3. CARACTERÍSTICAS ÚNICAS dos militares dos estados
Como vimos, infelizmente falta à mídia, à sociedade e até mesmo aos militares dos estados a noção de que estão sob a égide de um regime jurídico único. Neste caso, podemos afirmar e entender como regime jurídico único o conjunto de direitos, deveres, garantias e obrigações que regulam os agentes públicos integrantes das Polícias Militares de todo o Brasil (MORAES, 2010).
A título de exemplo, diversos aspectos da vida do miliciano estadual são disciplinados por leis próprias, decorrentes da determinação constitucional contida no art. 42, § 1º, especialmente os Códigos de Processo Penal e Penal Militar (Decretos-Leis 1.001 e 1.002/69), os quais foram recepcionados pela Carta Maior da Nação.
Sabiamente, o poder constituinte, nos moldes das constituições anteriores, criou um regime jurídico específico para os militares dos estados, sendo recepcionadas as normas infraconstitucionais pela Constituição vigente. Esse processo de constitucionalização da legislação infraconstitucional é uma imposição do Estado Democrático de Direito, instalado no país após o dia 5 de outubro de 1988. Como destaca Bonavides apud Moraes (2010): “As possibilidades de institucionalizar no país um efetivo poder democrático dependem, sobretudo, da correspondência da Constituição com a realidade”.
Outrossim, o direito positivo infraconstitucional incorpora, no Estado Democrático de Direito, grande parte dos valores de justiça trazidos pelo direito natural, como o princípio da igualdade, o valor da pessoa humana, os direitos civis e políticos, além de quase todas as garantias penais e processuais penais enumeradas na Constituição. A lei, como fonte imediata do regime jurídico dos militares do estado, por força da hierarquia das normas e da concepção escalonada entre os diversos níveis legislativos, tem na Constituição sua principal referência.
Conferiu, portanto, o constituinte um direito penal e processual penal especial aos Militares dos Estados, por disposição expressa do art. 125, §§ 3º e 4º, cabendo somente ao Tribunal Militar a decretação da perda dos postos dos Oficiais de Polícia Militar. Esses servidores são vitalícios do Estado e estão previstos em todas as constituições do Brasil desde a primeira.
Por outro lado, como já afirmamos, os direitos políticos dos militares foram, de certa forma, tolhidos pelo constituinte, vedando-lhes o direito de filiação a partido político quando no serviço ativo, assim como a sindicalização e a greve, conforme previsão do art. 42, § 1º, combinado com o art. 142, § 1º, IV e V. Tais restrições são específicas aos Militares.
Além disso, o regime disciplinar que apura a responsabilidade administrativa do Militar do Estado excepcionou da Constituição a possibilidade de imposição de sanção disciplinar com restrição de liberdade, nos termos do art. 5º, LXI. Além disso, vedou-se a ação de habeas corpus para o conhecimento do mérito das punições disciplinares militares, conforme o art. 142, § 2º, da CRFB.
Já na inatividade, os Militares dos Estados também se diferenciam dos demais servidores. Como vimos, as alterações promovidas pelas Emendas Constitucionais nº 20, 41 e 47 pouco impactaram suas peculiaridades previdenciárias, sendo mantida a exclusão dos Militares dos Estados da Seção II, Capítulo VII, do Título III da Carta Cidadã. A Emenda Constitucional nº 18 reservou o art. 42 exclusivamente aos Militares dos Estados.
Recorrendo ainda ao princípio constitucional da igualdade e levando em consideração a legislação previdenciária vigente, ou seja, a Lei nº 8.213/91, em seu artigo 57, com a nova redação determinada pela Lei nº 9.032/95, bem como nossa Constituição Federal — associado à recente Súmula 33 do STF e, por óbvio, à Carta Maior, em seu artigo 5º, caput, e artigo 201, § 1º —, observa-se que, até a presente data, não foi editada a norma exigida no referido artigo da Constituição.
Sobre isso, manifestou-se o renomado constitucionalista Ives Gandra:
Frise-se que a fixação de provento integral para os servidores públicos empenhados em atividades de risco encontra fundamento não só no art. 40, § 4.º, da CF/1988, bem como em princípios constitucionais, em que se assentam o Estado de Direito, como o da igualdade, o da proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana.
