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Governo de gabinete no Brasil:

uma saída exótica e contrária ao dogma da separação dos poderes?

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3. PARLAMENTARISMO NO SEGUNDO REINADO.                         

De pronto, temos que ponderar que mesmo se restasse demonstrado nunca se ter praticado o Parlamentarismo no Brasil, daí não decorreria que não deveríamos começar a praticá-lo, desde que estejamos de acordo a respeito da sua superioridade quando comparado com o Presidencialismo. Mas, de qualquer forma, nós enfrentaremos o problema formulado e o faremos a partir de um caso concreto: A queda do Gabinete Lafaiete.

3.1 Gabinete Lafaiete: Um estudo de caso.

Esse gabinete caiu por não ter o necessário apoio do seu partido na Câmara. E essa falta de apoio sequer chegou a ser materializada na aprovação de um voto de desconfiança. O gabinete se retirou em 03.06.1884, mas desde 06.05.1884 que as relações entre o Governo e a Câmara dos Deputados estavam abaladas em razão da divulgação de carta do Presidente do Conselho de Ministros direcionada ao até então Ministro Rodrigues Júnior, na qual, atribuindo-lhe tibieza, era-lhe dito que ele seria afastado da Pasta da Guerra. Esse mal-estar é registrado nos Anais da Câmara dos Deputados ao longo do mês de maio[xv].

Foi nesse ambiente que o Governo chegou à sessão do dia 03.06.1884, quando seu candidato à Presidência da Câmara saiu-se vencedor com uma margem de apenas dois votos. Percebendo a fraqueza do Gabinete, César Zama, deputado Liberal pela Bahia, pediu que se votasse uma moção de desconfiança, a qual também foi rejeitada, mas – de novo – por uma apertada margem, dessa vez de quatro votos. Bastou isso para que Lafaiete percebesse que já não podia governar, vindo a – no mesmo dia – pedir sua exoneração ao Imperador, o qual, após reunir-se, em separado, com as maiores lideranças do Partido Liberal (Saraiva, Afonso Celso, Sinimbu e Dantas) encarregou esse último de organizar o novo Gabinete.

A queda do Gabinete Lafaiete é, pois, um caso que nos permite tirar as seguintes conclusões sobre o sistema representativo que se praticava no Brasil no final do segundo reinado:

1) Naquela altura, a composição do Governo (a demissão e nomeação de ministros) já era uma atribuição, na prática, privativa do Presidente do Conselho de Ministros, como se conclui da reação do Imperador ao “apelo” que lhe fizera o Ministro da Guerra Rodrigues Júnior.

2) A confiança da Câmara era essencial para a manutenção do Gabinete. E mesmo vitórias apertadas do Governo em questões importantes poderiam bastar para que esse se retirasse; e

3) Retirado o Gabinete, o Imperador ouvia os principais líderes políticos antes de convidar um parlamentar a formar um novo ministério. O Soberano, portanto, não deliberava sobre a questão sozinho e autoritariamente.

Além disso, os debates que – no ano anterior – suscitara o assassinato do jornalista Apulcho de Castro, outro evento que abalou a credibilidade do gabinete Lafaiete, mostram o quão viva era a disputa pelo convencimento do público. O esforço que o Jornal do Comércio, situacionista, fazia para repelir as acusações do oposicionista Gazeta de Notícias demonstra que longe de ser uma comissão ou extensão do Poder Moderador, habilitado a permanecer no poder enquanto essa manutenção fosse agradável ao Soberano, o Gabinete conferia peso e importância àquilo que o Visconde de Ouro Preto designaria de “razão pública”[xvi]. É que se disseminou a opinião segundo a qual as autoridades responsáveis pela segurança pública da corte teriam falhado ao tratar dos incidentes que levaram ao assassinato daquele jornalista. Essas autoridades, lembramos, eram subordinadas ao Ministro da Guerra.

