre feita de acordo com prescrição assinada por médico em pleno gozo de licença para a prática da medicina. Cabe ao médico assumir a responsabilidade legal, profissional e ética pela prescrição, pelo uso e efeitos colaterais – que, nesse caso, ainda não são conhecidos de forma conclusiva – e pelo acompanhamento do paciente.

Portanto, não se trata de detalhe burocrático o produto não estar registrado como remédio – ele não foi estudado para esse fim e não são conhecidas as consequências de seu uso.

É compreensível a angústia de pacientes e familiares acometidos de doença grave. Nessas situações, não é incomum o recurso a fórmulas mágicas, poções milagrosas ou abordagens inertes. Não raro essas condutas podem ser deletérias, levando o interessado a abandonar tratamentos que, de fato, podem ser efetivos ou trazer algum alívio. Nessas condições, pacientes e seus familiares aflitos se convertem em alvo fácil de exploradores oportunistas”.

            De igual modo, o Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP), apresentou a seguinte nota:

“Cabe ressaltar que o IQSC não dispõe de dados sobre a eficácia da fosfoetanolamina no tratamento dos diferentes tipos de câncer em seres humanos – até porque não temos conhecimento da existência de controle clínico das pessoas que consumiram a substância – e não dispõe de médico para orientar e prescrever a utilização da referida substância. Em caráter excepcional, o IQSC está produzindo e fornecendo a fosfoetanolamina em atendimento a demandas judiciais individuais. Ainda que a entrega seja realizada por demanda judicial, ela não é acompanhada de bula ou informações sobre eventuais contraindicações e efeitos colaterais.”

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Evanius Wiermann, disse que o caso pode ser resumido como uma loucura:

 "Os pacientes estão sendo feitos de cobaia sem garantia nenhuma de segurança ou de eficácia".

Assim, enquanto existem diversos tipos de câncer, sendo pouco crível a existência de uma substancia apta a tratar todos eficazmente, não existe, por outro lado, estudo científico rigoroso hábil a comprovar os benefícios, alertar os riscos e garantir a segurança e a eficácia da substância para que seja utilizada com fins medicamentosos. O que existe até o momento são apenas esperanças e incertezas.


4. A fosfoetanolamina e a Nota Técnica nº 56/2015 da Anvisa.

A Anvisa, exercendo o seu papel de agência reguladora de proteção à saúde da população, com o controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços, emitiu, acerca da fosfoetanolamina Nota Técnica nº56/2015, da qual descatam-se os seguintes pontos:

“17. As terapias inovadoras desenvolvidas por pesquisadores renovam a esperança de pacientes e a Anvisa atua comprometida em promover o acesso a novas terapias, entretanto é essencial que a Agência receba a solicitação de registro ou pesquisa clínica com a documentação que tenha evidências de eficácia, efetividade, eficiência e qualidade.

18. É importante lembrar que o uso da fosfoetanolamina, pode favorecer o abandono de tratamentos prescritos pela medicina tradicional, os quais podem beneficiar ou curar a doença.

19. A Anvisa adverte mais uma vez que o uso dessa substância não tem eficácia e segurança sanitária, o uso desse produto pode ser prejudicial ao paciente e não deve substituir os medicamentos e procedimentos já estudados e com eficácia comprovada cientificamente”.

      Ou seja, malgrado haja forte pressão política e popular em favor da admissão da comercialização da fosfoetanolamina para fins medicamentosos, a Anvisa, em consonância com sua missão institucional, não se deixou capturar, posicionando-se de acordo com juízos técnicos, em detrimento de valorações políticas e sociais.


5. A Lei da fosfoetanolamina o esvaziamento do papel da Anvisa.

Apesar dos já explanados posicionamentos técnicos da comunidade científica, bem como da Anvisa, não apenas foram concedidas inúmeras liminares em favor da comercialização da fosfoetanolamina, como também, em 13/04/2016, foi aprovada, sem vetos, a Lei nº 13.269, ignorando-se por completo a ausência dos devidos testes e registros.

Sem dúvidas, a busca pela cura é algo humano e a fragilidade dos pacientes de câncer e de seus familiares inclina-os a apegar-se a quaisquer esperanças e possibilidades, ainda que não cientificamente testadas e comprovadas.