Ao interpretar qualquer regra, o hermeneuta deve buscar uma significação que dê concretude aos princípios em que se alicerça a Lei Maior. A interpretação do § 4.º do art. 40 da CF/1988 (LGL/1988/3), que parece assegurar a maior eficácia possível aos princípios da proporcionalidade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, é a que garante efetividade ao tratamento dispensado pela LC 51/1985, ou seja, condições e critérios de aposentadoria mais benéficos àqueles servidores públicos que dedicam sua integridade física e emocional em prol da ordem e segurança de todos nós.
A legislação cabível aos policiais militares do estado tem amparo na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na Seção III, que trata dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, em seu art. 42, in verbis (BRASIL, 1988, grifo nosso):
Art. 42. Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/98)
§ 2º Aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios aplica-se o que for fixado em lei específica do respectivo ente estatal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)
Neste cotejo, o que nos interessa é o art. 142, § 3º, inciso X, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que prevê que, por meio de lei estadual, serão estabelecidos o ingresso, os limites de idade, a estabilidade e a transferência para a inatividade dos militares, dentre outras situações especiais. Observemos (BRASIL, 1988):
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[...]
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
[...]
X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
A despeito de uma interpretação literal da legislação constitucional, pode-se entender que não há necessariamente um único diploma com regras jurídico-previdenciárias aplicáveis a servidores públicos civis e militares de um ente federado. Isso contraria expressamente a letra da Constituição Federal, mas, na prática, a maioria dos entes federados possui uma única norma geral regulando o processo de aposentadoria, excepcionalizando alguns dispositivos dessa norma em relação à situação fático-jurídica do militar estadual.
Portanto, ao analisarmos a norma do ponto de vista material, ou seja, independentemente do óbice que representa o fato de que o regime de previdência dos militares estaduais seja tratado na mesma norma que o dos civis, observamos que o tratamento específico aos militares foi concedido pelo legislador. Todavia, isso não os torna uma categoria de servidores especiais, tampouco confere à sua aposentadoria o caráter de especial.
Sobre a impossibilidade de o militar estadual ter seu regime previdenciário definido no mesmo estatuto que o dos civis, sob o prisma formal, ainda se aguarda o pronunciamento do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5154), com vistas ao Ministro Gilmar Mendes:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. LEI COMPLEMENTAR Nº 39/2002 DO ESTADO DO PARÁ. AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DAS ENTIDADES AUTORAS. NÃO CONHECIMENTO DO PEDIDO. FEDERAÇÃO NACIONAL DE ENTIDADES DE OFICIAIS MILITARES ESTADUAIS (FENEME). INSTITUIÇÃO QUE NÃO ABRANGE A TOTALIDADE DOS CORPOS MILITARES ESTADUAIS, COMPOSTOS DE PRAÇAS E OFICIAIS. ILEGITIMIDADE. CLUBE DOS OFICIAIS DA POLÍCIA MILITAR DO PARÁ (COPMPA), CLUBE DOS OFICIAIS DO CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DO PARÁ (COCB), ASSOCIAÇÃO DOS CABOS E SOLDADOS DA POLÍCIA MILITAR E DO CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DO PARÁ (ASSUBSAR). ASSOCIAÇÃO DE SUBTENENTES E SARGENTOS DA POLÍCIA MILITAR DO PARÁ. INSTITUTO DE DEFESA DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS E MILITARES DO ESTADO DO PARÁ (INDESPCMEPA). ENTIDADES COM ATUAÇÃO LIMITADA AO ESTADO DO PARÁ. AUSÊNCIA DE CARÁTER NACIONAL NOS TERMOS DA JURISPRUDÊNCIA DO STF. PEDIDO DE INTERVENÇÃO DE TERCEIROS EM ADI. NÃO CABIMENTO. ART. 7º, CAPUT, DA LEI Nº 9.868/99. AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA. 1. A Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (FENEME) não ostenta legitimidade ativa ad causam para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade questionando o sistema previdenciário aplicável a todos os servidores militares do Estado do Pará uma vez que sua representatividade da categoria é apenas parcial. Precedente do STF: ADI nº 4.733, rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, Dje de 31.07.2012. 2. O Clube dos Oficiais da Polícia Militar do Pará (COPMPA), o Clube dos Oficiais do Corpo de Bombeiros Militar do Pará (COCB), a Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do Pará (ASSUBSAR) e o Instituto de Defesa dos Servidores Públicos Civis e Militares do Estado do Pará (INDESPCMEPA) são entidades com atuação limitada ao Estado do Pará, de modo que não apresentam caráter nacional necessário ao enquadramento no art. 103, IX, da Constituição da República, consoante pacífica jurisprudência do STF (cf., dentre outros, ADI nº 108/DF-QO, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 5/6/92, ADI nº 3.381/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, DJ 29.6.2007; ADI-AgR nº 3.606/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 27.10.2006). 3. O rito procedimental da ação direta de inconstitucionalidade não comporta pedido de intervenção de terceiros, qualquer que seja a modalidade de que se cuide, ex vi do art. 7º, caput, da Lei nº 9.868/99. 4. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.