Os acontecimentos da Rua do Lavradio foram analisados e esmiuçados em diversas edições da Gazeta de Notícias entre o fim de outubro e meados de novembro de 1883[xvii].

Acusações que foram respondidas pelo próprio Rui Barbosa, o maior e mais bem equipado polemista do Partido Liberal, no Jornal do Comércio.[xviii]

3.2 O peso da Opinião Pública.

Ora, qual seria o sentido de se gastar tanto latim, de se despejar tanta tinta em bom papel para se demonstrar que o Gabinete andou bem ou mal, foi diligente ou relapso, se o sustentáculo exclusivo ou, quando menos, preponderante para a manutenção do Governo fosse a pura e simples confiança do Imperador? Essas arengas públicas indicam, pelo contrário, que naquela altura a duração e a força dos Gabinetes variavam conforme variava a adesão da opinião pública, tal como registrada pela Câmara dos Deputados[xix].

Admitimos que durante o segundo reinado a Coroa foi, algumas vezes, não apenas um árbitro, mas um jogador (e um importante) no tabuleiro político. Essas atitudes tendenciosas ou dirigistas, como a ostensivamente tomada para acelerar a implementação da abolição incondicional e sem indenização, todavia, não foram tão frequentes como se poderia supor. Em minucioso artigo, Sérgio Ferraz (2013) destrincha, a partir da leitura de historiadores e fontes primárias, os motivos das quedas dos 37 Gabinetes do segundo reinado. Nele, o autor chega à conclusão de que em 51,3% das retiradas dos governos essas se deram por motivos exclusivamente parlamentares e sem qualquer intromissão da Coroa. E em apenas 27% dos casos o ministério caiu por exclusiva decisão do Imperador[xx] [xxi].

Foi a propaganda republicana, e a sua narrativa do “poder pessoal”, responsável por boa parte da desinformação que se espalhou sobre o segundo reinado. A imagem do tirano que, fingindo conceder poder e autoridade à Câmara dos Deputados, nada mais fazia senão dirigir com punho de ferro os destinos da nação, estabelecendo, assim, um “parlamentarismo às avessas” simplesmente não condiz com a realidade dos fatos.

Os avanços da Coroa sobre a política partidária, provocando, em alguns casos, a derrubada de Gabinetes que contavam, ainda, com o apoio da maioria da Câmara dos Deputados[xxii] desnaturaria o parlamentarismo, transformando-o em um outro regime? Se esse for o caso, então temos de concordar não ter havido Parlamentarismo na Inglaterra até 1835, ano no qual, de maneira precipitada, Guilherme IV demitiu um governo Whig nas mesmas condições[xxiii].

E mais.

O poder que formalmente derivava do Moderador, de dissolver a Câmara dos Deputados nos casos, em que o exigisse a salvação do Estado (conforme dispunha o art. 101, inciso V da Constituição do Império) descaracterizaria o Parlamentarismo praticado no segundo reinado, transformando-o em um terceiro gênero entre o Presidencialismo e o Parlamentarismo, ou em um “Parlamentarismo às avessas”? Se também respondermos positivamente a essa pergunta, então temos que concluir que não se praticou esse sistema na Inglaterra até o ano de 2011, quando só então, com a Lei dos Parlamentos com Termo Fixo, extinguiu-se, do ponto de vista formal, essa prerrogativa da Coroa[xxiv] [xxv].

O sistema representativo que se praticou e se consolidou evolutivamente ao longo do segundo reinado foi o parlamentar. Um Parlamentarismo que contou com um Soberano que foi, em alguns momentos, mais ativo e centralizador do que convinha, mas, ainda assim, um Parlamentarismo.