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Contudo, não deveria o Estado, por meio da Lei nº 13.269/16, em decisão meramente política e inobservando preceitos técnicos, atender a clamores populares desesperados, encorajando pacientes debilitados ao uso de uma substância que nem sequer foi experimentada em humanos, distribuída sem bula, sem indicação de dose ideal e sem alerta de efeitos colaterais.       

A Lei nº 13.269/16 foi publicada sem amplo debate, sem apoio da comunidade científica especializada e sem a realização de procedimentos que demonstrem que a substância é segura e eficaz. O direito à saúde não pode ser utilizado como pretexto para permitir o acesso a uma substância que, a pretexto de curar uma enfermidade, poderia, inclusive, agravá-la, visto ainda serem desconhecidas as consequências de seu uso.

É certo que o tratamento com a fosfoetanolamina – que, por rigor técnico, nem sequer pode ser chamada de medicamento – é recente e seus impactos sobre a saúde dos usuários ainda não podem ser determinados. Quantas substâncias promissoras, ao serem testadas, demonstraram sua inaptidão para a cura de doenças? Não poderia ser esse o caso da fosfoetanolamina? Evidente que a cura do câncer é um desejo geral, mas essas perguntas certamente só poderão ser respondidas no futuro.

Mas, se por um lado, as consequências médicas da liberação da produção, venda e uso da fosfoetanolamina ainda são desconhecidas, por outro, a consequência jurídica do esvaziamento do papel jurídico da Anvisa é nítido, já que a Lei nº 13.269/16 abriu perigoso precedente, afrontado o sistema regulatório em vigor, que foi estabelecido pelo próprio Congresso Nacional e  desrespeitando a Lei nº 9.782/99, que dá à Anvisa a responsabilidade sobre o controle sanitário da produção e comercialização de medicamentos.

Destaque-se, por fim, que, malgrado o art. 4º  da Lei nº 13.269/16 preveja que a produção, venda e uso da fosfoetanolamina se dará “independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância”, o legislador nem sequer se preocupou em estabelecer prazo para a regularização da situação, de modo que, até o presente momento, não há, junto à Anvisa, qualquer solicitação de registro da fosfoetanolamina, ou sequer de autorização, para realização dos testes clínicos obrigatórios.


Conclusão

Apesar de as conclusões acerca do presente estudo já terem sido extraídas da leitura de cada um dos capítulos que compõem esse trabalho, merecido se faz, neste momento, trazê-las à baila, de forma mais sucinta:

A Lei nº 13.269/16 manifesta decisão meramente política, com total inobservância de preceitos técnicos primordiais. Não deveria o Estado, baseado exclusivamente na crença de que a fosfoetanolamina pode, supostamente, tratar todos os tipos de câncer, atender a clamores populares desesperados, encorajando pacientes debilitados ao uso de uma substância que nem sequer foi experimentada em humanos, distribuída sem bula, sem indicação de dose ideal e sem alerta de efeitos colaterais. 

A Lei nº 13.269/16 foi publicada sem amplo debate, sem apoio da comunidade científica especializada e sem a realização de procedimentos que demonstrem que a substância é segura e eficaz. O direito à saúde não pode ser utilizado como pretexto para permitir o acesso a uma substância que, a pretexto de curar uma enfermidade, poderia, inclusive, agravá-la, visto ainda serem desconhecidas as consequências de seu uso.

Por fim, a Lei nº 13.269/16 representa ainda nítido esvaziamento do papel da Anvisa enquanto agência reguladora, pois da análise da Lei nº 6.360/76, que regulamenta o registro de medicamentos no Brasil, em conjunto com a Lei nº 9.782/99, que cria a Anvisa e determina suas funções,  resta claro que cabe à Anvisa – e tão somente a ela – avaliar tecnicamente a segurança e eficácia de qualquer medicamento, registrando-os e autorizando-os.   


REFERÊNCIAS

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FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2003

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013

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http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2015/10/1694186-justica-libera-suposta-droga-contra-o-cancer-sem-testes-em-humanos.shtml

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Sobre o autor
Naira Ravena Andrade Araujo

Advogada. Graduada pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Naira Ravena Andrade. A lei da fosfoetanolamina e o esvaziamento do papel da Anvisa . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4681, 25 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48517. Acesso em: 22 nov. 2024.

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