(ADI 4967, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-067 DIVULG 09-04-2015 PUBLIC 10-04-2015)
Portanto, em nosso humilde entendimento, não é errôneo falar em Regime Previdenciário dos Militares Estaduais, pois, se o legislador assim não desejasse, não teria deixado aberta uma expressa previsão constitucional. Afinal, o servidor militar estadual é um tipo único de servidor público estadual, não sendo possível traçar paralelos com nenhuma outra classe de servidores estaduais.
4. Reserva remunerada, a aposentadoria dos militares
O leitor que chegou a este ponto já compreende que o militar estadual possui um tratamento previdenciário diferenciado por motivos justos e plausíveis. Além disso, esses profissionais possuem um grau de contribuição e um nível de benefícios previdenciários inferiores até mesmo aos dos militares da União.
A partir deste ponto, pretendemos desenvolver uma linha de raciocínio para demonstrar que o militar estadual faz jus à aposentadoria especial, considerando, inclusive, o princípio da igualdade e o direito fundamental à dignidade da pessoa humana, dado o risco de vida inerente à sua atividade.
A origem da palavra "aposentadoria" remete a descansar, repousar, tendo como raiz a palavra “pousar”. O termo tem um cunho religioso de peregrinação: o peregrino, o viajante que caminhava, ao descansar (pousar), “apousentava-se” — palavra hoje em desuso. Nos aposentos de hóspedes, poderíamos dizer que alguém "se aposentava". Da mesma forma que “Vossa Mercê” se tornou “você”, no século XIX o "u" já havia ficado pelo caminho. A aposentadoria, então, tornava-se um direito trabalhista. (DA SILVA, 2014).
Da Silva (2014, p. 87) cita uma interessante curiosidade sobre a palavra jubilar:
D. Pedro I concedeu a aposentadoria aos professores públicos que completassem 30 anos de serviço. Tal aposentadoria era denominada "jubilação", do latim jubilatìo,"gritos de alegria"
Fica claro, então, que a ideia de aposentadoria está associada ao descanso com dignidade. No entanto, a nossa compreensão, revestida da malemolência brasileira, inverteu o sentido da palavra. Hoje, uma grande parcela da sociedade vê o aposentado como indolente e ocioso. Pior ainda, quando essa mesma sociedade elege como vilões de uma crise causada por má gestão, incompetência administrativa e concessão de benesses pontuais e perniciosas — baseadas no cabresto e no peleguismo — justamente os gastos com professores e militares. Ou seja, pune-se aqueles que educam e protegem.
Outro ponto importante é estabelecer a diferença entre tempo de serviço e tempo de contribuição, termos frequentemente citados de forma aleatória, mas que merecem uma definição precisa. Vejamos a definição de Amado (2016, p. 301):
Até o advento da Emenda 20/98, a legislação previdenciária se referia a tempo de serviço, assim considerado o período de exercício de atividade laborativa remunerada considerado para a concessão dos benefícios previdenciários, em especial das aposentadorias
Após a primeira reforma da Previdência Social, já se fala na terceira. Com essas mudanças, o tempo de serviço foi extinto e substituído pelo tempo de contribuição, pois não basta mais o mero exercício do trabalho; agora, exige-se a efetiva realização de contribuições previdenciárias pagas ou, ao menos, presumidas em casos de responsabilização tributária das empresas (AMADO, 2016).
Sobre isso, é importante citar Amado (2016, p. 301):
Frise-se que, por força do artigo 4º da Emenda 20, exceto no que concerne às contagens fictícias (a exemplo do cômputo em dobro), o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado com o tempo de contribuição, não tendo sido editada até hoje a referida norma jurídica.