4. CONCLUSÃO E RESPOSTA AOS DIVERSIONISTAS.

Nesse ponto do nosso estudo, podemos concluir o seguinte: a) Não é possível se extrair do dogma da separação dos poderes razões conclusivas contrárias à adoção do sistema parlamentar em abstrato; b) O fracasso do nosso Presidencialismo de coalizão, paradoxalmente, tem contribuído decisivamente para a sua manutenção, eis que tem gerado um ambiente de descrédito generalizado com relação à política como um todo e de ceticismo ou antipatia quanto ao avanço de reformas políticas e c) Praticou-se o sistema de Gabinete no Império, durante o segundo reinado.

Essas ponderações até aqui apresentadas, todavia, não enfrentam objeções outras à adoção do governo de Gabinete que, por não ferirem o mérito da contenda, nós chamamos de diversionistas.

Aqueles que adotam a estratégia diversionista de defesa do sistema presidencial opõem à discussão sobre a implementação do sistema de Gabinete no Brasil a necessidade de serem enfrentados muitos e graves problemas nacionais, tais como a violência urbana, o crítico estado da saúde pública, a morosidade da justiça, o desequilíbrio fiscal, o crescimento desordenado das grandes cidades, as diversas tensões que colocam frente a frente diversos grupos organizados e antagônicos, como ruralistas e ambientalistas; armamentistas e desarmamentistas; sindicalistas e empresários e etc. São essas, e muitas outras, o que chamam de “questões de fundo”; ao passo que a discussão sobre o sistema de governo seria meramente “formal”.

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Diante de tantas tarefas prementes a serem administradas, sofismam alguns, não seria a problematização do sistema de governo uma querela demasiado técnica e, por que não dizer, alheia aos problemas concretos das pessoas de carne e osso? Seria, enfim, oportuno tratar disso agora?

Bem, esse argumento contra a mera discussão do Parlamentarismo começa por ser falacioso ao nos propor uma falsa dicotomia. É ela: Ou bem nos voltamos para o debate da mudança do sistema de governo; ou abordamos os tais problemas de fundo, eis que tratar das duas coisas ao mesmo tempo seria impossível. No entanto, isso simplesmente não é verdadeiro. Temas de forma e de conteúdo podem e devem ser enfrentados simultaneamente nos foros políticos competentes. Certamente não são os parlamentaristas que obstruem a discussão e adiam a resolução desses importantes temas (até hoje pendentes mesmo depois de 126 anos de Presidencialismo, diga-se de passagem).

Além disso, um outro problema da posição diversionista é o seguinte. É muito forçada a distinção entre conteúdo e forma; e apressada a descrição do parlamentarista como sendo um mero formalista. Nas palavras de Raul Pila, em um sistema parlamentarista, em razão da responsabilidade que lhe é inerente, o que se espera é justamente que “(…) os governantes enfrentem os problemas nacionais, ou confessem logo não os poder resolver, a outras mãos mais capazes entregando a árdua tarefa” (1999, p. 320)

Mas é óbvio que não se pode passar da tese de que o parlamentarista seria indiferente ao enfrentamento dos problemas de fundo à tese de que seria o parlamentarismo, ele próprio e independentemente de qualquer outra circunstância, a solução de todos os problemas nacionais[xxvi], pois de fato ele não é.

Na verdade, não sustentam os parlamentaristas que a adoção desse sistema seria a solução definitiva para todos os problemas nacionais. Antes, defendem a superioridade desse sistema sobre o presidencial que se tem praticado no Brasil. E mais especificamente, advogam que os institutos das eleições antecipadas (mediante a dissolução da casa do parlamento perante a qual o Gabinete responde) e do voto de desconfiança aperfeiçoariam nossa combalida democracia. Não se trata, portanto, de se chegar ao “melhor dos mundos”, mas de se abandonar um sistema ruim, adotando um outro melhor.


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Sobre o autor
Haroldo Augusto da Silva Teixeira Duarte

bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Haroldo Augusto Silva Teixeira. Governo de gabinete no Brasil:: uma saída exótica e contrária ao dogma da separação dos poderes?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4748, 1 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50223. Acesso em: 10 out. 2024.

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